*Por Thaissa Barzellai
É injusto dizer que Andrea Beltrão é uma mulher de seu tempo. Ela é mais do que isso. É a mulher de todos os tempos, que, através da sua presença artística, se transforma diante da atualidade que lhe é apresentada sem perder a irreverência e individualidade que faz dela uma das artistas brasileiras mais celebradas dos últimos anos. Em constante movimento, Beltrão tem muita consciência da arte que deseja fazer e dela extrair, apresentando sempre trabalhos onde se mostra uma camaleoa. Seja na comédia, no drama ou na tragédia grega, ela entrega tudo de si e arrebata o público com mais uma interpretação fora do lugar-comum. No ar em “Um Lugar ao Sol”, 20 anos depois desde a sua última aparição na teledramaturgia, a atriz tem instigado debates pertinentes ao universo feminino ao viver a ex-modelo Rebeca, uma mulher que precisa se redescobrir diante do envelhecimento. “A sociedade está muito careta, estamos vivendo um momento que parece a Idade Média. Mas isso vai passar, isso vai melhorar. Esses tempos que vivemos passarão”, comenta.
Temas como masturbação, relacionamento com homens mais novos e menopausa são discutidos com muita naturalidade, sem estereótipos ou dramatizações, e não passam despercebidos pelo público. Com a cena já emblemática de Rebeca se masturbando na companhia literária de Sheherazade, figura feminista de “Mil e Uma Noites”, Andrea se tornou um dos assuntos mais comentados do twitter ao mesmo tempo que tomou conhecimento, em primeira mão, de comentários não tão célebres, reflexo de um conservadorismo datado. “Não é possível que nós não possamos falar de certas coisas”, pontua Andrea, que se surpreendeu ao ver que a cena foi, enfim, ao ar. O público não é o único que tem se apaixonado a cada capítulo por Rebeca e suas experiências, que ressoam com os espectadores que estavam carentes de narrativas mais contemporâneas.
Na pele da modelo, Andrea Beltrão encontrou conforto e júbilo em sua complexidade, na qual abre caminho para assuntos valiosos à atriz. “Eu sou apaixonada pela Rebeca e me identifico muito com ela. Foi um prazer imenso vivê-la. Rebeca é uma mulher que tem as suas questões e contradições, mas ela é uma mulher do tempo dela. Isso é interessante. Ela é muito contemporânea, ela defende coisas que interessam muito a nós e faz isso de maneira muito solar”, reflete. Esse ímpeto sociopolítico é intrínseco à sua persona e todos os seus trabalhos têm uma pitada de provocação contra tudo aquilo que a atriz não acredita. Na peça-filme “Antígona 442 a.C”, Andrea Beltrão resgata o discurso de ‘’Antígona’’, clássico do grego Sófocles que discute a moralidade, liberdade e justiça, em um Brasil cujos alicerces são a impunidade, o autoritarismo e a desigualdade sociopolítica. Exibida na 23ª edição do Festival do Rio, a obra, ovacionada ao fim da sessão, dialoga diretamente com os ideais do evento, que resiste diante de tantas represálias à cultura com uma agenda de debates, mostras e lançamentos. ‘’Eu fiquei super nervosa na hora de vir pra cá. Ver gente diferente é muito emocionante. Acho que o mais importante dos festivais é essa reunião de saberes, de estéticas, de assuntos, de provocações, e isso é o que faz do Festival do Rio um grande evento”, comenta Andrea que realizou o projeto em parceria com o marido e diretor Maurício Farias com recursos próprios.
Para Farias, a recepção do público reflete a atemporalidade da obra, cujo viço está na destreza com a qual caminha entre a humanidade coletiva e individual. “O texto de Sófocles é eterno. Enquanto houver ser humano na terra, essas palavras serão ouvidas. Independente das questões políticas mais evidentes do texto, porque ele fala de governos tirânicos, há também os seres humanos autoritários e nós, em alguma instância, convivemos com essa questão: que é a relação com o outro. Falar disso é importante para que a gente tenha uma sociedade mais igualitária e aprenda a lidar com os pequenos poderes que a vida confere a nós às vezes’’, comenta o diretor que atribui grande parte do mérito da obra para Andrea, que assina ao lado de Amir Haddad a adaptação da tradução de Millôr Fernandes. “Andrea é uma parceira excelente para qualquer diretor. É uma grande atriz que tem muito domínio do que faz e com quem você pode estabelecer um diálogo excepcional porque ela entende exatamente o que ela, você e todos que estão ao redor dela estão fazendo. Isso é uma característica dos grandes atores. É uma alegria trabalhar com ela”, diz Maurício.
Essa entrega ímpar de Andrea Beltrão não é surpresa para quem lhe acompanha e, ainda assim, suas interpretações seguem sendo surpreendentes. No dramédia “Ela e Eu”, dirigido por Gustavo Rosa de Moura e também exibido no Festival do Rio, Beltrão se desnuda diante do espectador ao viver Bia, uma roqueira que acorda de um coma 20 anos depois e terá que reaprender as funções humanas básicas. A dedicação aos detalhes da personagem resulta em uma comovente interpretação comandada por uma artista que sabe dosar as pitadas de drama e comédia sem perder a essência da história. Ciente das suas limitações físicas, a artista terá que navegar pela dinâmica familiar que se desenvolveu durante o período que passou desacordada, tudo isso sem perder o bom humor. Entre os principais desafios, estão a aproximação com a filha Carolina (Lara Tremouroux) e a convivência com Renata (Mariana Lima), mulher atual do ex-marido Carlos (Eduardo Moscovis). O filme, que levou mais de dois anos para ser finalizado, solidifica a parceria com Mariana, sua fiel escudeira no folhetim de Lícia Manzo e com quem já dividiu o palco na peça “Nômades” em 2014. “É um paraíso e uma grande sorte trabalhar com esse naipe de atrizes. Eu escolho estar com os melhores parceiros sempre que possível”, comenta a atriz que cita Fernanda Torres e Marieta Severo, carinhosamente chamadas de ‘namorada’ e ‘esposa’, respectivamente, como as outras integrantes da sua trupe particular.
Mais atenta e forte do que nunca, confiante em sua própria imagem, Andrea Beltrão abraça a vivacidade que veio com a maturidade e injeta-a em novos trabalhos. Em contagem regressiva para reabrir o Teatro Poeira, em Botafogo, em janeiro, a atriz prepara uma nova produção teatral com Marieta Severo, com quem administra o espaço, dirigida por Enrique Diaz e com estreia marcada para abril, além de uma mostra sobre a trajetória do centro cultural, dos artistas, projetos e peças que por ali ganharam vida. E assim Andrea Beltrão se mantém fincada na arte brasileira, sem data e nem hora para ir embora.
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