Grávida de uma menina, Andréia Horta fala sobre viver líder do tráfico na série “Cidade de Deus: A vida não para’


A atriz, destacada por sua habilidade e sensibilidade, nos conta detalhes sobre a gravidez de uma menina fruto de sua relação com o ator Ravel Andrade. Compartilha ainda sua trajetória artística e pessoal, refletindo sobre a complexidade dos papéis que vem interpretando. Em sua atuação na série “Cidade de Deus: A Vida Não Para”, ela aborda questões profundas sobre a realidade das favelas e a presença feminina no tráfico de drogas. A atriz ressalta a surpreendente presença de mulheres em posições de poder e maldade dentro desse contexto, desafiando estereótipos de gênero. “São muitas mulheres presas, procuradas e com poder de articulação e maldade ativas”, afirma Horta, questionando a percepção social de que a violência é um território exclusivamente masculino. Ao desmistificar esses papéis, Horta contribui para uma compreensão mais rica e humana das dinâmicas de poder e transgressão.

*por Vítor Antunes

Uma voz que ecoa e uma personalidade vibrante. São elementos que poderiam definir Andréia Horta –  e, por que não dizer, a cantora Elis Regina (1945-1982), que ela interpretou no cinema. Há uma sintonia rara que une essas duas figuras: uma inteligência que não se curva a convenções, uma sinceridade que ilumina qualquer diálogo. Além dessas qualidades que já são marcas registradas da atriz, há um novo e profundo desabrochar em sua vida, que transcende a metáfora: Andréia está grávida de uma menina do seu relacionamento com o ator Ravel Andrade. Apesar de sempre ter sido reservada quanto às questões pessoais, ela compartilhou um pouco de sua felicidade: “Eu queria muito [ficar grávida], então é uma criança muito esperada. Eu estou muito feliz”.

Sobre a gravidez, a atriz renasce da própria força, própria luz e fé – e memória – para falar sobre sua gestação. “Eu queria muito [ficar grávida], então é uma criança muito esperada. Cada dia é uma linda descoberta. É ter a sensação no corpo de saber que tem uma uma vida crescendo dentro de mim, chutando, mexendo, viva. Eu estou amando a gravidez”, diz ela. Numa conexão a uma de suas personagens mais bem sucedidas no cinema, a inesquecível Elis, é como se Andréia revisitasse uma das falas da artista, quando perguntada sobre o seu desejo mais profundo pro futuro. “Eu sei o que eu quero [da vida]. Fundamentalmente, que meus filhos cresçam bem”. Ambas as “Elises” pontuaram a frase com um sorriso aberto, com a mesma fé na humanidade que habita no coração de quem decide ser mãe.

Mas a vida de Andréia não se limita a este momento de expectativa maternal. Neste segundo semestre, ela estará em evidência com o lançamento da série “Cidade de Deus: A vida não para“, da HBO e Max, e, logo em seguida, com o filme “Meu melhor amigo“, ao lado de Marcos Mion. Além disso, ela aguarda a estreia de “A Divisão“, uma série do Globoplay que já conquistou sucesso na plataforma. Curiosamente, Andréia está envolvida em dois favela-movies, obras que transportam a realidade para a tela. No entanto, longe de reiterarem lugares-comuns de miséria, essas produções oferecem, para Andréia, “uma radiografia da realidade contemporânea, uma reflexão sobre o nosso tempo”.

Em “Cidade de Deus“, por exemplo, ela interpreta Gerusa, uma mulher perigosa e perversa, cuja crueldade é mascarada por uma formação acadêmica. É raro ver mulheres liderando o tráfico, comandando o submundo, espaços tradicionalmente dominados por figuras masculinas. “Costumo dizer que a madrinha da Gerusa é Lady Macbeth – personagem de William Shakespeare. Geralmente essas ações estão nas mãos dos homens, mas existem mulheres reais e com cargos altíssimos dentro da hierarquia do tráfico de drogas e da indústria das armas. Há muitas mulheres presas, procuradas e buscadas pela Justiça e pela Polícia, com poder de articulação e de maldade bem ativas. Elas não são tão raras assim.”

Andréia Horta está descobrindo os fascínios da gravidez (Foto: Reprodução/Instagram)

ENTRE O “REDESCOBRIR” E O BOLERO DE RAVEL… FASCINAÇÃO!

Pelo menos dois trabalhos de Andréia trazem em seu bojo questões sociais. Não apenas “Cidade de Deus: A Luta continua“, como “A Divisão” são dois produtos que abordam de maneira profunda a realidade das favelas, da indiferença e da desigualdade social. A atriz destaca que este é um tema muito presente na sua arte. “O artista é político. Mesmo que a gente estivesse falando da relação entre uma mãe e um filho, por exemplo, esta seria uma questão social, no âmbito de que está falando do que há de humano em cada personagem. Todo mundo tem dramas. Os personagens estão sempre atravessando os problemas. Eles começam de um jeito e terminam de outro. Então, nesse sentido, de certo modo social, o que a gente está falando não é que seja educativo, partidário ou panfletário, mas, sim, a arte tem um poder transformador, mas não exatamente de uma luta pública”.

Uma vez me disseram isso, e eu nunca mais esqueci, de que uma cena específica que eu tinha feito em “Liberdade, Liberdade”, uma telespectadora falou que até então nunca havia visto o seu pai chorar. E toda a família testemunhou sua emoção enquanto ele estava sentado no sofá. Há pessoas que têm um sonho, mas que não tem nenhuma condição na vida de realizar aquilo. E eu, como atriz, quero entrar nesse terreno e falar sobre isso – Andréia Horta

“Liberdade Liberdade”. Andréia Horta foi Joaquina (Foto: Divulgação/Globo)

Nascida numa região periférica de Juiz de Fora, Minas Gerais, Andréia se identifica com a realidade abordada tanto em “Cidade de Deus”, como em “A Divisão“. “Sou de um bairro bem periférico, bem carente e desprovido de qualquer política pública que possa inserir gente em questões culturais”. Segundo ela, o diferencial da sua personagem é, exatamente, a origem dela, que não passa pela favela. “É uma advogada, filha de uma empregada doméstica, e conseguiu se formar com muita dificuldade”. Segundo a atriz, quando se compara as duas versões de “Cidade de Deus” o ponto de diferenciação reside no fato de ser “uma história em perspectiva. Estamos em 2024 contando uma história que aconteceu em 2004, e observando o Rio de Janeiro desses últimos 20 anos, podendo assim observar o tanto que a gente caminhou e o que a gente quer que a cidade se torne, além do quanto os moradores são impactados com as guerras. A gente não está com uma câmera jornalística olhando do lado de fora das casas, mas dentro das casas, acompanhando os dramas deles”.

E Andréia prossegue dizendo sobre a atualização do longa, no que diz respeito a “transformar aquele lugar para se adaptar à realidade, que muitas vezes pode ser dura devido à violência e à estrutura de segurança pública do Rio de Janeiro, é um desafio. Contudo, a série também traz algo que, no final, se revela essencial: a alegria de viver dessas pessoas. Ao entrar na casa dessas famílias, encontramos afeto, drama, amor, gargalhadas, e uma rica cultura carioca sendo representada. É a cultura da união, do coletivo dos moradores, do afeto entre eles, que revela o quanto isso é transformador. As coisas se transformam na festa da vida, e há também o poder feminino, que no filme não existia, mas na série, são as mulheres que estão na dianteira”.

No contexto da fala da atriz Andréia Horta é relevante destacar o histórico abandono social e afetivo que as mulheres encarceradas enfrentam, um reflexo de preconceitos profundamente enraizados. A sociedade ocidental, desde os primórdios da sua construção cultural, atribuiu à mulher um papel de guardiã da moralidade e da pureza, relegando ao homem as ações mais agressivas e, por vezes, violentas. Esse estigma acaba por moldar a percepção coletiva, tornando ainda mais perturbadora a ideia de que uma mulher possa cometer atos considerados monstruosos.

Além disso, o abandono dessas mulheres por seus pares e famílias não é apenas uma consequência de seus atos, mas também uma punição adicional imposta por uma sociedade que se recusa a aceitar que a mulher, muitas vezes vista como símbolo de compaixão e cuidado, possa também ser capaz de atos de maldade. “Não tive nenhum contato com mulheres presas para fazer esse trabalho, e talvez seja isso o que se espera. Muitas vezes esperamos que os homens sejam os únicos a cometerem atos tão vis, e talvez seja ainda mais assustador para nós que uma mulher possa cometê-los. Eu acredito que seja por aí. Algumas pessoas já me perguntaram quando a Gerusa vai se humanizar. Ora, veja, se a maldade não é um ato humano, inerente e totalmente humano. Então talvez exista essa expectativa de que as mulheres não ocupem esses lugares [de maldade].”

Andréia Horta é Gerusa em “Cidade de Deus” (Foto: Renato Nascimento)

A relação de Lara com os outros personagens, especialmente com sua avó, interpretada por Marieta Severo, é central para o desenvolvimento da trama e reflete a busca constante da personagem por uma conexão genuína e altruísta. Andréia Horta destaca essa característica fundamental de Lara: “Lara tinha uma esperança no outro, uma coisa muito bonita de ver. Ela tinha esperança no outro, queria o melhor do outro. Ela trabalhava na direção de conseguir que o outro agisse da melhor maneira possível. É uma personagem muito, muito sensível, muito justa e na qual eu tinha uma parceria maravilhosa com a Marieta Severo, que fazia a minha avó. Lara era uma mulher muito forte, muito firme, mas de uma doçura imensa”. A personagem representa uma figura complexa, equilibrando força e sensibilidade, e sua história é marcada por uma dualidade: de um lado, a doçura e a justiça que ela encarna; de outro, a traição e o engano do homem que ama, vivido por Cauã Reymond.

Em “Um Lugar Ao Sol”, Andréia Horta foi Lara (Foto: Divulgação/Globo)

A alma de uma artista é, por natureza, um terreno fértil onde emoções florescem com a intensidade. Para Andréia Horta, a vida pulsa em cada detalhe, nos encontros, nas palavras, no que há de belo e no que há de bruto. A atriz se deixa comover pelo cotidiano, encontrando poesia nas nuances do que a rodeia. Sua visão do mundo é permeada por uma recusa firme em aceitar a banalidade da barbárie e da mediocridade, preferindo focar no que é sublime e verdadeiro. “Eu sou uma mulher emocionada; a vida me comove. Estou sempre muito atenta. Acho que o próprio exercício de fazer cena e de trabalhar sem parar nos últimos 20 anos – um trabalho após o outro – me mantém em constante estado de presença. Estar em cena é convocar o presente; você precisa estar inteiramente naquele momento, prestando atenção no que estão te dizendo, escutando. Viver é um exercício de presença muito grande, prestando atenção no que me dizem, no que vejo, escutando, me espantando com as notícias, com as coisas. Recuso-me a naturalizar a barbárie e a mediocridade, mas sou emocionada pelo que me maravilha, pelo que acredito, por textos e poemas, por coisas diferentes e, sobretudo, pela vida.”

Esse compromisso com a emoção e a presença faz eco à postura de outra grande mulher da cultura brasileira, Elis Regina, que certa vez declarou: “Eu não vim para ficar explicando, eu vim para fazer”. Andréia Horta, em sua jornada artística, parece seguir essa mesma trilha, permitindo que suas ações e interpretações falem por si, sem a necessidade de justificativas. Elis, na mesma entrevista que abriu esta reportagem, apontou que a vida não tem paetês e lantejoulas, mas que esses adornos foram inventados para lhe dar um certo brilho. No entanto, ao ouvir Andréia, além disso, uma certeza prevalece, além da beleza: Que dias mulheres virão.