BBB20: Com a vitória de Thelma Assis, a sociedade, através do entretenimento na TV, impulsiona mudanças


Em um país que mata mulheres como Brasil (3.739 homicídios dolosos 2019 e, desse total, 1.314 foram feminicídios, o maior número já registrado desde que a lei entrou em vigor, em 2015), a importância de ter mulheres em rede nacional desconstruindo comportamentos machistas. Com a palavra, a atriz e roteirista Suzana Pires, fundadora do Instituto Dona de Si – que tem como principal objetivo ajudar mulheres a descobrir o protagonismo em suas trajetórias – e o escritor e pesquisador em teledramaturgia Valmir Moratelli

*Por Brunna Condini

Thelma Assis é a campeã do Big Brother Brasil 20! Um emocionado Tiago Leifert anunciou sua vitória com 44,1% dos votos, de forma inédita, na edição já considerada histórica: olhando nos olhos, mas sem contato físico, no jardim da casa, já que o reality não junta plateias desde a recomendação de quarentena, por conta da pandemia do Coronavírus. “Thelminha, representar é o que você faz de mais bonito. Quando caiu o muro, e vocês viram o que estava do outro lado, a Thelma foi a primeira a bater no peito, e dizer: “Não tenho medo de nenhum deles”. Sabe por que a Thelma foi esse ícone? Porque ela está acostumada. A Thelma estava sempre contra a estatística. Ela samba na cara da sociedade”. E continuou: “É uma temporada histórica. Algumas pessoas dizem que foi a melhor de todos os tempos. Eu acho que é, mas eu sou suspeito para falar. A gente falou de assuntos muito importantes aqui dentro. Conseguimos falar com leveza e inteligência de temas muito difíceis. Muito obrigado a todos vocês que nos assistiram, que votaram, que nos incentivaram para continuar no ar. Uma missão tão difícil, em um momento tão difícil. Mas nós conseguimos. Chegamos à final com quatro dias a mais. Deu tudo certo”.

Rafa Kalimann ficou em segundo lugar e recebeu 34,81% de votos da preferência do público, e Manu Gavassi levou o terceiro lugar no pódio com 21,9% dos votos. Thelma sai do confinamento com R$1,5 milhão na conta e um carro zero, Rafa com R$ 150 mil, e Manu com R$ 50 mil.

A médica anestesiologista Thelma Assis é a grande campeã do Big Brother Brasil 20 (Reprodução)

A edição que começou com 18 participantes, entre famosos, influenciadores e anônimos, foi marcada por conflitos, abordagem de temas fundamentais, reviravoltas e viradas, e recorde reconhecido pelo Guinness World Records, no paredão entre Felipe Prior, Manu e Mari Gonzalez (coadjuvante no embate), que chegou a 1,5 bilhão de votos. Na decisão, Prior saiu com 56,73% dos votos. E Manu ficou ao receber 42,51%.

A convite do site, o escritor e pesquisador em teledramaturgia Valmir Moratelli, fala da edição mais bombada em 20 anos de programa no ar. “A grande diferença do BBB20 para as edições passadas, é que esta reuniu um elenco muito bom. A gente vinha sentindo falta disso, de um elenco que trouxesse conteúdos diversos. Cada um dos participantes, principalmente as mulheres, vieram com uma bandeira. Isso é muito importante. E mesmo dentro daquele universo delas defendendo o feminismo, aconteceram desdobramentos: uma personagem mulher negra e médica, outra que teve histórico de violência doméstica. Outra médica e falando da liberdade, uma atriz, uma digital influencer, com filho pequeno. Então, você tem várias nuances que abriam discussão dentro daquele universo feminino”, analisa Moratelli.

“É notório que o protagonismo feminino se sobressaiu nesta edição e o público já esperava por essa final. As mulheres lideraram o grupo, uma coisa que não acontecia desta forma em edições anteriores, onde geralmente eram dizimadas, entravam muito facilmente no papo dos homens. Desta vez, foi justamente o contrário, elas se uniram e foram limando um a um os participantes do time masculino. Essa edição nos mostra que esses valores são discutidos na sociedade de forma muito mais quente hoje. A luta das mulheres não é nova, mas são valores mais presentes na discussão da sociedade, principalmente no Brasil”.

Moratelli sobre a disputa entre Rafa, Thelma, a vencedora, e Manu: “É notório que o protagonismo feminino se sobressaiu nesta edição e o público já esperava por essa final” (Divulgação/Globo)

Em um país que mata mulheres como Brasil (foram 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres em 2019 de um total de 3.739 homicídios dolosos), qual a importância de ter mulheres em rede nacional desconstruindo comportamentos machistas? “É de extrema importância. Muitos dos assuntos ditos sérios e relevantes para a sociedade são discutidos no entretenimento. A telenovela trouxe isso de forma muito inteligente. Como, por exemplo, os valores que “Malu Mulher” trouxe ainda lá na década de 1980, como por exemplo, o uso da pílula anticoncepcional, a questão da violência doméstica. E também, mais recentemente, a questão da diversidade sexual, do combate ao racismo e valorização do negro na sociedade, a briga por equidade das mulheres. Muitas discussões são colocadas na sociedade através do entretenimento, até impulsionando mudanças”.

“É de extrema importância ter mulheres em rede nacional desconstruindo comportamentos machistas’ (Divulgação/Globo)

Que temas se destacaram nesta edição? “Com certeza, o feminismo e o racismo. Principalmente o feminismo, por conta da união das mulheres. Acho que uma das cenas mais emblemáticas para serem lembradas do BBB20 é a Manu falando para o Prior sobre sororidade, e ele dizendo que não sabia do que tratava. Só acho que ali ela perdeu uma grande chance de ter explicado para ele e para o público, já de cara. Imagina quantas pessoas foram pesquisar sobre sororidade só pela fala dela?”, aponta. “Outro ponto é que tínhamos chances também de ter chegado à final com dois participantes negros, E isso não aconteceu em nenhuma outra edição. O Babu foi o último a sair. A questão do racismo esteve presente nos discursos do Babu e da Thelma. Aquela fala do Babu dizendo que gostaria de ver a Thelma na final e vencendo o BBB, porque era um exemplo para a filha dele, de ver uma médica negra, vencedora, foi muito forte. Nós temos uma grande população negra no país, e você tem um reality em que dois participantes só são negros, ou seja, o sistema de cotas em reality ainda é pequeno. Isso abre uma discussão para uma participação maior nas esferas do entretenimento. No reality, isso entra também na questão da diversidade sexual, porque geralmente só colocam um gay, então até hoje não vimos casal. Acho que o tema da diversidade ainda será muito debatido nos realities”.

A união feminina fez o Big Brother Brasil 20 ser uma edição memorável, com vitória histórica de Thelma Assis (Divulgação/globo)

Girl Power

Fica na história, principalmente, o que não aconteceu antes e vira marco. Com a vitória de Thelma, as mulheres ganharam a mesma quantidade de edições do Big Brother Brasil que os homens, já que eles venceram oito edições na primeira década do programa, e as elas venceram oito das dez edições entre 2011 e 2020. Também foi a primeira vez na história do BBB que quatro homens foram eliminados em sequência, de cara. Tudo porque tiveram a ideia, carregada de machismo, de elaborar um plano em que deveriam seduzir participantes comprometidas tentando expor suas vidas ao julgamento do público. Foram “desmascarados”, e com a iniciativa empoderaram ainda mais o grupo feminino, que deu as cartas no jogo na edição em que mais se falou de feminismo na casa.

As mulheres do BBB20 confrontam participantes com plano machista: evento que proporcionou a virada e o protagonismo feminino no jogo (Divulgação/Globo)

A atriz e roteirista Suzana Pires, fundadora do Instituto Dona de Si – que tem como principal objetivo ajudar mulheres a descobrir o protagonismo em suas trajetórias – é fã do reality e chegou a repercutir em suas redes, no início do jogo, uma atitude de Bianca Andrade, a Boca Rosa, quando as mulheres revelaram o plano machista dos participantes, e a influenciadora ficou “em cima do muro”. Na ocasião Suzi Pires criticou o comportamento que não abraçava a sororidade, e ofereceu esclarecimento à participante – a primeira mulher eliminada do reality – sobre atitudes que englobam o Girl Power.

Suzana fala sobre a representatividade da final que vimos hoje: “Ao longo do programa, o BBB20 fez a gente ter um raio-x de como está pensando a sociedade brasileira. E realmente, o público não tolera mais misoginia, então o protagonismo feminino foi ganhando vários paredões, e hoje vimos uma final com três mulheres. Uma dessas mulheres é negra, e o protagonismo é dela. Esse é um momento muito importante, para que Thelma, essa mulher negra, empoderada, seja campeã e se torne referência para todas as meninas que precisam desta referência. Ela vai ser um símbolo. É um antes e depois, com a Thelma campeã, por isso é tão importante que ela vença”.

E Thelma venceu, Suzana.

A emoção da Médica anestesiologista ao saber que é a campeão do BBB20 (Divulgação/Globo)

Comoção VIP

A disputa entre participantes fortes e com bandeiras representativas favoreceu o jogo. Além do público anônimo, o programa foi acompanhado por famosos como Neymar, Bruna Marquezine, Anitta, Bruno Gagliasso, Preta Gil, Fernanda Paes Leme, Ludmilla, Iza e Agatha Moreira, e até Pedro Bial. Isso por aqui, porque hoje a torcida do reality teve participação internacional. A atriz Viola Davis compartilhou uma postagem de Taís Araujo sobre a final do BBB20. Taís usou uma frase dita por Viola, vencedora do Oscar, para apoiar a vitória de Thelma Assis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. A atriz brasileira também afirmou que pretende brindar com Thelma o fato de Viola Davis ter compartilhado a menção ao reality.

Reprodução Twitter

A médica que se consagrou campeã era a única inscrita no BBB20 e anônima. E, embora tenha se mostrado aos poucos no jogo, Thelma sempre demonstrou ter postura e opiniões firmes, muitas vezes indo contra o fluxo da maré, como quando não abandonou Babu. Determinada, ela foi protagonista de uma das provas de resistência mais difíceis da temporada (26 horas), mas isso já dizia muito da sua trajetória até ali, de sempre batalhar pelo que acreditava e não desanimar frente às dificuldades. Da mesma forma, que aquela menina do passado, criada apenas pela mãe no bairro do Limão, na zona norte de São Paulo, determinou que seria médica, e conseguiu estudar com bolsa na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Sorocaba, apesar de todo cenário desfavorável; a mulher do presente também não temeu perseguir o sonho de entrar e ganhar o Big Brother Brasil. Hoje Thelma Assis saiu milionária desta edição, que já deixa saudade, e inspirando por aí.

O Boninho sugeriu nas redes que uma segunda edição poderia vir em seguida, agora no segundo semestre. Acha ousado? “Acho. Muito. Teve uma tentativa disso lá no início do BBB, de emendar duas edições em um ano, mas o público se sentiu meio cansado. Acho importante dar um hiato entre uma edição e outra, até porque os participantes atuais ainda estão muito no imaginário das pessoas, então pode ter uma comparação, porque é tudo muito recente, é bom deixar alguma saudade. Não acho que seja interessante”, opina Valmir Moratelli. “Agora é claro, que tem uma questão de mercado muito forte, é um programa muito rentável para TV Globo, gera conteúdo para as redes sociais, engajamento, então é claro que tem esse histórico. Se a quarentena se estender muito, o que esperamos que não, mas se acontecer de ir para o segundo semestre, a Globo pode se interessar por essa audiência que vai estar presa em casa. Mas acho que não vai ter, até porque que existe uma questão, neste momento, de colocar as pessoas confinadas naquela casa, pela questão do Coronavírus. Pode ter sido jogada de marketing, mas vamos acompanhar o que ver o que acontece”.

Thelma Assis perseguiu o sonho de entrar e ganhar o Big Brother Brasil, e hoje saiu milionária desta edição, que já deixa saudade (Divulgação/Globo)