*Por Brunna Condini
Estreante no cinema como a Filomena do filme “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, Bárbara Santos foi indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, que acontece em 10 de outubro, com premiação transmitida ao vivo pela TV Cultura, na categoria Atriz Coadjuvante, competindo com Fernanda Montenegro e Sonia Braga. E quem é essa atriz que está dando o que falar?
Socióloga, atriz, dramaturga, compositora, poeta e autora de três livros, entre eles o “Teatro das Oprimidas – estéticas feministas para poéticas políticas”, lançado na FLIP do ano passado. Ela também lança, ainda este mês em Buenos Aires, a versão em espanhol do mesmo livro, que sistematiza a metodologia teatral de perspectiva feminista-antirracista que deu origem à Rede Ma(g)dalena Internacional, de artistas-ativistas da América Latina, Europa, África e Ásia, na qual a autora é fundadora. Bárbara tem uma longa estrada profissional, só no cinema que a carreira é recente, mas já começou com força.
Morando em Berlim há mais de 10 anos, como Karim, a atriz acabou recebendo o convite para personagem por aqui mesmo. “Era março de 2018, eu estava lançando meu segundo livro (“Percursos Estéticos” – padê editorial) na Casa das Pretas, no Rio de Janeiro. Durante o evento, uma pessoa da produção de elenco do filme me apresentou a proposta. Só depois, em conversa com a diretora assistente, Nina Kopko, entendi que o convite havia sido feito pelo diretor, Karim Aïnouz. Eu encontrei a Nina na praia de Copacabana para uma água de coco, um dia antes do meu regresso a Berlim, mesmo dia que Karim chegaria ao Rio. Inicialmente, tudo parecia um grande desencontro de agendas’, recorda.
Bárbara bateu um papo exclusivo com o site direto de Berlim, falando sobre a carreira, a indicação ao prêmio e o filme aclamado. Além disso, analisou a questão da invisibilidade da mulher negra no cinema nacional e a ausência das realizadoras negras por detrás das telas e feminismo-antirracista.
Por que Berlim? “Me mudei para cá em 2009, logo depois da morte de Augusto Boal, com quem trabalhei durante duas décadas na coordenação do Centro de Teatro do Oprimido – CTO, no Rio de Janeiro. Minha decisão envolvia questões pessoais e também profissionais, pois queria aprofundar parcerias internacionais e iniciar projetos autônomos depois de tanto tempo dedicada exclusivamente às iniciativas do CTO”.
Você estreou no cinema com “A Vida Invisível ” e já foi indicada a prêmio concorrendo com Fernanda Montenegro e Sonia Braga. Como isso a afetou? “Me sinto muitas vezes premiada com esse filme. Primeiro pela oportunidade de interpretar uma personagem tão cativante, rica em complexidade e generosidade. Depois, pelo reconhecimento que recebi do público, por meio de mensagens comoventes. A Filó arrebatou muitos corações. Participar de diversos Festivais de Cinema foi outra premiação à parte. Em alguns deles, inclusive, fui abordada por jurados que lamentaram a falta de prêmio para a categoria de atriz coadjuvante. Depois dessa felicidade toda com o filme, veio a quarentena e tudo parecia encerrado. De repente, surge a indicação para o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, que foi uma surpresa arrebatadora. Estar em uma lista composta por atrizes talentosas, indicada para um prêmio tão importante é uma alegria indescritível. Para ser sincera, eu me sinto premiada com essa indicação”.
Dona da virada
No longa, as irmãs Guida, vivida por Julia Stockler, e Eurídice (Carol Duarte), são cúmplices e inseparáveis. Eurídice, a mais nova, é uma pianista prodígio, enquanto Guida, romântica, sonha em se casar e ter uma família. Mas com 18 anos, Guida foge de casa com o namorado. Ao retornar seis meses depois, grávida e sozinha, o pai, um português conservador, a expulsa de casa de maneira cruel. Com isso, Guida e Eurídice são separadas e passam suas vidas buscando uma à outra. E dentro dessa trajetória, a personagem vivida com potência por Bárbara, a corajosa Filomena, se torna amiga de Guida e a relação das duas muda o rumo da história. Filomena é o exercício da busca por liberdade, pela possibilidade de existir em uma sociedade que deseja a tornar invisível.
O que mudou de lá para cá? “Ao sair da casa dos pais, Guida quer conquistar o mundo, isso seria um ato de coragem se ela fosse um homem, tanto em 1950 quanto em 2020. O que Filomena mostra para Guida, é que a possibilidade de driblar o sistema exige a perspicácia de entender seu funcionamento. Filó é consciente do perigo das armadilhas patriarcais, como a do amor romântico e eterno, por exemplo. Armadilha na qual Guida caiu de cabeça. Filó também alimenta sonhos ambiciosos, mas não se ilude, e é essa a lição que Guida aprende. O racismo, o machismo e a hipocrisia moral que não permitiram que as duas mulheres, uma branca e uma negra, acompanhadas de uma criança, entrassem no restaurante como uma família, seguem bloqueando o avanço de milhares de mulheres no Brasil de 2020. Então, o que mudou de lá para cá? Para mim, a consciência dessas oprimidas. Cada vez fica mais evidente que não há como superar a opressão sem estratégias coletivas de confrontação e articulação entre diferentes grupos sociais”.
É verdade que se envolveu na construção da Filomena junto com o Karim Aïnouz ? “Sim, me envolvi profundamente por conta do meu próprio interesse como mulher negra e também pelo estilo de trabalho do Karim e da Nina. Eles me estimularam a escrever a história de vida da Filó. Pensar onde ela nasceu, como foi sua infância, que relação teve com a mãe e com a família, que sonhos alimentou na vida. Fomos compondo a personagem de dentro pra fora e a Filó que brotou desse processo foi fundamental para a composição daquela que apareceu na tela”.
E comenta sobre a sua ligação íntima com a personagem: “Como mulher negra, senti uma espécie de vínculo ancestral com a Filomena, desde a primeira leitura. Conheço essa prática do cuidado implementada por ela, a necessidade da solidariedade e a astúcia em enfrentar o sistema para sobreviver. Mas a Filó tem muito das mães que eu conheci como professora de seus filhos na rede pública de educação e de mulheres diversas com quem trabalhei em projetos teatrais, em favelas e bairros do subúrbio do Rio de Janeiro. Confesso que minha experiência nas unidades femininas do sistema penitenciário onde atuei com o projeto Teatro nas Prisões também inspirou muito esse processo. A Filó herdou dessas múltiplas mulheres um saber prático de como funciona o mundo, um arsenal de estratégias de sobrevivência e uma desilusão profunda com os homens”.
Por visibilidade e um mundo antirracista
Aos 56 anos, Bárbara milita há 15 anos na cena feminista, e aproveita para destacar (o ainda existente), cenário de invisibilidade da mulher negra no cinema nacional e nas artes. “Essa situação é realmente incrível, pois se trata da invisibilidade de um grupo social majoritário. Por um lado, vemos mulheres negras avançando em diversas áreas, ocupando espaços com propostas inovadoras e estratégias criativas, na internet, na TV e nas telas de cinema. Elas são produtoras, roteiristas, diretoras e estão abrindo espaços para outras, especialmente para atrizes negras. Mas, por outro lado, elas permanecem em certa invisibilidade por falta de oportunidade, falta de acesso a recursos, a financiamento, a apoio. Na grande indústria, as mulheres negras continuam minoria na frente e por trás das câmeras. Ainda são poucas as personagens disponíveis para a amplitude da diversidade de talentos. Quando recebi a notícia da minha indicação para esse prêmio fui conferir a lista de indicadas e fiquei chocada com a pouquíssima presença de atrizes negras indicadas nessas listas. Essa invisibilidade reflete a ausência delas nas telas. Como bem disse Viola Davis, ‘não se pode ganhar prêmios para papéis que não existem'”.
Como definiria o exercício de um feminismo antirracista? “Sou fundadora da Rede Ma-g-dalena Internacional de Teatro das Oprimidas, formada por grupos de artistas-ativistas de América Latina, Europa e África. As Estéticas Feministas que praticamos e desenvolvemos estão alicerçadas principalmente nos feminismos Negro, Comunitário e Descolonial, da América Latina e Caribe. Em nossa concepção, se o feminismo não for antirracista não pode ser feminismo, pois estará definindo o conceito de mulher ao de mulher cis branca, excluindo da pauta de luta todas as não-brancas e todas as dissidências. O feminismo antirracista é diverso, inclusivo e autocrítico, reconhece que, também entre mulheres, privilégios e diferenças sociais devem ser abordadas. De 20 a 30 de setembro de 2020, comemorando dez anos de existência de nossa Rede, vamos realizar um festival online, com recorte antirracista, em nossas redes sociais e em nosso canal do Youtube”, anuncia Barbara. “Uma sociedade antirracista é a que precisamos construir. Como um espaço pleno de solidariedade, de avanço, de diálogo, de bom gosto e de modernidade. Uma sociedade onde a inteligência, a empatia e a criatividade tenham mais valor do que acúmulo de coisas. E a diversidade seja encarada como riqueza”.
Que mulheres destacaria hoje, por seu trabalho e ativismo? “Começo por Marielle Franco, por sua força e determinação, por seguir presente, por ser inspiração, pelas sementes que deixou e, especialmente, porque precisamos saber quem mandou matá-la. No Brasil, são muitas as mulheres que nos inspiram e fortalecem, atuando em diversas áreas como Conceição Evaristo, Sônia Guajajara, Zezé Motta, Elza Soares, Sueli Carneiro, Grace Passô, Jurema Werneck, Benedita da Silva, Renata Souza, Nilma Lino Gomes, Djamila Ribeiro, Vilma Reis, e tantas outras ocupam espaços e para renovar sonhos, apesar do contexto de retrocesso”.
Onde quer chegar? “No lugar de superação dessa condição restritiva, que limita acesso, que impõe escassez e exige um esforço sobre-humano para apenas existir. Quero chegar no lugar de ter condição de explorar minhas potencialidades e criatividade. Gostaria de poder ser plena sem ter que imaginar que para isso eu teria que ter nascido um homem branco de classe média”.
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