Você pode gostar ou não de reality show, mas eles acabam pautando a sociedade e abrindo espaço para discussões importantes e que urgem em nosso convívio. O Big Brother Brasil, atração líder no gênero, tem feito isso por vinte e três edições e durante 21 anos no ar, trazendo para o centro da roda pautas urgentes, como o racismo estrutural, já abordado em outras edições, mas nunca em uma configuração como agora. É a primeira vez na história do programa que participantes negros estão em maioria (desde o início: eram 11 dos 22 confinados), e hoje são cinco dos nove finalistas. Estamos na contagem regressiva para a final e pensar no que fica desta edição, além de algumas polêmicas e fiascos, é preciso. A atual temporada levantou assuntos relevantes como importunação sexual, abuso e relações tóxicas, e ao mesmo tempo que traz o protagonismo preto, também evidencia como o racismo está enraizado na sociedade e nas relações. Chamando à atenção para a importância da sociedade o perceber internalizado.
Para expandir o debate, convidamos a atriz, produtora e roteirista Valéria Silva, grande fã do BBB. “A primeira coisa que eu digo sobre isso tudo é: finalmente! (o reality ter mais pretos do que brancos). A casa deveria ser uma representatividade do nosso país, e nós pretos, somos a maior parte da população. Assistir por anos um programa que abre portas e ter a maioria das pessoas brancas, era como se roubassem a nossa realidade e esfregassem na nossa cara que as oportunidades grandes eram somente de privilégio branco, coisa que ainda é assim em muitos setores do nosso país. Nessa edição eles finalmente começaram a ir por um caminho adequado, mas ainda não digo 100% correto”, observa a atriz paulista, que está no elenco do filme ‘Faixa Preta’ da HBO Max.
Vejo a representatividade preta no audiovisual como uma obrigatoriedade. Ele é o reflexo de nossas vidas. Da sociedade – Valéria Silva, atriz e roteirista
Ela também pode ser vista no longa investigativo ‘Sem Fôlego’, uma obra bilíngue, disponível no Globoplay. Além dos filmes que estão por estrear, Valéria está debutando no mundo dos games internacionais, e é a primeira brasileira preta a dar voz à uma personagem por lá. E mesmo morando em Los Angeles há quase uma década, conta que faz questão de acompanhar o BBB, e que se fosse convidada, toparia participar. “Porque vai muito além da exposição, é uma questão de propósito”, frisa.
Eu participaria pela representatividade e se eu tivesse um objetivo traçado na minha carreira, que com a entrada no reality fosse ajudar. O programa abre portas e isso não podemos negar. Toparia também, claro, pelo prêmio em dinheiro – Valéria Silva, atriz e roteirista
Em uma das situações, há poucos dias atrás, Sarah Aline e Aline Wirley refletiram sobre a questão do privilégio, após Bruna Griphao dizer que Domitila Barros estava sendo ‘tendenciosa’ por mencionar que tanto ela, quanto Larissa e Fred (já eliminado), não estavam acostumados a lidar com pessoas negras fora da posição de serventia. Na conversa, Aline se questionou por talvez não perceber atitudes que apontavam para o racismo estrutural na situação. Era de se esperar que na atual configuração eclodissem as questões raciais? “Sim, infelizmente ainda temos uma realidade em que pessoas pretas recebem tratamento negativo em situações onde as brancas recebem tratamento positivo. Especialmente, nós mulheres pretas, somos criticadas e colocadas em um lugar de agressividade e violência por apenas darmos nossa opinião ou defendermos uma ideia, enquanto que mulheres brancas quando fazem o mesmo, são tidas como fortes, decididas, maravilhosas. No BBB não é diferente da vida. Para combater o racismo estrutural, primeiramente, temos que falar mais dele. Temos que fazer as pessoas entenderem o que isso realmente significa e como está entranhado em nossa cultura, na nossa língua, em nossos pensamentos. A partir do momento em que entendemos, podemos começar a combater”, pontua.
A casa deveria ser uma representatividade do nosso país, e nós pretos, somos a maior parte da população – Valéria Silva, atriz e roteirista
E acrescenta à sua fala: “Lá dentro ainda vejo as mulheres pretas sendo tratadas como minoria de uma forma ‘passiva negativa’, mas aqui fora a realidade é bem pior. E não é que as pessoas estejam ignorando o que é racismo estrutural, elas simplesmente não entendem e não enxergam o racismo que cometem. Porém, a época em que ficávamos quietos em uma situação racista passou, hoje baixar a cabeça não é uma opção. Quem não vê isso como racismo, é porque não tem interesse em analisar a situação e estudar os fatos históricos, o presente, e entender que o racismo estrutural é uma parte fundamental nisso tudo”.
Na própria pele
Aos 31 anos, ela que sempre sonhou em ser atriz e começou no teatro aos 13, divide o que ficou das situações de racismo em sua trajetória. “O pior foram a brincadeiras e ofensas com o meu cabelo. Eu era sempre a preta do cabelo duro. Não somente eu, mas outras crianças pretas na escola também passavam por isso. Essa lembrança não me dói mais, no entanto ficou marcada. Faz cinco anos que assumi meu afro e é uma das coisas que eu mais amo da minha pretitude”.
Nós mulheres pretas, somos criticadas e colocadas em um lugar de agressividade e violência por apenas darmos nossa opinião ou defendermos uma ideia, enquanto que mulheres brancas quando fazem o mesmo, são tidas como fortes, decididas, maravilhosas. No BBB não é diferente da vida – Valéria Silva, atriz e roteirista
Valéria também frisa a importância da representatividade preta no audiovisual. “Vejo como uma obrigatoriedade. O audiovisual é o reflexo de nossas vidas. Da sociedade. E nesse mundo e em nosso país existem pretos advogados, donos de empresa, fluentes em outras línguas e eu cresci sem ver nada disso. Na minha época de criança e adolescente tinha sempre a empregada doméstica preta, a funcionária, mas nunca em posição de poder”, salienta.
“Por isso desejo continuar me empenhado em fazer personagens de poder, que representem o lado rico da nossa cor. Quando eu escrevo meus roteiros, meus protagonistas são sempre pretos porque eu acredito muito que vindo da gente tem uma verdade maior. E os lugares que eu quero ocupar são os que inspiram, os que dão esperança para os jovens, crianças pretas e adultos também, para se espelharem e se conectarem com as histórias”.
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