Aos 80 anos, atriz e escritora Maria Lúcia Dahl é diagnosticada com Alzheimer e conta com o apoio da filha e de amigos


A atriz, roteirista e escritora está morando no Retiro dos Artistas, onde recebe o apoio da filha, a também atriz Joana Medeiros. A doença, sob o olhar de Joana, tem servido como “um aprendizado profundo” e valeu para reaproximar mãe e filha. Além do Alzheimer, as dificuldades financeiras nesse nosso país trouxeram uma celeuma: “Uma parte da minha família horrorizou-se com o fato de eu ter anunciado no Facebook ‘precisamos de uma vaquinha para ajudar Maria Lúcia’. Alguns acharam que com isso eu estava expondo-nos. Quando, pelo contrário, muitos amigos reapareceram, inclusive alguns que foram amparados por ela”, revela Joana, que é fruto do relacionamento de Maria Lúcia com o sociólogo Marcos Medeiros (1946-1997), líder estudantil que enfrentou a ditadura

* Por Vítor Antunes

Aos 80 anos, a atriz, roteirista e escritora Maria Lúcia Dahl segue recebendo o carinho dos seus colegas de profissão que moram no Retiro dos Artistas – criado em 1918 para acolher artistas de todas as áreas, e que tanto precisa de apoio para continuar proporcionando fisioterapia, tratamentos odontológicos, salão de beleza, hidroginástica, teatro, dança, cinema, desenvolvimento de trabalhos cognitivos, psicólogos, unidade de apoio e cinco refeições diárias. Maria Lúcia vem gradativamente perdendo domínio sobre dois dos seus instrumentos de trabalho: a memória e a escrita. Ela foi diagnosticada com doença de Alzheimer. Uma das musas da TV Globo entre os anos 70 e 80, o último trabalho na televisão foi na novela “Aquele Beijo”, de 2011, escrita por seu amigo Miguel Falabella e com um elenco poderoso composto por Marília Pêra (1943-2015), Grazi Massafera, Claudia Jimenez, Diogo Vilela, Stella Miranda, Herson Capri, entre tantos outros.

Maria Lúcia Dahl em cena na novela “Aquele Beijo”. Participação mais recente da atriz nas novelas. (Foto: Reprodução/TV Globo.)

Sua filha, a também atriz Joana Medeiros, em entrevista lembra que “muita gente tem vergonha de falar sobre a doença. Embora seja muito dura, Maria Lúcia está bem, especialmente quanto à memória antiga, que está muito profunda e positiva. Ela só fala das pessoas que amou, dos homens que amou, das relações fortes e de mim. Todavia, virou uma criança. Eu vou lá (no Retiro dos Artistas) toda semana e passo de  quarto em quarto fazendo vários amigos”.

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maria lucia dahl marisa alvarez e lima

Maria Lúcia Dahl, em 1982, pelas lentes de uma das maiores fotógrafas do país Marisa Alvarez e Lima

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Além do Alzheimer, as dificuldades financeiras trouxeram uma celeuma: “Uma parte da minha família horrorizou-se com o fato de eu ter anunciado no Facebook ‘precisamos de uma vaquinha para ajudar Maria Lúcia’. Alguns acharam que com isso eu estava expondo-nos. Quando, pelo contrário, muitos amigos reapareceram, inclusive alguns que foram amparados por ela”, revela Joana, que é fruto do relacionamento de Maria Lúcia com o sociólogo Marcos Medeiros (1946-1997).

Joana ressalta o que a emociona: “Em relação a ela, o que me toca é Maria Lúcia estar viva e ser artista. Isso me toca. O fato de ela lembrar dos livros que fez, dos filmes, de gostar de uns, não gostar de outros por haver se sentido exposta… Mas a sociedade, de um modo geral, parece um pouco ingrata quando se esquece dos seus velhos”.

Sobre a convivência com a mãe apresentando as progressivas manifestações da doença que afeta a memória e as habilidades de pensamento, Joana Medeiros diz ser “um aprendizado profundo”. E esta realidade aproximou muito mãe e filha. “Há um mistério em relação ao Alzheimer, porque qualquer intercorrência que possa ter havido entre nós cai por terra. Minha mãe está muito aberta. Estamos mais próximas, ficamos mais amigas, mas nossa relação era delicada”. Fato que Dahl chegou a reiterar durante uma entrevista à revista TPM, em 2011: “A cumplicidade (entre nós) é forte, mas brigamos muito. Acho que entre mãe e filha já existe uma predisposição para a briga (…). Brigamos, mas logo estamos rindo”, declarou.

De fato, a relação entre elas passou por singulares turbulências, especialmente depois que ambas posaram para a Playboy, em 1985. Embora a capa da revista fosse a modelo Magda Cotrofe, havia um especial com fotografias das duas na parte central da publicação. Na mesma entrevista à TPM, Dahl declarou achar que não haveria problemas em posar: “O cachê era uma porcaria. (Fiz) porque eu tinha uma cabeça hippie e achava que não tinha nada demais, que ia ser bonito. Mas mexeu com a cabeça da Joana e eu me arrependo. Teve um preconceito pelo fato de ser mãe e filha e por ela ter 14 anos. (…) Tenho impressão de que no colégio houve certo preconceito. Nem tenho mais a revista porque sofri muito. (…) Eu devia ter pensado mais”.

Para Joana, a nudez de ambas exposta numa revista deixou marcas: “Na minha juventude, essa não compreensão da vanguarda da Maria Lúcia, foi difícil. Na época, quando eu chegava à escola era uma loucura por eu ter posado nua. Hoje, como mãe, imagino como seria expor um filho a tal situação. Além disto, a Playboy fez conotações estranhas”. Diante da polêmica, Joana Medeiros relata: “Eu fui exposta pela minha mãe e enfrentei-a: ‘Você tem todo o direito de ser vanguarda mas essa exposição foi horrível para mim’. (…) Ela precisava entender que ao fazer a revolução dela, ao não olhar para a filha, feriu-a, embora tenha-lhe trazido ensinamentos”.

Ao processar a revista em sua edição francesa por haver republicado as fotos sem autorização, os editores locais disseram à então menina: “Por que você não processa a sua mãe? Foi ela quem a colocou nesta enrascada”. No entanto, passados os anos, Joana diz que sentiu que realmente “Maria Lúcia faz parte de uma vanguarda nos anos 1960 muito desbravadora. Hoje em dia, há um reencontro muito profundo entre mim e minha mãe, um perdão, algo muito legal”, avalia.

Maria Lúcia Dahl contracenando com Marília Pêra na novela “Aquele beijo” (Foto: TV Globo/Divulgação)

Quando o site Heloisa Tolipan esteve no Retiro dos Artistas, em Jacarepaguá, mês passado, o staff da instituição foi discreto quanto ao estado de saúde da atriz. Uma das melhores amigas de Dahl, a atriz Thaís Portinho, com grande carreira no cinema nacional e no teatro, conta que Maria Lúcia “não tem dificuldade para conversar, tem uma voz ótima, mas demonstra confundir fatos de uma trajetória muito bonita”. Sobre Dahl ser residente do Retiro, Thaís afirma: “Foi melhor para ela estar lá. Local onde tem uma acompanhante permanente e particular. Recentemente, inclusive, precisou ser internada por alguns dias e teve todo acompanhamento hospitalar”.

No aniversário de 80 anos de Maria Lúcia Dahl, no ano passado, ela estava exultante por haver recebido vários telefonemas de amigos. Dentre eles, o de Thaís, que parabenizou-a pela idade recém completada: “Quem diria, hein, 80 anos!”. E a aniversariante corrigiu-a: “Thaís você está louca, eu não tenho 80 anos. Estou fazendo 41!”. O ano de 1941 foi quando a atriz nasceu. Thaís Portinho, então, foi muito delicada: “Eu estava brincando com você, claro!”. Além disto, a amiga considerou: “Ela guardou memórias antigas, o ano de nascimento… Mas não fez as contas. Ela nunca foi boa de conta mesmo…”.

Thaís e Maria Lúcia são amigas pelo menos desde 1969, quando fizeram a peça “O Avarento“. Certo dia, numa das montagens do clássico, a polícia bateu à porta do teatro à procura do líder estudantil Marcos Medeiros. Detida numa das salas do teatro, Maria Lúcia foi perguntada sobre o então namorado, que negou conhecer. Nesse meio tempo, Thaís, com traje de época, protagonizou uma cena anacrônica: Foi a um botequim telefonar para a figurinista Marília Carneiro, irmã de Maria Lúcia, pedindo que não deixasse que Marcos fosse buscá-la no teatro ao fim da montagem, o que era rotineiro. Para que Marília tivesse tempo de localizar Marcos, enquanto os policiais esperavam pelo militante no teatro, Thaís e Isolda Cresta (1929-2009) puseram-se a utilizar de trechos descartados do texto de Molière (1622-1673), não apenas sem a autorização do diretor, mas sem o conhecimento de Procópio Ferreira (1898-1979), que estava no elenco e cujo irmão era do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Conclusão: Marcos não foi preso durante este episódio da vida.

Como atriz, Maria Lúcia está no Panteão das musas do Cinema Novo. Participou de filmes, como  Macunaíma” e esteve presente em movimentos culturais relevantes, como o Teatro Besteirol. Além disto, escreveu durante 20 anos para o Jornal do Brasil. Suas crônicas descreviam a sua cidade com humor e poesia. Fontes apontam que desde o meado da década passada, Dahl já vinha apresentando pequenos sinais de esquecimento, embora, tenha colaborado com depoimentos para o livro que Joaquim Ferreira dos Santos escrevera sobre Zózimo Barrozo do Amaral (1941-1997), que fora seu colega de escola. Até 2018, a artista ainda tinha uma vida ativa e escrevia, com regularidade, crônicas em suas redes sociais.

Numa das peças às quais participou como autora, um rapaz louro-alto-solteiro procurava um espaço como dramaturgo: era Miguel Falabella. “Classificados Desclassificados” contou, então, com a autoria, além da já experiente Maria Lúcia Dahl e dos já veteranos Luiz Carlos Góes (1944-2014) e Vicente Pereira (1949-1993), e com um jovem Miguel Falabella. Nesta peça, um esquete foi escrito por Maria Lúcia e dedicado a Thaís Portinho, havia uma música que ambas gostavam muito: On a slow boat to China, imortalizada por Peggy Lee (1920-2002), Bing Crosby (1903-1977) e por Benny Goodman (1909-1986), que durante esta entrevista, Portinho cantou. Forma de rememorar o passado e saudar as memórias em comum.

Habilidosa na escrita, Dahl mudou radicalmente a narrativa da própria vida ao casar com Marcos Medeiros. Se era nascida em berço de ouro, conheceu os dissabores da falência e da ditadura. Grávida do militante, exilou-se em Paris, onde teve sua filha única e, depois, mudou-se para Roma. A delicadeza – e as complexidades – da maternidade frente à dureza da repressão política. Talvez seja preciso lembrar que ela rodou a Europa como atriz, que posou para editoriais da Elle francesa, que trabalhou com Procópio Ferreira e apresentou um programa na Rai, TV italiana. Que, além de tudo, juntou-se a Miguel Falabella, Vicente Pereira e Mauro Rasi (1949-2003) para fazer a capital carioca gargalhar. A partir deles entendemos a razão de a cidade fluminense ter esse nome, que é o verbo “rir”, na primeira pessoa no presente do indicativo: Rio. As memórias recentes de Maria Lúcia são sentidas, notadas, porém invisíveis. Falando em “pessoa”, lembramos de sua História, vida-verbo forte no espiral do tempo.