Ator de filme internacional, Junior Vieira choca ao lembrar que perdeu papel em série por números de seguidores


Protagonista de ‘O Último Animal’, do português Leonel Vieira, que concorre no Festival de Cinema de Gramado, ele atuou na novela ‘Nos tempos do Imperador’, na Globo, e está em ‘Impuros’, na Amazon, e ‘Era Uma Vez Uma História’, na Warner. Hoje, Junior desenvolve roteiro para filme de Fernando Meirelles e lembra o que já enfrentou por não ser “bombado” nas redes. “O problema é desse mercado totalmente doente pelo número de seguidores. Prefiro vida real”

* Por Carlos Lima Costa

O que vale mais para conquistar um papel na ficção, o talento ou o número de seguidores nas redes sociais? Com 20 anos de carreira, o ator, diretor e roteirista Junior Vieira, protagonista do longa-metragem internacional O Último Animal, do português Leonel Vieira, que concorre no Festival de Cinema de Gramado, este mês, e que, no momento, desenvolve roteiro para um filme que terá a produção executiva do cineasta Fernando Meirelles, ficou incrédulo ao perder um papel em uma série por não ter uma grande quantidade de seguidores no Instagram (são 41 mil). “O problema é desse mercado totalmente doente pelo número de seguidores. Desqualificar quem não tenha um número tão alto torna esse lugar muito adoecido. Já está tão difícil trabalhar no Brasil. Se a gente não conseguir acreditar pelo menos na nossa arte fica pior ainda. Parece que o preço pra fama é o número de seguidores. Os meus valores são outros. Uma pessoa dita ‘influencer’ não garante a qualidade do trabalho, nem ser esse chamariz todo”, enfatiza.

Ao relembrar o caso, relata o momento de frustração. “Senti muito, porque fiz muitos testes, tenho diversos áudios do diretor, dos produtores, da galera me elogiando dizendo que era eu e aí a primeira porrada foi quando falaram que eu não era tão novo para o papel do protagonista. Na sequência, me ligaram para fazer teste para outro produto: uma participação pequena como um traficante, personagem totalmente estereotipado, que não tinha nem nome. Achei um desrespeito comigo e com a minha trajetória. Veio o terceiro telefonema para novo teste e não fui escolhido, porque não sou bombado, por conta do número de seguidores nas redes”.

Junior Vieira escreve roteiro de filme para Fernando Meirelles produzir e revela ter perdido papel por não ser bombado nas redes (Foto: Roney Lucio)

Junior está longe de ser aquela pessoa que faz inúmeras postagens. “Eu sou um cara que posto muito pouco, divulgo mais o meu trabalho, não é o meu dia a dia sendo colocado ali. Até poderia fazer isso a partir do momento que gera uma questão financeira, mas estou preocupado muito mais em melhorar tudo que tenho feito, o que escrevo, meu lado ator, diretor, do que ficar postando sobre a minha vida, o meu dia a dia, o meu diário de bordo para as pessoas que eu nem sei quem são. Para que ficar alimentando uma vaidade, um ego desnecessário. Muita gente entra em depressão por isso, porque você vende uma imagem que nem sempre é real. Às vezes, você está chateado, com a casa toda bagunçada e está lá sorrindo, dançando para mostrar uma vida de ilusão para as pessoas. Prefiro viver a vida real. Quem é feliz com isso que seja feliz”, acrescenta.

PARCERIA COM QUEM CONSIDERA UM MESTRE MÁXIMO

Junior tem diversificados trabalhos no currículo. No teatro, por exemplo, brilhou em Martinho da Vila 8.0 – Uma Filosofia de Vida, como um dos intérpretes do homenageado. Nas plataformas digitais, pode ser visto em Impuros, na Amazon, em Era Uma Vez Uma História, na Warner, em Tô de Graça, no Multishow, em Galera FC, na HBO Max. Recentemente, participou da novela Nos Tempos do Imperador, na Globo. Agora, vive momento especial como roteirista, na parceria com o cineasta Fernando Meirelles, indicado ao Oscar de Melhor Diretor por Cidade de Deus, e ao Globo de Ouro, por O Jardineiro Fiel. Esse encontro profissional é motivo de orgulho e resgata memórias importantes.

“Pra mim, Cidade de Deus é o melhor longa de todos os tempos. Mexe muito comigo. Foi um filme que eu assisti no cinema e fiquei impactado. Foi ali que eu entendi que podia fazer arte também, porque foi logo na sequência que eu comecei a estudar, a trabalhar. Desde então, quis trabalhar com Fernando Meirelles. Eu o considero um mestre máximo”, recorda Junior, que entrou no atual projeto, que vai se passar totalmente na favela, ao ser chamado pelo roteirista Renê Belmonte, de filmes como Se Eu Fosse Você e Assalto ao Banco Central. Os dois fizeram o argumento e, agora, estão escrevendo o roteiro do longa que vai ter a produção executiva de Meirelles, pela O2.

E só tem elogios para o aclamado cineasta: “É uma pessoa incrível, bem tranquila, que deixa a gente muito a vontade. Eu disse: ‘Você é foda, disputou o Oscar, tem vários trabalhos com uma galera importante’ e ele falou que é superestimado, que não é isso tudo. É muito humilde, isso me deixou confortável e saber que um cara desse, se você mandar uma mensagem para ele agora, ele te responde daqui a 15 minutos. Tem gente que eu mando mensagem e fica duas semanas sem me responder. Por outro lado, têm pessoas que nem falavam comigo e, agora, descobrem o que tenho feito nessa área de roteiro e vêm me pedir emprego. Acho bizarro esse pessoal que só quer estar com você, falar contigo pelo que você faz, não pelo que você é. Então, me distancio de pessoas assim”, ressalta Junior, que deve entregar a versão final do roteiro em novembro para que o filme seja produzido ano que vem.

Como ator, o Brasil tem representantes como Rodrigo Santoro e Alice Braga brilhando no cinema americano. Junior deseja seguir essa trilha. O diretor português Leonel Vieira, de O Último Animal, no qual Junior fala em inglês, já o convidou e ele deve rodar outro longa, desta vez em Portugal, no segundo semestre. “Obviamente, gostaria de abrir esse nicho. A palavra ‘estudo’ está sempre no repertório. Gosto de estudar, quero sempre potencializar e melhorar os trabalhos que tenho feito para abrir espaços. Eu quero ir para o mundo, mas, antes, quero abrir um caminho no Maranhão”, diz ele, que nasceu nesse estado da região Nordeste, mas vive no Rio desde um ano de idade.

“Sinto sempre uma energia muito forte me ligando ao Nordeste. Desde pequeno, eu lido com o bullying, com o preconceito. Quando me perguntavam onde nasci, eu sempre respondi Maranhão. Me chamavam de ‘paraíba’ de forma totalmente pejorativa e eu sou maranhense. Podia muito bem falar que sou carioca, porque tenho sotaque, cheguei aqui com um ano e meio de idade, mas quero ir para o Maranhão, viver lá. Brinco que sou maranhoca. Quero que as pessoas tenham orgulho de ter um artista maranhense. Não cresci lá, mas tenho orgulho muito grande daquele lugar. Quero conquistar o Maranhão e, se tiver oportunidade, quero trabalhar fora do Brasil. Tomara que esse filme abra portas”, torce.

Com Fernando Meirelles, o ator e roteirista Junior Vieira mostra orgulho da parceria com o aclamado diretor (Foto: Reprodução Instagram)

De origem humilde, quando chegou com a família no Rio, foi criado em favelas como Parque União, Maré, Engenho da Rainha e o Morro do São João. Amigos de infância, se perderam para o tráfico. “Tem umas duas semanas que fui no Morro de São João visitar amigos, parentes. A minha sobrinha vive lá com a mãe, é filha do meu falecido irmão. Quero melhorar a favela. Tem a desigualdade social, as pessoas estão passando necessidades, então, fico com o coração partido tentando ajudar de alguma forma com projetos efetivos e sociais, mas tem que ter o poder público ali também”, observa.

VINTE ANOS DE TRAJETÓRIA ARTÍSTICA

Essa origem acabou o levando para a função de Diretor Assistente do filme Nosso Sonho, concluído recentemente, sobre Claudinho (1975-2002) e Buchecha, interpretados respectivamente por Lucas Penteado e Juan Paiva, com direção geral de Eduardo Albergaria. “Quando entendeu que precisava ter alguém, que comunicasse diretamente com a favela, com esses atores pretos, periféricos, ele me convidou para estar ao lado dele. Fomos grandes parceiros nesse filme, que deve ser lançado no começo de 2023”, conta ele. Como ator está em Eike – Tudo Ou Nada, mostrando a ascensão e queda do empresário Eike Batista. E, em setembro vai rodar Madame Durocher, sobre a história da primeira mulher parteira no Brasil, a francesa Marie Josephine Mathilde Durocher (1809-1893).

Tem sido uma trajetória de labuta, batalha, muita porrada e choro, vontade de desistir em vários momentos, mas estou feliz. Ainda sou exceção. Quero mostrar para o mundo que em várias periferias ou favelas do Brasil tem muita gente talentosa – Junior Vieira

Assim, motivos não faltam para celebrar os 20 anos de carreira. “Tem sido uma trajetória de labuta, batalha, muita porrada e choro, vontade de desistir em vários momentos, mas estou feliz de ver que estou honrando o que minha família e minha mãe fizeram. Como diz o Emicida, minha mãe me deu caráter. Quero muito mais. Enquanto minha mãe estiver limpando o chão dos outros eu não vou sentir que cheguei lá. Quero dar uma vida boa para a minha família, pra mim e para os meus semelhantes. E quero que as favelas melhorem, potencializem. Eu sou exceção ainda nesse lugar. Então, quero mostrar para o mundo que em várias periferias ou favelas do Brasil ou do mundo tem muita gente talentosa precisando somente de uma oportunidade”, assegura.

E agradece a uma pessoa em especial. “Algo que eu tenho muito forte em mim é a gratidão. Sou muito grato as pessoas que me ajudaram. A Andrea Avancini foi uma mãe para mim. Fui aluno dela. Devo tudo a ela. Eu fiz a primeira e a segunda aula gratuita no curso de Andrea. Era 2003, morava na favela com minha mãe e dois irmãos. Ela estava empolgada, achava que eu era supertalentoso, agradeci e avisei que não tinha como pagar, mas ela resolveu me dar bolsa integral, me indicou para novela, me colocou na agência 40 Graus, do Sérgio Mattos, para trabalhar como modelo. Consegui ganhar uma grana com isso e mudar um pouco a vida da minha família dessa forma. Se ela não tivesse feito isso de repente a minha vida seria outra e eu nem seria artista”, comenta.

Aos 35 anos de idade, Junior Vieira celebra 20 anos de carreira (Foto: Roney Lucio)

E prossegue: “Fiz tanta coisa, trabalhei como motorista de aplicativo, vendedor de loja… Hoje, consigo dar uma vida melhor para a minha família, vivendo um momento muito feliz e abençoado, porque estou trabalhando muito bem nas três esferas, tanto como roteirista, quanto diretor e ator. Então, estou conseguindo manter um status quo que é bem raro para um jovem negro. E nesse momento, estreando em Gramado, com um longa internacional que eu sou protagonista. É um filme bem aclamado pelo que eu estou vendo da galera que já assistiu. Eu escrevendo o filme que vai ter a produção do Fernando Meirelles… Isso tudo me deixa muito feliz”, constata.

Sou grato as pessoas que me ajudaram. Andrea Avancini foi uma mãe pra mim. Devo tudo a ela, que me deu bolsa integral em seu curso, me indicou para novelas. Se ela não tivesse feito isso de repente a minha vida seria outra e eu nem seria artista – Junior Vieira

“Na verdade, escrever e dirigir foi mais para me colocar no cenário, porque quando você é só ator, você depende da ligação do outro, precisa que alguém te indique para te convidarem para algum trabalho. A partir do momento que você cria as suas histórias, suas narrativas, você potencializa quem você é. E com isso as pessoas começaram a me respeitar mais por eu conseguir entrar naquelas bolhas fechadas. Confio muito no que eu faço e outras pessoas estão confiando, tanto que estou ganhando prêmios, fazendo trabalhos de qualidade, trabalhando com pessoas importantes, mas só fiz isso porque eu sabia que precisava trabalhar como ator. Quase ninguém olhava direito pra mim. A partir disso começaram a me olhar com mais carinho”, reforça.

DA PERIFERIA PARA A ASSEMBLEIA DAS NAÇÕES UNIDAS

O filme O Último Animal concorre a Melhor Filme na 50ª edição do Festival de Cinema de Gramado, que será realizado entre os dias 12 e 20. Ele interpreta Didi, jovem da periferia que tenta vida diferente do irmão que é dono do morro do Coral. Se forma em contabilidade, consegue emprego em uma multinacional, mas após uma série de situações vira chefe do tráfico. “Morei em favela desde que me conheço por gente. Deve ter cinco, seis anos no máximo que eu saí da favela, mas mais de 90% da minha vida é dentro de periferia e vi tudo que você já pensou de atrocidade, mas muitas coisas boas também, porque a favela também é potência. Meu irmão (Leoni Vieira) foi assassinado perto do Morro de São João. Isso me impactou. Nessa época, já estava morando em Ipanema. Eu saí fisicamente por causa da violência, questões de qualidade de vida e a ideia era tirar a minha família desse lugar, mas não dava para tirar todo mundo, então, ele sofreu esse atentado, esse assassinato que mexeu muito comigo, ele e a Marielle Franco (1979-2018), que era uma amiga próxima e que foi assassinada uns quatro meses antes. Ali que eu virei a chave e falei tenho que fazer algo. No caso do meu irmão, os policiais acharam que o carro era roubado e assassinaram ele. Bateu com o carro e fuzilaram o carro. Foi um caso de repercussão. Diante disso, criei o projeto Quero Ser Feliz”, relembra.

Era um vídeo manifesto, baseado no Rap da Felicidade (‘Eu só quero é ser feliz/Andar tranquilamente na favela onde eu nasci/E poder me orgulhar/E ter a consciência que o pobre tem seu lugar). Nesse projeto tiveram 47 porta-vozes falando e interpretando a letra dessa música usando intervenções pessoais. Aí viralizou, abriu a Assembleia Geral da ONU, em Nova York. A partir disso, veio convite do departamento de responsabilidade da Globo para dirigir as campanhas de negritude Tudo Começa Pelo Respeito.

E fala da participação de artistas negros na ficção. “O David Junior, por exemplo, eu até o preparei para a novela das sete Pega Pega, que ele fazia o Dom, herdeiro da personagem da Irene Ravache. O que me incomodava é que sempre quando tem um negro num lugar de poder tem que ter uma justificativa para ele estar naquele espaço. Ele só podia ser um empresário muito famoso, porque ele era um cara adotado. Isso é um lugar que está mudando, se refletindo a partir do momento que estão tendo narrativas negras sendo feitas e tendo autores negros ali. A gente precisa de diretores pretos, produtores pretos, para que também consigam falar da nossa história. Obviamente todo mundo pode falar, eu posso falar sobre mulher, sobre indígena, mas quando você tem propriedade para falar disso, consegue transitar de uma forma mais coerente”, finaliza.