* Por Carlos Lima Costa
Até quando a sociedade vai esperar para dar um basta definitivo no racismo? Pergunta que todo o país se faz em pleno 2022. A atriz Jeniffer Nascimento, que, no momento, se destaca como a Jéssica da novela Cara e Coragem, abre o coração. “A fama não me livra de passar por situações de racismo. Passei por várias, tanto na área profissional quanto na vida pessoal. Frequentemente, no aeroporto, posso dizer que todos os meses, sou escolhida na inspeção aleatória para me revistarem. É corriqueiro. Um dos cabelos que vou usar mais pra frente na novela, eu pedi para estar com ele em algum momento em um editorial. Em seguida, no Aeroporto Santos Dumont, me pararam no Raio X, alegando que tinha algo dentro do meu cabelo e os seguranças começaram a abrir o meu cabelo. Para quem não passa parece surreal. Realmente, é triste. Se isso acontece comigo, que estou em um lugar de certo privilégio, imagina o que as outras pessoas pretas não passam. O racismo é cruel. Infelizmente tenho que lidar com isso”, lamenta.
E acrescenta um episódio no âmbito profissional: “Uma vez, não pude fazer um teste para um musical por não ter o perfil de uma europeia. Nunca consegui entender, porque até onde aprendi sobre teatro tudo é permitido. É uma mentalidade que vem mudando um pouco, graças a Deus, mas a gente não se livra de passar por situações de racismo”, pontua.
Jeniffer enfrenta tudo com coragem, uma característica que tem comum com sua personagem na trama das 19 horas, que ela está amando participar. “A Jéssica é um pouco diferente, é espevitada, pensa alto demais, sai falando o que vem na cabeça. Eu sou mais controlada. Mas nos encontramos na coragem. O que falam para ela, pode ser algo que nunca tenha vivido, mas se confia nas pessoas ela topa viver a aventura. Sou assim, tenho coragem para me arriscar em novos desafios”, comenta.
Ela está adorando a parceria com Kiko Mascarenhas, como Jéssica e Duarte. “Estou tendo o prazer de aprender muito em cena com ele, de quem sempre fui muito fã. Fiquei fascinada pelo trabalho dele, quando o assisti na peça O Camareiro. Não nos conhecíamos, mas assim que nos conectamos a química foi imediata, nos demos muito bem e estou feliz que o público esteja percebendo essa conexão com os nossos personagens também. A Jéssica e o Duarte ainda vão aprontar muito nessa novela. Ela ajuda a acobertar as loucuras e os delírios do Bob Wright, o disfarce do Duarte. Como todo bom amigo compra as loucuras do amigo, então, teremos muitas aventuras e risadas pela frente”, explica.
Paralelamente com a novela, gravada no Rio, Jeniffer vinha se apresentando com o espetáculo Donna Summer Musical, em São Paulo, onde encerrou temporada. A produção já está tentando captar recursos para que a peça, com direção geral de Miguel Falabella, estreie, no Rio, no primeiro semestre do ano que vem. E conta curiosidades e a importância de interpretar a diva disco music Donna Summer (1948-2012), papel que dividiu com Karin Hils e Amanda Souza.
“Foi muito legal mergulhar nesse universo e saber que temos pontos em comum. Nós duas fizemos Hair e cantamos a mesma música (White Boys) no espetáculo. A Donna, assim como eu, era workaholic. Nos anos de 1970, tudo era mais desafiador para uma mulher preta. Me identifico com muitas batalhas dela, que foi uma das primeiras mulheres pretas a fazer um grande sucesso em uma indústria dominada por homens brancos. Então, ela teve que ser extremamente corajosa e precisou ter muita personalidade para conduzir a carreira da forma como queria”, ressalta.
Jeniffer até acredita em uma mudança na questão do racismo, percebe que avanços acontecem. “Mas infelizmente ainda estão em passinhos de formigas. Quando eu estava no The Voice (ela foi uma das apresentadoras), por exemplo, várias atrizes pretas mais velhas do que eu, me falaram da felicidade de me verem fazendo publicidade no programa, porque quando eram jovens, mulheres pretas não faziam. Se olho para trás e para as minhas que cavaram esse espaço para eu estar aonde estou, temos avançado. E fico feliz de termos muitos atores pretos em Cara e Coragem. Temos que ter cada vez mais produções assim e reconstruindo o imaginário como acontece nessa. Por exemplo, o núcleo da Claudinha (Claudia Di Moura), do Ícaro (Silva) e da Taís (Araújo), uma família preta, rica, algo que infelizmente vemos pouco em nossa sociedade. A partir desses lugares de representatividade, outras pessoas podem olhar que aquele lugar também é possível pra gente”, enfatiza.
Mas faz uma ressalva de uma situação corriqueira que vivencia faz tempo. “Já passou da hora das pessoas pararem de nos confundir. Falamos muito sobre isso nos bastidores. Na rua, já fui chamada de todos os nomes de atrizes pretas que tem na televisão e que, infelizmente ainda são poucas. Um dia eu estava no telefone com a Taís e uma pessoa na rua me chamava pelo nome dela. Todas nós atrizes pretas passamos por isso”, observa.
Na questão da representatividade, no último dia 30 de maio, o Brasil perdeu Milton Gonçalves (1933-2022), um dos grandes atores desse país, um precursor, com quem ela contracenou na novela Pega Pega. “Tive a honra de trabalhar com ele, que sempre foi generoso, dava dicas, tanto de atuação quanto de ângulo, enquadramento. Era um gentleman em cena. Sem dúvida, nomes como Milton, Ruth de Souza (1921-2019) são grandes referências pra gente. Infelizmente, quando eu era muito pequena, não tinha um exemplo em programas infantis. Tenho um grande sonho de um dia conseguir ter um programa para crianças e adolescentes, porque a gente nunca teve uma apresentadora que converse com esse público e seja preta. Eu ouso dizer, talvez seja ignorância minha, mas nunca vi nem no mundo uma apresentadora preta voltada para o público infantil”, lamenta.
Jeniffer conta que quando era pequena, Xuxa foi sua inspiração para ser artista, porque cantava, dançava e atuava. “Eu não tinha tanta representatividade nos produtos que eu via. Depois que eu cresci, fui tomando essa consciência. Taís foi uma das primeiras onde eu me vi e me encantei. Lembro da novela Da Cor do Pecado, como se fosse ontem. Adorava a Preta, interpretada por ela. Inclusive, foi uma das únicas personagens que virou uma boneca, uma atriz preta que virou uma boneca preta com essa personagem tão especial. Então, ver essas pessoas nesses espaços depois que eu tomei um pouco mais de consciência do quão difícil ainda é para as pessoas pretas enfrentarem as barreiras na vida, sem dúvida foi um combustível pra mim. Fico feliz por termos cada vez mais representatividade para que mais gerações se inspirem em diversas áreas.
Jeniffer, que vai completar 29 anos este mês, fica orgulhosa de perceber que atualmente ela é um espelho e inspiração para jovens pretas. “É emocionante e ao mesmo tempo assustador, porque ser uma referência, inspirar pessoas é uma grande responsabilidade. Isso significa que essas pessoas estão atentas aos meus passos, ao que tenho a dizer. Então, me sinto honrada de ser referência não só de profissão, mas de empoderamento. Muitas iam no teatro me assistir e falavam que começaram a cantar ou a fazer teatro depois de me verem fazendo a Sol (personagem dela em Malhação: Sonhos). Com essa personagem, usei tranças, passei pela minha transição capilar e muitas meninas se motivaram a passar também pela transição. Até hoje, oito anos depois de Malhação ter estreado recebo esse testemunho de como foi importante para essas meninas e sem terem medo dos julgamentos. Isso é poderoso, uma missão muito bonita que me foi dada. Fico feliz que essas meninas tenham essas inspirações, coisa que eu e Taís não tivemos tanto quando éramos mais jovens”, ressalta.
Jeniffer vem desenvolvendo muito a questão da autoconfiança. “A síndrome do impostor permeia as nossas vidas, principalmente para as pessoas pretas em que vai um pouco mais a fundo, porque para além da insegurança que todos nós passamos, existe a questão estrutural que sempre força isso. Cresci ouvindo que se eu quisesse ter oportunidades no meio artístico eu precisava ser três vezes melhor do que as pessoas para poderem me enxergar como uma possibilidade naquele lugar que na teoria não foi feito pra mim. Então, crescemos com essa pressão de ser perfeitos. Realmente, precisei trabalhar mais. Ao longo dos anos, principalmente após ingressar na TV, tenho trabalhado reconhecer as minhas conquistas, a ser mais gentil comigo mesma e saber do meu valor também”, frisa.
Jeniffer recorda que, em Peter Pan, seu primeiro musical, ela não tinha perfil para fazer o teste. “Eles buscavam meninas loiras e ruivas, mas na audição os gringos falaram para a minha mãe: ‘A vontade da sua filha era tanta de fazer que vamos colocá-la para interpretar um menino perdido, porque queremos que ela esteja com a gente’. Então, sem dúvida, tenho certeza de que me esforçar três vezes mais do que o comum foi o que me fez chegar onde eu estou”, conta. Donna Summer Musical foi sua segunda protagonista. A primeira foi no espetáculo Divas – O Musical, em 2016.
Paralelamente à carreira de atriz, Jeniffer vem mostrando talento como cantora. Em 2013, participou do reality Fábrica de Estrelas, do Multishow, e foi uma das cinco vencedoras, que formaram o grupo Girls. Anos depois, em 2018, venceu a segunda temporada do Popstar. Atualmente, nos streamings, existem alguns singles dela em duetos com Zezé Motta, Jorge Vercillo e Péricles. “Tenho muita vontade de também seguir a carreira de cantora. Lancei um single ano passado, o Flechas, minha primeira música solo, mas ainda é um desafio pra mim, porque sou cantora independente, não tenho gravadora e infelizmente o mundo da música demanda mais investimento, ouso até dizer, do que para um ator”, aponta.
E prossegue: “Antigamente, você tinha que investir muito dinheiro pra sua música tocar em uma rádio, pra conseguir uma boa divulgação e, agora, esse big investimento virou para os streamings, para sua música entrar em uma grande playlist e chegar em um grande público. Então, optei por ir lançando esses singles. Assim, consigo traçar uma carreira musical com a minha identidade, sendo independente. Muitas vezes quando você é de uma grande gravadora ou de um determinado escritório como eu fui, por exemplo, no Girls, eles te moldam. Ali, cada uma representava uma personalidade. Eu era a sexy, então, pra mim estar no Girls, era como se eu estivesse representando mais uma vez um papel. E na minha carreira musical, não é o que desejo”, assegura Jeniffer, que ano passado estreou como dubladora.
Em Encanto, filme de animação da Disney, ela dublou a personagem Dolores Madrigal. “Quando fui fazer o teste e vi que era uma música extremamente grave, falei que não tinha nada com a minha tessitura vocal. Eu sou soprano, canto agudo, então, foi desafiador. Saí meio frustrada do teste, mas pra minha surpresa deu supercerto e gostei muito do resultado. Depois da Dolores, passei até a me exercitar, a cantar mais na área grave. Até falar no grave, coisa que pra mim sempre tinha sido uma resistência. Para minha grande surpresa, Não Falamos do Bruno, virou a música mais ouvida da Disney. E tive um feedback legal das crianças, recebi muitos vídeos de crianças cantando, vestidas de Dolores e me mandando fotos”, conta.
E ressalta o mais importante: “Foi muito legal especialmente poder dublar uma personagem de desenho preta. Sempre gostei muito de Disney e quando eu era criança eu não tinha essa referência de princesas pretas. Na primeira peça que eu fiz na vida, com cinco anos, fui a Branca de Neve, porque só eu conseguia decorar a fala na escola e os meus amiguinhos achavam um absurdo eu ser a Branca de Neve, porque no imaginário que foi construído para eles, princesas só eram meninas brancas. Então, é legal ver que acontecer essa representatividade também nos desenhos que são tão importantes para a nossa construção como seres humanos. Desde pequenas, eles vão construindo o nosso imaginário do que podemos ser. Encanto é um desenho de pura representatividade”, garante ela, que espera poder dublar outros desenhos musicais.
Por conta da profissão, apesar de desejado, ter um filho é um projeto a longo prazo para Jeniffer. “A maternidade é algo que eu almejo muito. O Jean (Amorim), meu marido, também deseja de ser pai, conversamos muito sobre isso. Passamos dois anos de pandemia, parados, sem poder realizar nossos sonhos profissionais e pessoais. Ainda queremos desbravar o mundo. E profissionalmente ainda temos grandes sonhos. Quero muito ter uma carreira internacional, atuar lá fora como atriz, tenho investido muito no inglês para que isso seja uma realidade para o meu futuro”, garante.
No segundo semestre, ela vai gravar a décima temporada de Vai que Cola, sitcom do Multishow, do qual integra o elenco desde o ano passado. E aguarda o lançamento do filme Barraco de Família, além das séries Só Se For Por Amor, da Netflix, e Não Foi Minha Culpa, da Star+. Não ter um vínculo é bom no sentido de poder diversificar e dizer não para projetos que não lhe atraem. “Todo mundo acha que eu sempre fui contratada da casa (Globo) e eu nunca fui. Eu sou contratada por obra. Pra mim, sempre foi rotina acabar uma produção e procurar um emprego. Somos artistas no Brasil, temos boletos para pagar, precisamos sobreviver. Hoje em dia, graças a Deus, por eu ter uma educação financeira melhor, conseguir fazer os meus investimentos, então, consigo ter esse melhor planejamento de carreira. Artisticamente é positivo para os artistas ter essa versatilidade não só de personagens, mas de produtos. Eu já recusei teste, por exemplo, para interpretar uma menina traficante, que ensinava o homem branco a assaltar uma casa. Não quero usar a minha arte para reforçar um estereótipo de mulher preta no Brasil para o mundo. As mulheres pretas no nosso país são muito mais do que isso”, finaliza.
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