Atriz de filme de época, Emira Sophia diz: ‘Há linha tênue entre abordagem social de personagens pretos e nova desumanização’


A atriz reflete, a partir do papel de “Valentina” no longa “Perdida”, sobre a forma na qual personagens pretos e subalternizados são representados no audiovisual. “É preciso ter esse cuidado para que a mulher negra não seja colocada nesse lugar de raivosa, mas também acho que tem uma facilidade muito grande que a gente não percebe a sensibilidade dessas mulheres, que já é muito bagunçada pelo contexto social. O que eu tento fazer é simplesmente sentir o que aquela personagem me pede. É um trabalho duplo porque, ao mesmo tempo em que tenho que ver tudo que estou representando ali, também tento não pensar tanto nisso”

A artista Emira Sophia afirmou buscar o máximo de humanidade em seus personagens (Foto: Victor Takayama)

*por Luísa Giraldo

A segunda participação de Emira Sophia em um projeto de longa-metragem chega aos cinemas no dia 7 de dezembro. O filme “Tá Escrito” acompanha as aventuras da estudante de publicidade Alice, interpretada por Larissa Manoela, ao se deparar com um caderno mágico que promete realizar todas as previsões astrológicas ali registradas. Ao lado de Larissa, Emira dá vida à jovem Nanda e promete ser um expoente de peso para a indústria audiovisual brasileira. O trabalho da atriz entrou em ascensão em 2023, com a presença marcada em curtas, longa-metragens, peças de teatro e clipes. O que, de fato, lançou a artista baiana foi a participação no filme “Perdida”, adaptação do livro homônimo da escritora Carina Rissi. Ao contrariar as expectativas do perfil físico descrito pela obra original da personagem Valentina, Emira se tornou potente voz como atriz pretas a figurar uma posição de destaque no elenco de um filme de época no Brasil. Ciente da responsabilidade advinda pelo papel, a artista atenta ao público sobre os limiares éticos que envolvem a representação da população negra e o perigo da desumanização na representação audiovisual de personagens engajados na defesa de pautas sociais.

Assim que foi selecionada para o papel, Emira confessou ter se preocupado com a descrição de Valentina: ‘uma moça loura e de olhos azuis’. Embora o tom da pele da personagem não tenha sido especificado por Carina nos livros, tudo levou o elenco e os produtores a acreditar que ela tinha uma fisionomia e cor de pele diferentes da artista. Uma segunda questão que pairou na mente da atriz ao longo das gravações foi o peso da expectativa do público para com os personagens. Isso porque o livro foi publicado em 2011, o que teria dado aos leitores tempo o suficiente para criar intimidade com os perfis físicos de cada um.

Intérprete de “Valentina” no filme “Perdida”, Emira Sophia se sentiu preocupada ao descobrir que daria vida a uma personagem com a descrição física oposta nos livros. A artista faz um esforço no sentido de iluminar o debate de uma representação justa e coerente das dores vivenciadas pelas mulheres pretas. Ela busca atribuir uma camada que considera mais profunda do que as de gênero ou racialidade: a humanidade dos personagens. Ao tentar abarcar todas as lutas políticas e traumas geracionais em apenas um papel, Emira avalia que o audiovisual esquece de tratar das individualidades sensíveis de cada pessoa. 

Emira Sophia detalha a percepção receosa que tem na inserção de personagens meramente voltados para crises existenciais voltadas unicamente a pautas e lutas políticas.

Percebo a presença destes corpos dissidentes nas telas. Inicialmente, nos trabalhos, veio uma necessidade de falar sobre a questão de personagens nesses contextos. Até certo ponto, eu acho que é importante trazer esses debates, porque a gente não tinha eles bem colocados há um tempo. Mas acredito que há uma linha tênue muito fina entre a abordagem desses discursos e uma nova desumanização. A criação desses ‘talkings’, que seriam essas pessoas como apenas grandes pautas – Emira Sophia

A atriz Emira Sophia abre o coração sobre os tipos de representação da mulher preta no audiovisual (Foto: Victor Takayama)

A atriz Emira Sophia abre o coração sobre os tipos de representação da mulher preta no audiovisual (Foto: Victor Takayama)

Em consonância, Emira Sophia acredita que o papel de Valentina para a trajetória de Sofia, a protagonista do longa que é interpretada por Giovanna Grigio, é ímpar e inegociável. Isso porque ela descreve a personagem como uma “sementinha de revolução”, em que a existência dela também condiciona a da Sofia e o desenvolvimento dela ao longo da trama.

Tentei entender como eu, no corpo de uma mulher negra, conseguia trazer essas necessidades de ser escutada, de me colocar e ter decisões sobre a minha vida. É claro que nós duas temos contextos de opressão diferentes, mas tentei trazer essa experiência para ela por achar que esse silenciamento que ela vive e todo o momento são importantes de serem abordados na história] – Emira Sophia

Segundo Emira, Valentina assumiu um espaço de importância na representatividade, sobretudo para ela própria. Por ter sido uma criança que cresceu assistindo aos filmes e as animações da Disney, ela sentia falta de atrizes que se parecessem com ela. A artista Zendaya, protagonista nos sucessos “No Ritmo” e “Agente K.C.”, era uma das poucas figuras pretas a compor o elenco dos programas.

Durante o processo de preparação para a caracterização da personagem, a artista admitiu ter se inspirado em si mesma e nos sonhos de se ver representada nas telas no período da infância. O cuidado com a abordagem da história brasileira com personagens que pudessem despertar um sentimento de identificação em grande parte das meninas brasileiras também foi mencionado por Emira.

Apesar de ter ficado ansiosa para entender como o público ia ver o meu trabalho fazendo uma personagem diferente, eu recebi muitas mensagens incríveis de leitores quando foi anunciado que eu seria a Valentina. Uma leitora especificamente falou que estava muito feliz que eu ia fazê-la porque ela tinha lido todos os livros da coleção durante a adolescência, mas não se via na história. Para ela, me ver ali era muito importante, porque ela sentiu que poderia estar em uma história especial como aquela. A partir de mensagens como essa, eu senti um pouco mais de força para acreditar que eu também poderia trazer para Valentina alguma coisa da minha experiência – Emira Sophia

Emira também participou dos clipes “Baby”, lançado há dois meses pela artista Paola Lappicy, e “Passei da Fase”, da cantora Marina Gold produzido em 2021. Os dois trabalhos demandaram um estudo intenso do corpo por parte da artista. Em seu primeiro trabalho do gênero, a atriz pode exercer a dança profissionalmente pela primeira vez.

Intérprete de "Valentina" no filme "Perdida", Emira Sophia se sentiu preocupada ao descobrir que daria vida a uma personagem com a descrição física oposta nos livros

Intérprete de “Valentina” no filme “Perdida”, Emira Sophia se sentiu preocupada ao descobrir que daria vida a uma personagem com a descrição física oposta nos livros (Foto: Victor Takayama)

“Todo o elenco tinha um desafio: encontrar um tom de época em um filme de comédia. Para mim, foi um desafio especial porque a Valentina tinha todo o ímpeto de quebrar padrões, de enfrentar a avó e ideias que eram colocadas em cima dela, embora tivesse um processo de se entender e se reconhecer. A gente marca bem o entendimento a respeito da personagem no filme e o contexto dela: uma energia prestes a explodir que precisava ser transmitida de maneira calma e sutil por conta da Valentina ser uma mulher daquela época”, reflete a atriz.

Para a intérprete de Valentina, o real desafio deste papel foi dosar as energias opostas presentes na personalidade da personagem. Afinal, apesar de se tratar da adaptação de um romance de época, em que se tem uma série de formalidades e protocolos a serem seguidos, a colega de Sofia tinha uma “energia flamejante de uma jovem mulher da época”. A complexidade da personagem se dá, em grande parte, pelo desejo dela de querer conhecer mais o mundo à sua volta. Tratou-se, então, de um trabalho duplo de construção de “lugares físico e emocional” para ela.

Atriz de "Perdida", Emira Sophia ganhou destaque no audiovisual brasileiro com o papel de "Valentina"

Atriz de “Perdida”, Emira Sophia ganhou destaque no audiovisual brasileiro com o papel de “Valentina” (Foto: Victor Takayama)

Emocionada, Emira disse ter firmado profundas conexões com a personagem pela tentativa de retratar uma mulher daquele século, com desejos e sonhos específicos de estudar, querer frequentar ambientes acadêmicos e ler. Assim, a atriz entende que o simbolismo da personagem se dá pela existência de inúmeras Valentinas ao longo da história das conquistas femininas.

Apesar da sensibilidade no detalhamento para a construção da personagem, a atriz alertou que o público deve se atentar aos estereótipos relacionados à abordagem das mulheres negras no audiovisual. “É preciso ter esse cuidado para que a mulher negra não seja colocada nesse lugar de raivosa, mas também acho que tem uma facilidade muito grande que a gente não percebe a sensibilidade dessas mulheres, que já é muito bagunçada pelo contexto social. O que eu tento fazer é simplesmente sentir o que aquela personagem me pede. É um trabalho duplo porque, ao mesmo tempo em que tenho que ver tudo que estou representando ali, também tento não pensar tanto nisso. Afinal, diariamente, como mulher negra, eu não penso em como eu estou expressando os sentimentos e as minhas vontades ou se isso está sendo lido de maneira raivosa”, explica.

Papel da representatividade no audiovisual brasileiro

Ao ser questionada sobre a representatividade de pessoas pretas em espaços e momentos que exijam o debate de pautas antirracistas e de valorização às vidas negras, a artista não tardou a responder que essa tendência, sobretudo do mercado audiovisual, obedece a um “movimento de necessidade”. A atriz acredita que a emergência da discussão de certas pautas culminou na criação de personagens envoltos em contextos sociais que as exploram.

Mais uma vez, ela enfatiza a busca constante pela tentativa de dar o “direito de apenas sentir” aos seus personagens, algo que avalia não ser tão dado a ela e a população preta no geral. Porém, a intérprete de Valentina também direciona a responsabilidade da abordagem de pautas sociais por parte de personagens brancos, homens e cis.

Aos 26 anos, Emira Sophia se torna uma potente atriz preta no mercado cultural brasileiro

Aos 26 anos, Emira Sophia se torna uma potente atriz preta no mercado cultural brasileiro (Foto: Victor Takayama)

“Acho que temos que tomar cuidado para que esses personagens não virem apenas panfletos. Então, é um jogo constante entre fazer o que é necessário, no sentido de trazer essas discussões para o público, mas sem deixar que isso se torne algo raso. Porque a gente também precisa humanizar essas pessoas o tempo todo. Afinal, mesmo falando da desumanização delas, a gente pode cair no lugar desse lugar de desumanizar”.

Pesquisa do corpo

Emira detalha o tipo de relação que estabeleceu com o próprio corpo ao longo dos projetos. “Eu sempre me interessei pela performance e pela pesquisa do corpo como a construção de uma imagem. Por isso, a dança foi um lugar muito orgânico. Nunca estudei dança de fato, mas sempre senti a necessidade de me expressar através do meu corpo. Cheguei a compartilhar isso na internet algumas vezes, mas ‘Passei da Fase’ foi a primeira chance profissional de eu expressar isso. Foi um grande desafio, mas muito gratificante porque senti a potência deste outro lugar da expressão artística sem a palavra, que eu não explorava tanto”, identifica a atriz.

De acordo com ela, as tentativas de encontrar verdades na narrativa reproduzida por meio do corpo e da potencialização dele sem as palavras se tornaram um trabalho sensível no seu portfólio. Apesar de considerar uma experiência bonita, a atriz de 26 anos enxerga o trabalho como uma superação e descobertas pessoais “em lugares de muito respeito”.