* Por Vítor Antunes
O contexto histórico no qual surge o ator Guthierry Sotero é o da própria revolução de costumes na arte. Não só por ser um menino preto com papel de destaque e não repetir o estereótipo que costuma caber aos negros na teledramaturgia, mas por, despretensiosamente, estar na centralidade de algumas discussões sobre a multiplicidade dos personagens nas novelas. Foi um menino bissexual em “Vai na Fé” e agora vive um nordestino em “No Rancho Fundo“. Uma questão, já que ele é carioca, da Favela da Maré. “Eu sinto muito o contato do público nas ruas, especialmente os nordestinos. Essa novela é um desafio por conta da barreira linguística, e me percebo capaz de fazer um personagem de qualquer região, visto que sou carioca da gema. Tinha essa insegurança de interpretar outros sotaques, mas hoje me sinto pronto e realizado”.
O fato de ser um cria da favela permite a ele um lugar de fala profundo que só compete àquele que testemunha e conhece de perto a realidade. No início deste mês, dois meninos negros foram abordados por policiais cariocas de forma truculenta. Inicialmente compreendidos como bandidos em potencial, causou escândalo que, ao contrário do que o estereótipo dizia, os rapazes eram filhos de diplomatas. Razão pela qual a truculência policial foi ponderada, mas que poderia ser vista com naturalidade se fossem meninos favelados. É o que Guthierry argumenta, especialmente por ele ter sido alvo de truculência policial, tanto por ser preto como por ser da favela:
A primeira abordagem agressiva a que passei foi quando eu tinha 11 ou 12 anos e voltava com o meu primo mais velho do bairro de Bonsucesso. Fomos na Avenida Guilherme Maxwell, uma das entradas da Maré, e os policiais foram super truculentos, colocaram fuzil no meu rosto, deram coronhada na minha mão com o fuzil. Quanto ao meu primo, que é mais claro do que eu, só questionaram se o NeoSoro (remédio descongestionante nasal) era legítimo ou se era droga. Isso que viralizou recentemente acontece desde sempre, eu já vivenciei e já vi acontecer com os outros. O que difere é que não tinham câmeras e que não temos pessoas influentes na família.” – Guthierry Sotero
Ainda de acordo com o ator é necessário que pautas assim sejam levantadas, mas ele lamenta que estejam sempre na superficialidade. “Daqui a duas semanas vão esquecer desse caso, porque outros não serão televisionados e vão continuar a acontecer no Brasil. Precisamos ter leis mais severas para esse tipo de caso. Os policiais que assassinaram o João Pedro em 2020 acabaram de ser absolvidos. Eles têm um plano de extermínio para nos matar e continuar impunes, isso sempre aconteceu”.
Acredito que falar ‘a favela venceu’ é uma mera frase de efeito. Na minha cabeça não faz sentido essa frase. Se uma pessoa ‘vence’ na vida e sai da pobreza, isso diz sobre ela. Não adianta eu ter a minha vida estabilizada, comprar coisas que sempre quis ter e ver a dispensa cheia, enquanto o meu vizinho não tem o que comer. Isso está mais para ‘eu estou vencendo’ do que propriamente ‘a favela venceu’. Nela, continua a haver gente desempregada e que tem que se virar para botar comida na mesa.” – Guthierry Sotero
ESPELHO
Para este ano, Guthierry vai, obviamente, prosseguir na novela “No Rancho Fundo”, mas também direcionando esforços para solidificar sua carreira. “Quero seguir trabalhando, estudando, me exercitando e em movimento. Estou na flor da idade, não tem por que descansar agora. Quero focar um pouco mais na música e engatar outros projetos também, não curto muito ficar parado. Gosto de estar exercendo o meu ofício e que esse ciclo de projetos contínuos prossiga”.
Artista múltiplo, ele também sonha em investir no rap e trazer sua verve de músico. “Eu voltei a compor e estou indo algumas vezes no estúdio para ter sessões, confesso que menos do que eu gostaria, mas tá sendo por um bom motivo. Pretendo lançar um single no próximo semestre e me dedicar mais quando a novela acabar, eu amo a música e sinto que nasci para isso.”
Sonho é coisa meio relativa. Eu já imaginei coisas que, quando aconteceram, não me deixaram tão realizado quanto eu imaginava, e na data de hoje, chorei vendo o meu rosto no Jornal da Maré, coisa que nunca imaginei. Acredito que a gente coloca o sonho como coisas grandiosas para realizarmos em vida, quando, na verdade, as pequenas conquistas já são esse prêmio.” – Guthierry Sotero
O fato de vir consolidando sua carreira num trabalho de repercussão naturalmente acaba servindo de referência para outros meninos. Qual a responsabilidade de ser espelho desses garotos que são carentes, sobretudo, de referências? “Acredito que é um fardo pesado/bom de se carregar. Preciso fazer com que os moleques daqui da Maré sonhem e pensem grande. Sinto que minha missão em vida é essa, seja na música ou atuando, preciso fazer com que eles sonhem grande. Ao mesmo tempo, é uma responsabilidade enorme, pois não posso errar. Não posso errar por mim, pela minha família, amigos e pela minha favela. Amo a minha área e torço para que todo mundo aqui possa ser grande um dia. É preciso haver políticas públicas. É preciso que deem acesso às pessoas de favela, já que quem nasceu com privilégio não vai abrir mão dele. Isso é óbvio. Precisamos de leis de incentivo para que possamos ter uma sociedade mais justa.”
Naturalmente, quem é espelho se espelha em alguém. Taí a premissa do espelho mágico, aquela que os reflexos se autorrefletem até o infinito. “Minha referência de vida está na minha família: minha mãe, minha irmã, minha avó, minhas tias e todo mundo que sempre moveu montanhas para que eu não me abalasse um dia. Na música, eu admiro muito a arte do Djavan, Mano Brown e Kendrick Lamar. Eles são os meus maiores referenciais do que é ser um artista, seja na vida pública ou pessoal. Acho eles impecáveis no que fazem. Na atuação em si, são muitas pessoas que seria impossível nomear aqui, mas como todo menino preto, o primeiro nome que vem à cabeça, sem dúvidas, é o de Lázaro Ramos.”
Como iniciamos dizendo, Guthierry vive no tempo da revolução. “É muito bom ligar a TV e ver pessoas iguais a mim. Hoje em dia, estamos em mais lugares, mas isso é por conta das pessoas que chegaram antes e abriram caminhos para que isso fosse possível. Eu me sinto muito grato de poder vivenciar isso e de ser dessa geração que continua o legado de quem veio antes. Toda conversa com esses atores veteranos, em que eles dizem da vida, carreira, atuação e o que passaram para chegar até aqui, eu vejo que estou no caminho certo”.
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