*por Vítor Antunes
O ator português Ângelo Rodrigues, que junto a Nikolas Antunes é um dos protagonistas da série brasileira “Olhar Indiscreto“, sucesso da Netflix, enfrentou uma septicemia grave motivada por uma reposição hormonal, que quase lhe valeu a vida e uma amputação. Nesta entrevista exclusiva, ele aborda os desafios de gravar uma série com grandes exposições e cenas de nudez tendo ele próprio de lidar com as cicatrizes de uma extensa cirurgia na perna. Durante os testes para a série, o intérprete de Heitor recuperava-se da 10ª das 12 intervenções cirúrgicas que fizera. O lusitano fala ainda sobre o processo criativo brasileiro, que é muito diferente do que há em seu país natal, assim como sinaliza ter vontade de fixar-se aqui, trabalhando em produtos nacionais – novelas, filmes ou séries.
A septicemia fez com que eu ficasse quatro dias em coma e tivesse sérios riscos de falecer ou de perder a perna. Felizmente nada disso aconteceu, mas sigo em tratamentos e em processo de reconstrução do membro, que possui uma cicatriz extensa, de 90cm. A internação decorreu há três anos e meio e desde então faço essas cirurgias. Já são 12 – Ângelo Rodrigues
Para além de sua atividade artística, Ângelo Rodrigues se dedicou a dar aulas de teatro para os detentos do Complexo Penitenciário de Bangu, no Rio, e vivenciou experiências em países e culturas exóticas, como quando fora assistente de cuidadores de elefantes no Camboja e quando lecionara inglês para monges tibetanos. Além destes projetos, ele promete para breve o lançamento de um filme no qual interpreta um personagem baseado no conto “A Confissão de Lúcio”, de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), dirigido por António da Cunha Teles (1935 – 2022).
UM MOMENTO SENSITIVO E COMPETENTE
“Olhar Indiscreto” é o primeiro trabalho de Ângelo Rodrigues em solo brasileiro. O ator, que já esteve em ao menos 14 grandes produções em Portugal, debuta em projeto nacional. Por óbvio, percebeu diferenças singulares na forma de se produzir o audiovisual por aqui quando comparados à maneira portuguesa: “O tempo para realização é outro. Em Portugal temos menos tempo de ensaio, já que por lá o orçamento, por norma, é limitado. Para esta série, preparamo-nos por um mês em razão da jornada que teríamos adiante, com um grande volume de trabalho, além de termos contado com uma preparadora de elenco, a Marina Elias e outra a Bárbara Herrington, que foram fundamentais. O combustível que precisávamos para este trabalho não podia ser individual, tinha de ser coletivo e conseguimos todos fazê-lo bem acompanhados”, diz.
Conforme ventilado na mídia especializada, “Olhar Indiscreto” tem um perfil diferenciado, e possivelmente pioneiro, no audiovisual do Brasil por ser uma série assumidamente soft-porn. Razão pela qual, diante da maior exposição do corpo dos atores nas filmagens, a gigante americana optou por trazer Barbara Herrington, uma diretora especificamente voltada para as cenas de intimidade. Rodrigues afirma que esta foi “uma novidade para todo o elenco. Barbara não se focava apenas na verossimilhança nos movimentos da cena, mas também com o ângulo e toda a periferia da encenação, atenta ao nosso bem estar. Socorria-nos com uma toalha quando terminadas as gravações de nudez, ou com um enxaguante para que estivéssemos perfumados para estar com algum colega. Durante os ensaios foi uma dança de permissões, mutuamente coreografadas, compreendendo os limites de cada ator. O objetivo era fazer com que as cenas fossem o mais verossímeis possíveis e para isso deveríamos ter um grau de cumplicidade grande. Daí a importância de Herrington, que nos permitiu expressar livremente, sem peso de julgamento, para que, desta maneira, fizéssemos um bom trabalho.
Quando Ângelo foi chamado a fazer os testes para “Olhar Indiscreto” ainda recuperava-se da 10ª cirurgia na perna, motivada por uma septicemia, ou seja, uma falência generalizada nos órgãos. Esta, desencadeada por uma reposição hormonal malsucedida. “Recebi uma mensagem do meu empresário de que eu teria 48 horas para fazer um video-selfie e encaminhar aos produtores brasileiros rapidamente, isso sem haver recuperado-me da última operação. Gravei-o e em duas possibilidades: Uma falando em português europeu e outra voltada para o Brasil” . Esses vídeos foram suficientes para aprová-lo. Depois, os produtores quiseram se certificar sobre sua recuperação, pois que viram-no de muletas no velório da atriz Maria João Abreu (1964-2021). E ele teve de enviar um vídeo comprovando a plena recuperação dos movimentos.
Como haveria uma grande quantidade de cenas de nudez e exposição, este era um assunto que preocupava o ator, que recuperava-se das operações. “Começamos a gravar dois meses depois da minha última cirurgia e meus níveis de confiança não estavam elevados. Porém, meu personagem não precisava saber disso. Ele emanava tudo, menos insegurança, de modo que as minhas dores não eram as de Heitor. Eu teria que construir uma carapaça emocional que me protegesse o suficiente para deixar os medos de lado e fazer as cenas. Claro que estas não foram fáceis de gravar, mas tive apoio do elenco e, também, uma caracterização específica para disfarçar a cicatriz”, alega.
A gravação com duas possibilidades de sotaque não era uma exigência da produção, mas uma vontade do ator, que já era habituado à forma brasileira de falar, pois que já houvera estudado aqui. “Esse meu namoro com o Brasil começou em 2014, em razão de eu haver feito intercâmbio na UniRio, onde me formei em Teatro. Porém, isso não excluiu a necessidade de um trabalho de fonoaudiologia, que fiz junto à profissional do Centro de Estudos de Voz Thays Vaiano“.
O processo de adequação prosódica do ator não era exatamente simples. Inicialmente os encontros eram presenciais, depois remotos, através de plataformas digitais como Zoom e por áudios via celular. Ângelo decorava o texto, gravava-o e enviava à fonoaudióloga que fazia as correções. “Foi um trabalho intenso, que exigiu grande concentração de mim e que durou quatro meses de acompanhamento fonoaudiólogico”.
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O MISTÉRIO DAS COISAS POR BAIXO DOS SERES
Em 2014, na primeira passagem do ator pelo Brasil, enquanto ainda estava graduando-se na faculdade, Ângelo ministrou aulas de Teatro no Complexo Penitenciário de Bangu, Zona Oeste do Rio. A insólita experiência é narrada por ele: “Durante o curso havia uma disciplina chamada Teatro e o Enclausuramento, conduzida pela professora Nathália Fischer, e fruto de um acordo com a universidade junto ao presídio. O grande desafio era como contatar essas pessoas. Preparamos um espetáculo e toda a população detenta envolvida no projeto escreveu o texto conosco. Foi um espetáculo criado na raiz e encheu-me de felicidade no coração. As idas a Bangu eram difíceis, durava mais de uma hora de viagem, mas os ensaios eram muito especiais…”
Quando eu dava a mão a um recluso e fazíamos nossos jogos teatrais não havia lugar para o preconceito, ainda que eu tivesse entrado em conflito com os existentes em mim. Eu podia estar agarrado na mão de um assassino ou estuprador, mas ali eu queria resgatar o espírito de cidadania dos detentos e fazê-los problematizar o mundo a partir do teatro, independentemente do crime cometido. E ali só o teatro importava. Foi algo muito impactante para mim – Ângelo Rodrigues
TENHO EM MIM TODOS OS SONHOS DO MUNDO
Um dos próximos projetos aos quais Ângelo está envolvido é o filme “A Confissão de Lúcio”, baseado num conto do escritor Mário de Sá-Carneiro. Imerso entre poemas e contos tanto de seu personagem como o do principal expoente da poesia portuguesa, perguntamos a Rodrigues, qual o poema que mais o sensibilizara e, surpreendido, disse ser “Tabacaria”, de Pessoa, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos. Trechos desta poesia compõem os subtítulos desta matéria. O ator diz que seria um sonho trabalhar no Brasil e está voltando seus esforços para isto: “Trabalhar no Brasil é um dos meus próximos objetivos e não distingo que sejam em teatro, cinema ou televisão. O País vive uma ebulição criativa, inclusive nas plataformas de streaming, alavancando produções bacanas, além do fato de partilharmos do mesmo idioma”.
O desejo de Rodrigues parece ser recorrente entre os portugueses. Historicamente tem sido cada vez maior o número de lusos nas produções nacionais. O primeiro com papel de destaque foi Tony Corrêa, em Locomotivas (1977). Depois, o grande astro português Sinde Filipe foi duplamente pioneiro: Primeiro ator de Portugal a protagonizar uma novela vivendo um patrício, além de ser “Antônio Maria” a primeira novela da extinta TV Manchete, levada ao ar em 1985. Anos depois, em 2004, Ricardo Pereira, teria o papel protagônico de “Como Uma Onda”. Tanto ele como Paulo Rocha participaram recentemente de novelas vivendo brasileiros, assim como Ângelo Rodrigues o faz em “Olhar Indiscreto”.
A vontade de trabalhar no Brasil parecer ser, dos ideais do gajo, o mais simples. Sua vida é composta por histórias tão inacreditáveis que o maior o arrojo profissional parece pequeno quando comparado às suas outras aventuras. Inspirado por um livro de Helena Blavatsky (1831-1891) citado por Sá-Carneiro numa carta a Pessoa, o ator fez uma viagem extensa por cinco pontos curiosos do mundo: Alaska, Nepal, Camboja, Tibete e Tailândia. Ele explica: “Blavatsky teve uma vida repleta de façanhas e foi muito impactante no final do Século XIX. Passou três anos no Tibete, onde esteve com mestres espirituais e, na Europa, escreveu um livro chamado “A Voz do Silêncio”, traduzido justamente por Fernando Pessoa. Da mesma forma que o livro impactou Sá-Carneiro mexeu comigo, por que eu já possuía interesse em ir ao Oriente. Ele foi a mola propulsora que eu precisava para me estimular a fazer trabalhos voluntários naquele continente”.
No Nepal, Ângelo fora professor de inglês num convento budista. “Meu objetivo era dar aulas de inglês através do teatro e o sistema foi semelhante ao que lancei mão, em 2014, quando ministrei as atividades teatrais no Complexo Penitenciário de Bangu. Estive naquele País num regime de internato, num convento com 150 monges menores de idade, uma turma com jovens de idade compreendida entre 7 e 12 anos e outra cujos componentes possuíam entre 14 e 18. Com os mais maduros montei um espetáculo teatral”.
Outra insólita experiência do artista pelo Oriente foi no Camboja, onde, a fim de ter um contato com a subjetividade, a fé e a cultura dos Bunong. Estes compõem a etnia majoritária dos que habitam o entorno do Elephant Valey Projet (EVP), entidade que visa amparar elefantes que foram vítimas de hostilidades durante a vida e devolve a eles a experiência da selva. Ângelo diz que os Bunong são animistas e atribuem divindade àqueles animais. De modo que o espaço é, também, um santuário: “O EVP é uma reserva natural imensa. Propus de encaixar meu trabalho lá. Razão pela qual destinei-me, em concordância com aquela equipe, em ficar como assistente dos cuidadores de elefantes, os “mahout”. Desta forma, eu preparava-lhes as comidas, esquentava, fazia medições semanais para saber da sua saúde, e promover a eles melhor qualidade de vida, já que eram elefantes idosos, que conviveram em ambientes tóxicos como os circos”. Havia ali, ainda um maior filigrana: A maior parte dos animais eram fêmeas. Eram 11 elefantas e apenas um macho.
Optei por estar com os elefantes, pois repensava o farto da nossa espécie. No EVP havia muito amor e foi bom ter estado num santuário sem entrelinhas, que não era um ímã para turistas – Ângelo Rodrigues
Como pautou sua carreira mais que a um artista, mas como um ator social, Ângelo acredita que o teatro é transformador. É capaz de fazer mudanças íntimas e definitivas no ser humano, especialmente quando ele pode se por a pensar no seu espaço enquanto cidadão. E são essas transformações que não permitem ao teatro, perecer: “Ele não existiria há cinco mil anos e não reafirmaria sua presença frente à TV, ao cinema e ao streaming se não tivesse o poder de transformação que possui, quando propõe problematizações através dos personagens e com eles repensa o mundo. Quando lecionei no presídio, lançava mão de teoria do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal (1931-2009) e conseguimos fazer com que os reclusos questionassem sua cidadania e seu lugar no mundo através dos personagens”.
O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) aponta numa de suas obras mais importantes, “Casa Grande & Senzala” que “A ama negra fez com as palavras o mesmo que com a comida (…): tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles (…). Palavras que só faltam desmanchar-se na boca”. Ângelo, para esta entrevista, fez o caminho inverso, falou de poesia portuguesa com a fluidez do ritmo brasileiro, sem recorrer à fala europeia, cujas consoantes crepitam, ansiosas e se sobrepõem aos sons vocálicos. “Nós, portugueses, comemos as vogais, ao passo que os brasileiros dizem-nas com prazer. E estão, vocês, certos”. Como Pessoa e como pessoa, o rapaz escreve sua História para provar que é sublime. E na caligrafia rápida dos versos aos quais chama vida, toma a si o pórtico para o (im)possível.
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