*Por Brunna Condini
Sessenta anos separam 1960 de 2020, no entanto, algumas questões ainda demandam a atenção e mudanças urgentes, como o racismo, a violência contra a mulher, o machismo, e os preconceitos que rondam a diversidade que habita o mundo. A segunda temporada da série Coisa Mais Linda, que estreou nesta sexta-feira (19), na Netflix, está de olho nestes temas que infelizmente, ainda continuam contemporâneos. Além disso, a produção joga luz na força da coletividade feminina e no fortalecimento da sororidade, que desde lá, alimenta as mulheres em busca de equidade de gênero, e aí falamos de oportunidades iguais, justiça e independência. A nova temporada, com seis episódios, traz Larissa Nunes, que dá vida à Ivone, a irmã mais nova de Adélia (Pathy DeJesus).
“Ela terá sua história mais desenvolvida, com mais conflitos. Mesmo sendo a caçula, Ivone tem personalidade forte, é ousada, rebelde e um pouco despreparada. Embora a trama se passe nos anos 1960, há traços muito marcantes e atuais nesta personagem, que carrega uma certa inconformidade com a situação dela e da irmã”, detalha Larissa. “A série levanta debates sobre a luta das mulheres em diversas instâncias sociais, todas estão buscando espaço, em especial as mulheres negras, que já trabalhavam para conseguir sobreviver, enfrentando machismo, racismo e falta de apoio. A Ivone é o retrato da juventude preta dos anos 1960, periférica, e não está no lugar estereotipado. Ela tem um lugar mais spicy, destemida, vanguardista, mas não elabora isso como as outras, é muito mais a vivência do processo de autonomia da mulher, do que a elaboração disso”.
A nova história traz Malu, vivida por Maria Casadevall tentando se recuperar do desfecho da primeira temporada da trama, e ainda tendo que lidar com o marido Pedro (Kiko Bertholini), o mesmo que não foi bacana com ela e motivou a criação da boate que dá nome à série. Lígia (Fernanda Vasconcellos) teve seu desfecho na primeira temporada. Já Thereza (Mel Lisboa), se esforça para se adaptar à nova vida, e Adélia (Patty Dejesus) enfrenta graves dificuldades. É neste contexto, que Ivone, personagem de Larissa, cresce e aparece. “Com a Malu, ela tem essa parceria profissional. O encontro com a Ivone é muito importante para a Malu, é um retorno para a música”, destaca, mas avisa: “Não se trata de uma substituição da personagem da Lígia. A Ivone tem um desejo de espaço, um lugar de autonomia e as pessoas vão poder conhecê-la melhor”.
E nós, vamos poder conhecer melhor o trabalho da Larissa, que tem 24 anos, é paulista da zona norte (Santana), formada pela Escola de Arte Dramática (USP), e participou do espetáculo-show Ícaro and The Black Stars, ao lado de Ícaro Silva, que também está na série. Ela vive seu primeiro papel de destaque no audiovisual com Coisa mais Linda. Mas guardem esse nome: Larissa Nunes. E ao ler a entrevista dela para o site, vocês entenderão o porquê.
Feita de som
Apesar da separação temporal, a atriz se vê muito na personagem. “Canto desde os 5 anos e comecei a compor aos 12. Ivone está se desenvolvendo como cantora. Ela me trouxe novos contextos musicais, da Bossa Nova e do Samba, trouxe esse encontro”, conta. “Quando a minha carreira de atriz começou, deixei de lado o sonho de ser cantora. Mas em 2017, encontrei a Carranca Records, um coletivo de rap paulistano, e eles me convenceram a gravar “LARINU”, meu primeiro EP, com três faixas autorais. Foi aí que me dei o apelido Larinu, para diferenciar a carreira de atriz com a de cantora. Agora estou me desenvolvendo na carreira musical de forma independente”.
Com a estreia da produção da Netflix, Larissa tem se dedicado mais à música. Tanto que lançou direto da quarentena, seu segundo EP, “Quando Ismália Enlouqueceu...”, que ela chama de uma mixtape de confinamento. “Gravei de casa, é um desabafo feito durante os primeiros dias. Sempre tive a arte como um refúgio e aos poucos, fui querendo levar isso mais a sério. Gosto de dizer que nasci com essa vontade e fui só desenvolvendo”, ressalta. E completa: “Sou compositora e o isolamento físico me fez escrever muito. Fiz esse trabalho, muito inspirada pela poesia. Me inspirei no poema do Alphonsus Guimaraes, gravei coisas com o celular, com a produção do beatmaker Eric Beatz. É um álbum despretensioso, mas é bom vem que repercutiu. Fala da sensação de solidão, de quando a gente vai poder se abraçar, tocar. É confessional, é íntimo, fico feliz quando as pessoas se identificam”.
Larissa está em quarentena com a mãe Josi, e seu Lhasa Apso Thor. “É bom, porque tem afeto de sobra, colo. E a saudade dos amigos mato através de vídeo chamadas”. Ela aproveita para revelar um sonho que só cresce: “Quero levar a carreira de atriz e a de cantora de forma natural. Sou do movimento. Estou me dedicando à música porque o processo da série terminou. Mas o grande desejo é que as pessoas conheçam também o meu trabalho na música. Tenho muita vontade de fechar com um selo para dividir projetos, ideias comigo, e para que o grande público me conheça”. Alô, gravadoras!
De 1960 para 2020: e aí?
“Não dá para negar que tivemos melhorias institucionais para nós mulheres, e nós pessoas pretas. E por isso, agradeço a todos que vieram antes de mim”, aponta Larissa. “No entanto, por mais que tenhamos conquistado espaços, ainda temos muito pela frente. É sistêmico. A série traz essa reflexão e estamos lançando ela hoje, em um momento, por exemplo, que infelizmente, a violência doméstica ainda está muito em voga, por conta do isolamento. Mas hoje os movimentos trazem uma questão de urgência que os temas precisam, que nos anos 1960 não tínhamos. Hoje eu posso reagir contra o racismo, mas minha avó já não podia”.
Muitos artistas e profissionais com visibilidade vêm se engajando com mais firmeza na luta antirracista. Acha que este pode ser um caminho para ampliar as vozes e fazer transformações duráveis? “Acho ótimo o que tem acontecido. Essa coisa de artistas, aliados, emprestando as redes e seguidores, para o alcance ser maior, é muito bom. Mas precisamos de ações permanentes. Sabe por que digo isso? Porque senão a questão será sempre de quem sente a dor. E não é. O racismo é da conta de todo mundo. É preciso se posicionar, mas o desejo de mudança tem que ser real. Essa luta sempre esteve entre nós. A perda da juventude preta é diária. Essa transformação não é fácil, mas é urgente, porque vivemos em uma sociedade com estrutura patriarcal e machista há muito tempo”.
Lugar de fala
Larissa diz que o passar dos anos trouxeram outra forma de observar a questão e se posicionar. “Quando eu era mais nova tinha um discurso mais bélico. Mas você amadurecer ajuda a ter mais sabedoria para se expressar, para dizer como essas questões a afetam, como a opressão te transformou. Hoje aprendo muito mais ouvindo quem veio antes de mim, todas essas mulheres pretas. Meu discurso está em um processo de amadurecimento. Hoje escuto mais antes de falar o que penso, e penso mais antes de elaborar sobre os pensamentos. E entendo, que as pessoas brancas, a sociedade como um todo, precisa responder por si, pelo racismo, quero que eles vivam um processo de conscientização. É normal que nós tenhamos cansado um pouco de falarmos as mesmas coisas. O que quero dizer, é que esse movimento de conscientização precisa ser autônomo, independente”.
E chama à atenção para a constante banalização do racismo. “Se alguém banaliza a dor do outro, não tem escuta. Nestes casos, fica mais difícil o diálogo. Não tem como justificar uma questão que para você já começa na dor. E se dói, o outro já tem que ter atenção. O racismo começa na dor e na sensação de não reparação, de não transformação. O que me dói mais? Entender e ver que muita gente não quer escutar. Muitos dizem que nós pretos estamos sendo repetitivos na fala, mas não é essa a questão. O problema é que se repete”. E segue dividindo: “As pessoas precisam se ouvir e tomarem parte do problema. Falo de escuta ativa. Alguém que ouve e sente vontade de fazer algo, se sente sensibilizado com o problema. Falo do meu ponto de vista como mulher preta, mas essa fala reverbera em outros grupos que estão à margem da sociedade. Outra coisa, é entender que as pessoas pretas não são iguais, como as brancas não são. Cada preto tem sua história, mas muitas vezes quando falam com um, acham que estão falando com um representante de todos. Cada pessoa preta tem a sua sensibilidade, vivência no mundo. Passamos pelas mesmas dores e traumas, mas cada um vai se entender com esses traumas da sua maneira. Imagina se o Donald Trump ou o Jair Bolsonaro fossem tidos com os representantes de todos os brancos? Precisamos entender pessoas pretas com diversidade, com um olhar que humaniza. Esse é um olhar que desejo para as próximas dramaturgias. Sem esteriótipos”.
Sem preconceito e pela diversidade
Ela conta que sentiu desde cedo o racismo estrutural, enraizado em nossa sociedade. “Me afeta em todos os sentidos da minha vida. Minha primeira experiência foi com 6 anos. Morava em Taboão da Serra, na grande São Paulo, estava brincando com um casal de gêmeas na rua, e de repente, elas tiveram que entrar. Lembro que fiquei esperando duas, três horas para voltarem. Queria brincar, era uma criança. As meninas ficaram na janela, e uma hora, a avó delas disse que não iam sair porque eu era preta”, recorda. “Minha mãe foi até lá, tentar conversar. Mas desde então, ela foi muito presente sobres essas questões na minha vida, disse: é isso, o mundo é isso. Vivemos esse racismo, preconceito, mas quero que você se sinta potente. Minha mãe sempre foi precisa em relação a isso: você vai viver isso, mas não se sinta incapacitada para viver seus sonhos, desejos”.
Para a artista, a ideia de “mundo novo”, que tantos falam pós pandemia, não pede uma visão idealista, e sim, de ação. “Esse mundo tem que começar em você, no seu movimento, precisamos entender a necessidade de pensar no coletivo. Estamos vendo o quanto ficarmos isolados é difícil. Estamos vendo que estar na rua não é só sobre você. E sempre foi sobre o todo, o coletivo. Se você perceber isso, já é meio caminho andado, já vamos fazer diferente. O mundo não parou, mas as pessoas estão meio interditadas. E agradeço, se pelo menos um por cento da população, pensar mesmo em viver de uma maneira melhor. É vital acreditar na mudança, questão de necessidade humana. E também aproveitar os momentos bons, que estão dando certo. Apreciar essa vida que se apresenta e estarmos em movimento”.
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