Anos Dourados à francesa: em meio a grave crise, a França dos nossos sonhos volta às telas com o pequeno Nicolau!


O mundo assiste estarrecido à onda de atentados de muçulmanos radicais à Cidade Luz, enquanto nos cinemas as aventuras de um menino, entre outros filmes, evocam uma época mais feliz da vida francesa

* Por Flávio Di Cola

Desde quarta-feira passada a França toma de assalto as manchetes da mídia planetária. Mas, desta vez, através de acontecimentos que colocam no chão a legendária joie de vivre cultivada há séculos pelos franceses e exportada para o mundo como uma fórmula única do bem-viver que mistura prazer com beleza, elegância, requinte e liberdade, tudo apimentado com o inconfundível toque gaulês de atrevimento e senso de escândalo. Mas essa França – que parece ter desaparecido de vez neste glacial e desesperado inverno de sangue – ainda está viva e encantadora nos dois filmes adaptados dos álbuns do herói-mirim Nicolau criado, em 1960, pela dupla René Goscinny (1926-1977), escritor, e Jean-Jacques Sempé (1932), desenhista humorista.


Documentário “La Vie Parisienne” (Reprodução) 

 


Documentário “La circulation à Paris” (Reprodução)

O diretor e roteirista Laurent Tirard é o responsável pelas duas muito bem-sucedidas transposições para a tela das aventuras do simpático colegial e seus amiguinhos na França despreocupada e próspera do início dos anos 1960. A primeira delas “O pequeno Nicolau” (Le petit Nicolas) é de 2009 e foi um fenômeno mundial, alcançando rapidamente seis milhões de espectadores só na França, no momento em que se comemorava o cinquentenário do lançamento do personagem. Exibido no Brasil em 2010, o filme ficou meses em cartaz, atraindo um público fiel e constante em pequenos cinemas. Coincidindo com o início do nosso cada vez mais tórrido verão, “As férias do pequeno Nicolau” (Les vacances du petit Nicolas, 2014) chegou aos cinemas brasileiros no dia de Natal, atraindo de imediato o mesmo público já apaixonado pela primeira adaptação.

Foto (Divulgação)

Foto (Divulgação)

 


Trailer de “As férias do Pequeno Nicolau” (Divulgação)

Contrariando a síndrome que acomete fatalmente as sequências de filmes de sucesso, “As férias do pequeno Nicolau” além de ter conservado todo o charme e a leveza da adaptação inicial, ultrapassa a ela em ritmo, humor, inventividade e resultado cinematográfico. E o público, em geral, nem se dá conta de que o ator protagonista foi substituído: Maxime Godart teve que dar lugar a Mathéo Boisselier porque crescera demais entre as duas produções e é hoje mais um adolescente espigado. Além disso, dois eventos tristes pontuaram essa transição: tanto a veterana e prestigiada atriz Bernadette Lafont – que faria o papel de Mémé, a transtornada avó beijoqueira de Nicolau -, como o popular ator Michel Duchaussoy – que repetiria a sua interpretação como o ridículo diretor da escola – faleceram e tiveram de ser substituídos por dois outros atores tão talentosos quanto aqueles que os precederam: Dominique Lavanant e Francis Perrin, respectivamente.

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Mas o que mais impressiona nas duas produções, e em especial nestas aventuras de férias do pequeno Nicolau, é o brilho da direção de arte, passando pela escolha das locações no balneário que serve de pano de fundo para o enredo que não trai a sua origem no cartoon, e pela ambientação e os figurinos de época, tudo valorizado por uma fotografia feérica, polida e solar que ironiza sutilmente o artificialismo risonho daquela França burguesíssima que – nesse momento histórico, a virada das décadas de 1950 para 1960 – atingia o apogeu das célebres Trente Glorieuses, ou seja, os fabulosos 30 anos de crescimento acelerado e de prosperidade espetacular que banharam a França entre 1945 e 1975, mudando completamente o perfil demográfico, econômico, social, cultural, as práticas de consumo e lazer, e mesmo o status geopolítico do país, pois foi nesse pico que a França se afirmou como a terceira potência militar do planeta sob o comando conservador e estável do grande herói da Segunda Guerra Mundial, o General Charles de Gaulle.

De Gaulle: de hreroi de guerra a presidente de uma nação que mexia com o equilíbrio entre EUA e União Soviética, desafiando ambas e reatando realções diplomáticas com os chineses (Foto: Reprodução)

De Gaulle: de heroi de guerra a presidente de uma nação que mexia com o equilíbrio entre EUA e União Soviética, desafiando ambas e reatando relações diplomáticas com os chineses (Foto: Reprodução)

É surpreendente observar, hoje, as forças policiais especiais e os órgãos de segurança e inteligência franceses surpreendidos por um bando de terroristas e fanáticos religiosos, quando se compara com o panache, a altivez arrogante que a França e o seu general exibiram na década de 1960 perante as duas super potências do planeta – Estados Unidos e União Soviética para assegurar a esse país do tamanho do estado de Minas Gerais o seu papel inquestionável como polo alternativo de poder global.

Transatlântico France: muito melhor que o Poseidon e o Titanic (Foto: Reprodução)

Transatlântico France: muito melhor que o Poseidon e o Titanic (Foto: Reprodução)

Realmente, os franceses não estavam “deixando barato” o seu projeto de afirmação nacional. Em 1960, a França explode a sua primeira bomba atômica no deserto do Saara e ingressa no exclusivíssimo “Clube Atômico”; em 1962, o país novamente surpreende o mundo ao lançar aos mares o mega transatlântico France; em 1963, os gauleses entram na corrida espacial ao enviar ao espaço uma gata de três anos – apelidada de Félix –, enquanto americanos e soviéticos usavam cachorros e chimpanzés para essas experiências; nesse mesmo ano é inaugurada a belíssima Maison de la Radio, um dos maiores marcos da arquitetura moderna; em 1964, o caça supersônico Mirage IV é o sonho de consumo de 9 entre 10 militares do planeta e a vedette da força de dissuasão francesa, enquanto de Gaulle desafiava galhardamente o eixo EUA-URSS ao romper o isolamento imposto à China comunista; já 1967 marca o lançamento do primeiro e temível submarino nuclear francês, o Redoutable; e em 1968, enquanto os alicerces da França gaullista estavam sendo chacoalhados pelas manifestações de maio, o velho general não sossegava e saía do cenário político mundial em grande estilo: em agosto desse ano-manifesto, a França explodia a sua primeira bomba H no Oceano Pacífico. Para encerrar a década, o país que na belle époque viu o 14-Bis de Santos Dumont voar apresentaria ao mundo, em 1969, mais uma maravilha tecnológica: o avião supersônico de passageiros Concorde que, a partir de 1976, faria a rota Paris-Rio de Janeiro em apenas 4 horas, já que o aparelho era mais veloz do que a velocidade de rotação do próprio planeta Terra!

Le Redoutable: joia da força naval francesa (Foto: Reprodução)

Le Redoutable: joia da força naval francesa (Foto: Reprodução)

E a França não dava as cartas apenas no terra-mar-e-ar: no cinema, o mundo inteiro seguia os caminhos estéticos e políticos propostos pelo movimento denominado Nouvelle Vague inaugurado em 1958 com o filme “Nas garras do vício” (Le beau Serge, 1958), dirigido por Claude Chabrol e estrelado por um par de jovens atores que reforçaria o mito da beleza dos gauleses, ao lado do famigerado Alain Delon: Jean-Claude Brialy e Gérard Blain. A partir de então, nomes como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Eric Rohmer, Agnès Varda, Louis Malle ou Jacques Rivette vão ajudar a definir os rumos de todos os jovens cineastas nos quatro cantos do planeta. Na música, a chanson francesa disputava palmo a palmo com a italiana e a norte-americana a hegemonia sobre os ouvidos do público mundial. Toda uma geração namorou embalada pelas vozes de Alain Barrière, Françoise Hardy, Mireille Mathieu, Sylvie Vartan, Barbara, Charles Aznavour, Dalida e Adamo. Até no rock’in roll – área de esmagadora hegemonia anglo-saxã – a França foi responsável pelo maior fenômeno de popularidade em língua não inglesa: Johnny Hallyday, nascido em 1943 e até hoje ativo.

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Os ídolos franceses da época também tomaram conta das capas de revista de fofoca ou dos jornais sensacionalistas que proliferavam na imprensa popular através da exploração dos altos e baixos da vida íntima de alguns dos casais mais famosos do mundo do entretenimento como Brigitte Bardot & Roger VadimJacques CharrierGunther Sachs, ou Romy SchneiderAlain Delon, ou os já citados Johnny HallidaySylvie Vartan. Aliás, La Bardot e seus escândalos obsessivamente fabricados pela mídia traduziram à perfeição as discussões e as tensões comportamentais entre conservadorismo e liberalismo que atormentavam a sociedade francesa e a ocidental como um todo.

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E é sobre essa disputa no campo do comportamento que falam outros filmes franceses recentemente lançados com sucesso no circuito exibidor brasileiro e ambientados durante a época áurea das “Trente Glorieuses”, como a agradável comédia romântica “A datilógrafa” (Populaire, 2012), dirigida por Régis Roinsard, estrelada por Romain Duris, Déborah François e Bérénice Bejo, a heroína do multioscarizado “O artista” (The artist, 2011). Assim como as duas versões para o cinema das aventuras do pequeno Nicolau, “A datilógrafa” investe pesadamente na reconstituição dos aspectos mais vistosamente vintage desse período, agora transformado em objeto de culto nostálgico por uma vertente mais comercial do cinema francês. Todavia, essa visão edulcorada dos anos 1950-60, mesmo aqui, deixa exalar um atmosfera de ácida ironia sobre as pretensas conquistas no mercado de trabalho alcançado pelas mulheres durante o “milagre econômico” francês e a importação de modelos comportamentais norte-americanos. Conquistas estas que se revelam – na verdade – patéticas e enganosas durante a hilária sequência da grande final do Concurso Mundial de Velocidade Datilográfica de 1959, em Nova York, certamente inspirada em “Tempos Modernos” (Modern Times, 1936) de Charlie Chaplin.

"A datilógrafa": alusão a uma França que não existe mais (Foto: Reprodução)

“A datilógrafa”: alusão a uma França que não existe mais (Foto: Reprodução)


Trailer de “A datilógrafa” (Divulgação)

Mas os melhores exemplares dessa revisão pelo cinema das “Trente Glorieuses” são aqueles estrelados – e em parte sustentados – pela diva Catherine Deneuve: o primeiro deles é a hábil sátira política e de costumes do jovem diretor François Ozon “Potiche, esposa-troféu” (Potiche, 2010), localizada na França de 1977, em que Deneuve interpreta uma burguesa submissa e desavisada, casada com um industrial despótico que é sequestrado por sindicalistas radicais. Sozinha, ela é obrigada a abandonar a sua postura alienada para assumir a linha de frente na defesa do seu capital dentro de um enredo recheado de viradas e de deboches dirigidos ao sistema político-ideológico maniqueísta (direita versus esquerda) que estrangula a França desde o início do século XX.

"Elle s'en va": resgate de uma França romântico-retrô muito diferente da que precisa lidar com as agruras do terrorismo contemporâneo (Foto: Reprodução)

“Elle s’en va”: resgate de uma França romântico-retrô muito diferente da atual, que precisa lidar com as agruras do terrorismo contemporâneo (Foto: Reprodução)

Dois anos depois, a mesma atriz estrelou outra deliciosa sátira à vida francesa dirigida por Emmanuelle Bercot, “Ela vai” (Elle s’en va, 2013). Este road movie à francesa, começa no interior da Bretanha contemporânea, onde Catherine Deneuve é a proprietária de um restaurante falido. Falida também está a sua vida amorosa e familiar. Totalmente por acaso, ela põe o pé na estrada para viver situações engraçadas e conhecer tipos pitorescos que a obrigarão a reconstruir sua auto-estima e rever a postura reativa que desenvolvera perante a vida. Nessa trajetória, ainda sobra tempo para ela participar de um patético evento de reencontro de todas as candidatas regionais que participaram do concurso de Miss França 1969, em que representou a Bretanha. Esse reencontro inesperado com os ecos de uma época em que a personagem de Deneuve era linda e ainda alimentava muitos sonhos, na verdade lhe revela que nem esse passado foi tão glorioso assim, e que nem o seu presente é tão catastrófico e desprovido de esperanças como aparenta. Uma lição para a França ferida e atônita de hoje?


Trailer de “Potiche” (Divulgação)

*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria