*por Vítor Antunes
“Impuros” é uma das mais bem sucedidas séries do Star+. Por seu trabalho no projeto, Raphael Logam foi indicado ao Emmy e a série passou a ser aclamada. Atualmente estima-se que será exibida até a quinta temporada. A trama, dirigida por René Sampaio e Tomás Portella, aborda a ascensão do crime organizado tanto na capital fluminense como a chegada de grupos criminosos oriundos de São Paulo. A quarta temporada representa justamente este momento, aprofundado na quinta. Jean Marcel Gatti, que entra no fim da quarta temporada, tem uma ótica crítica à política de combate às drogas, que resultou num maior poderio do tráfico ao correr dos anos – haja vista que “Impuros” se passa nos anos 1990: “Quanto à política de combate às drogas, a única coisa que evoluiu foi o próprio tráfico. O braço paulistano do crime, por exemplo, é super organizado, tanto que é difícil bater de frente”.
Além da série, seu primeiro grande projeto no audiovisual, o ator celebra o prêmio que recebeu no Festival Internacional de Cinema de Caeté (FICCA) em Cabo Verde e Portugal por “Não dá pra viver só de amor“. “Ele conta um pouco de mim, talvez especialmente pelas angustias decorrentes da pandemia” . O artista, que também é palhaço, acredita que esta ferramenta o ajudou a despir-se da vaidade pra compor Coisa Ruim, seu personagem em “Impuros”, ao fazer troça com a própria calvície. “Eu sou calvo. Numa das cenas, depois da mais profunda violência, tiro um pente e faço como se estivesse penteando o cabelo [que não tem]”, diz ele. Natural de Itu (SP), o artista precisou trabalhar como entregador de água e gelo na praia de Copacabana, Rio, além de diversas academias de ginástica, como recepcionista, para apostar no sonho de ser ator.
VAIDOSO, FURIOSO E MATADOR
Ao falarmos do Diabo, muitos são os nomes dados a ele: Catiço, Belzebu, Tinhoso… Um dos nomes igualmente citados é justamente aquele pelo qual é nomeado o personagem de Jean Marcel Gatti em “Impuros“: Coisa Ruim. O nome não parece inapropriado. O “Coisa” é fissurado em matar, além de ser profundamente vaidoso. Tanto que ainda que ostente uma calva, não abre mão de pentear-se. Esse recurso, seu intérprete traz da arte da palhaçaria: “A vaidade, o humanizou. Optei por, depois de uma cena profundamente violenta, tirar um pente e pentear os cabelos”, fala o ator sobre a atitude que traz em si alguma comicidade que dialoga com o claunesco.
O personagem de Jean Marcel entra no fim da quarta temporada da série, que estreia agora em junho, e só se avoluma na quinta, momento em que o seu personagem ganha importância. Inclusive este é o primeiro grande papel do ator no audiovisual. Ele já fez filmes e séries, mas nunca esteve numa novela, por exemplo. “Coisa Ruim marca uma parceria entre os comandos criminosos do Rio e de São Paulo – ele é o braço direito do Marcondes (Nicko Silva), igualmente inspirado em outro bandido real. Eu me inspirei, igualmente, num personagem existente. Busquei sua ficha criminal, vi uma série baseada em sua vida, especialmente em razão de o “Coisa” ser paulistano e não carioca”, afirma.
O ator lamenta a falta de programas sociais em comunidades vulnerabilizadas, bem como o desperdício de pessoas talentosas e potentes, como seria o Evandro do Dendê (Raphael Logam) se não houvesse se bandeado para o crime. “Faltam políticas públicas nas escolas, algo que incentive os alunos a transformem-se em artistas. Quanto à série, ainda que Evandro seja traficante, é muito inteligente. A forma como ele é inserido na trama revela que a muitas pessoas falta oportunidades, chances. Evandro é estrategista. É alguém que poderia ter dado certo se tivesse oportunidade fora do tráfico”.
Quanto à política de combate às drogas, a única coisa que evoluiu foi o próprio trafico. O braço paulistano do crime, por exemplo, é super organizado, tanto que é difícil bater de frente” – Jean Marcel Gatti
PERDER E GANHAR E PERDER
Jean Marcel estuda e pratica a palhaçaria há anos. Apesar de ter sido o aluno do “fundão da classe” o fato de ser palhaço só surge depois, na fase adulta. “Comecei a fazer palhaçaria com o Patrick Sonata e o Marcelo Magano“. Sonata é cria da Cidade de Deus, periférico, e um dos poucos palhaços pretos. Patrick hoje está na equipe de criação de “Pablo e Luisão”, série produzida pela Globo. Com seus mestres, Gatti diz haver aprendido que “ser palhaço é difícil é muita a exposição do seu verdadeiro eu. A graça mora muito na identificação: O outro não existe. O outro é você mesmo”.
Para os palhaços, diz Jean, a piada está no erro e o que o ator quer mais fazer é acertar. O palhaço, a contrário, tem que errar para dar certo e é aí onde reside a beleza dele. Tanto que a nossa palavra de ordem antes de entrar em cena é “vamos perder”. Tanto a comédia como a palhaçaria não me levaram a experienciar a solidão. Mas neste ofício, temos que pegar o ego, amassar, pisar e esfarela-lo”. A premissa da perda, aliás, fez com que pesquisadores resolvessem estudar se há alguma relação entre a depressão e a profissão de comediantes/humoristas/clowns. Em 2014, acadêmicos da Universidade de Oxford publicaram um estudo no qual participaram 523 comediantes – sendo 404 homens e 119 mulheres – do Reino Unido, dos Estados Unidos e da Austrália a fim de investigar algum traço de mania e/ou depressão nestes profissionais. Gordon Claridge, pesquisador do Departamento de Psicologia Experimental daquela universidade, afirmou que “comediantes têm um perfil de personalidade pouco comum e um tanto contraditório. Por um lado, são bastante introvertidos, depressivos e, por outro, eles são bastante extrovertidos e cheios de manias. Talvez a comédia – o lado extrovertido – seja uma forma de lidar com o lado depressivo. Mas, claro, isso não vale para todo comediante”.
Para afirmar-se como ator, Gatti passou pelos desafios inerentes àqueles que vêm de cidades do interior. Nascido em Itu (SP), filho de pais professores e moradores de uma vila, Jean batalhou: “Já trabalhei de entregador de água e gelo na praia de Copacabana, de recepcionista de academia, de estoquista. Mas a maior dificuldade foi quando trabalhei de estoquista. Meu turno era das 7h às 18h. Saía do trabalho, pegava a bicicleta, ia para a escola de teatro em Botafogo suado, trocava de roupa e ia direto para a aula que durava até 22h”. Porém, a dureza parece ter ficado no passado. Parece. “Hoje eu consigo viver só de arte, como ator e diretor, e me estabelecer. Porém, ainda temo ante à instabilidade da profissão”.
Ainda durante a pandemia, Jean Marcel fez um filme chamado “Não dá para viver só de amor“, que ganhou prêmio em Cabo Verde. Estará, também, junto a Raphael Logam em outro trabalho “Matches”, onde vive um palhaço. Também fará “Esta Noite Seremos Felizes“, filme que celebra os 90 anos de Othon Bastos e que vai correr pelos festivais.
Jean Marcel contou-nos que, além de ator foi músico e teve um grupo de pagode chamado “Atração”. O conjunto fez algum sucesso, abrindo, inclusive, shows de grandes grupos como o Sorriso Maroto. Profundamente ligado ao ritmo, Gatti se diz saudoso de tocar, mas vaticina: “Voltar a fazer show”. Reza o anedotário que tudo em Itu é grande. Gatti é a prova de que os sonhos de um ituano também são.
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