*Por Vítor Antunes
Ao fazer “Malhação – Viva a Diferença”, Ana Hikari entrou para a história da TV brasileira em razão de ser a primeira atriz asiática a protagonizar uma novela na Globo. Antes dela, apenas a atriz – e hoje cantora – Rosa Miyake protagonizara uma trama “Yoshico, um poema de Amor”, em 1967, na extinta TV Tupi. Cinquenta anos depois, Hikari entrou para este rol e hoje é um dos nomes que milita pela causa oriental. A artista critica a abordagem estereotipada dos asiáticos na TV brasileira, a pouca penetração do debate étnico de pessoas não-brancas na TV e a ausência de representatividade amarela nas telinhas: “A única oriental que via na televisão era a Dani Suzuki”. Suzuki, aliás foi uma das vítimas do whitewashing. Na novela “Sol Nascente”, que tratava sobre a imigração japonesa, a atriz fora substituída por Giovanna Antonelli, que é descendente de italianos.
Diante da queixa da atriz, fizemos um levantamento com casos de whitewashing – que trata-se da escalação de atores brancos para papéis que deveriam pertencer a atores de outras etnias, ou ainda sobre a decisão de colocar um personagem branco como herói/salvador, ainda que a história de passe em outra cultura ou país. Especialmente em novelas da Globo, os casos são recorrentes e acontecem desde os anos 1960. Em agosto, uma cena de “branqueamento racial” seria exibida em “Cara e Coragem”, e a mesma foi cortada por reivindicação da comunidade oriental.
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“Malhação – Viva a Diferença” foi uma vitoriosa temporada da extinta soap-opera das 17h. O sucesso da trama exibida em 2017 a fez ser indicada e vencedora do Emmy de “Melhor Série” em 2018. O êxito do projeto escrito por Cao Hamburger gerou um spin-off igualmente bem sucedido que foi a série “As Five”, cuja primeira temporada consta no catálogo do Globoplay e já teve concluídas as gravações da segunda e da terceira temporadas, que ainda não têm previsão de lançamento.
As cinco meninas protagonistas, as atrizes Daphne Bozaski, Gabriela Medvedowski, Heslaine Vieira e Manoela Aliperti, além da própria Ana, transportaram a amizade das telinhas para a vida real: “Formamos um grande núcleo de amizade entre as meninas. Temos ainda hoje um grupo de WhatsApp”, diz. Coincidentemente, a amizade entre as personagens da extinta “novelinha” surgiu por conta de um grupo no aplicativo de troca de mensagens. A artista prossegue dizendo que ela e as outras quatro meninas passam muito tempo juntas. “E agora que estamos gravando num ritmo de serie – que chega a atingir 12 horas diárias – promove uma conexão grande de trabalho e de sintonia que acontece de forma mágica. É muito prazeroso trabalhar com pessoas nas quais a sintonia do olhar para uma cena já é o bastante para que se entenda a proposta e o jogo cênico”.
No fim de Agosto foram encerradas as gravações da série que não terá outras temporadas senão as já rodadas. Globoplay ainda não divulgou a data de lançamento da série em sua plataforma. Ao co-protagonizar “As Five”, Hikari foi a primeira atriz a desempenhar um papel central em novelas da Globo. Antes dela apenas outra mulher conseguira desempenhar um personagem em situação equivalente, tratava-se de Rosa Miyake, na esquecida “Yoshico, um Poema de Amor”, da TV Tupi, em 1967. Quanto aos homens, o pioneirismo na “Vênus Platinada” coube ao ator taiwanês naturalizado brasileiro Jui Huang.
Haver sido a primeira, e, por enquanto, a única protagonista amarela das novelas da Globo soou à atriz algo como “uma grande responsabilidade. Eu entendi que estava num lugar de representatividade para muitas pessoas que não se viam ali naquele lugar de protagonismo e isso é algo muito relevante. Razão pela qual entendo que, por estar ali, era necessário que eu falasse sobre assuntos que fossem pertinentes à etnia. Fazer “Malhação” me motivou a estudar questões raciais. Eu vim cinquenta anos depois da Rosa [Miyake]. Ainda há poucos protagonistas negros, é claro, mas indígenas por exemplo, não há nenhum. Isso precisa ser discutido”.
“Quando a gente vai ver na TV essas pessoas que fazem parte do nosso dia a dia e que representam de fato do Brasil, que não é um país só branco? – Ana Hikari
As alegações de Hikari, de fato, são apoiadas em contextos históricos. Ainda que tenha havido uma novela sobre a “Amazônia” (Manchete, 1991) e uma série sobre a floresta na Globo, em 2007, em nenhuma das tramas a personagem central era uma indígena, ainda que houvesse uma atriz daquela etnia, Suyane Moreira, no elenco. A moça também figurou na capa da trilha sonora da série. Ainda sobre a temática sonora, a música de abertura de “Negócio da China”, traz a famosa marchinha “Lig Lig Lé”, que, segundo Hikaro “é bem estereotipada, cheia de clichês, preconceitos e piadas que são ofensivas às pessoas amarelas”. Além das tramas anteriormente citadas, uma exibida pela Record em 2004, “Metamorphoses”, foi a que mais contou com atores asiáticos em sua escalação.
Ana diz que era difícil haver suas referências orientais: “Se para pessoas negras já é algo difícil, para orientais mais ainda. A única atriz amarela que eu vi na TV foi a Dani Suzuki”. A presença de asiáticos é tão bissexta que Hikari salienta ver no teatro “a possibilidade de ser outras coisas para além da caixinha (racial). Tanto que no teatro eu cheguei a fazer ‘Grease’, interpretando a protagonista Sandy”. A adaptação teatral do filme, também conhecida como “Nos Tempos da Brilhantina”, foi vivida por Olívia Newton-John (1948-2022).
Vejo no teatro uma ferramenta de transformação política e social e pra mim isso foi uma referência, porque se eu me focasse só na TV eu não existiria já que não me reconheceria naquele espaço. O teatro é um lugar que me possibilitou ser aquilo que eu quisesse” – Ana Hikari
Ainda na seara teatral, a artista antecipa estar preparando uma montagem para os palcos de “Romeu e Julieta” apenas com atores não-brancos. “Acredito ser muito legal, porque fala muito representatividade. Atualmente há, em Londres, um questionamento sobre a linguagem de Shakespeare (1564-1616) com o fato de as adaptações serem feitas por atores brancos e estamos transpondo isso aqui para o Brasil. A imagem que temos na cabeça é de atores brancos vivendo personagens de Shakespeare, já que “Romeu e Julieta” se passa na Itália. É muito legal subverter essa lógica”.
PÁGINAS AMARELAS
O Yellowface – que emula em atores brancos os traços orientais – assim como Blackface, que “empretece” atores brancos, vem sido problematizado no campo contemporâneo. Tanto os negros como os orientais veem nesta reprodução algo ofensivo e não apenas isto, mas também a redução da fatia do mercado que lhes competiria.
O mercado para asiáticos é muito restrito. Quando há personagens que, teoricamente, seriam destinados a uma pessoa amarela e quando seria a oportunidade ideal para ela estar trabalhando, este papel acaba destinado a um ator branco. Quando isto acontece, é racismo, não há outro termo – Ana Hikari
A atriz prossegue: “Me parece óbvio, ainda que não seja para muita gente, e embora ainda exista também esta construção no audiovisual, de que toda a cultura asiática é um produto que pode ser esvaziado e reproduzido, sem que tenha significado e respeito, muitas vezes em forma de chacota e feita por brancos. Quando um branco representa um amarelo, a gente vê coisas estereotipadas e piada em cima disso, pois que somos usados como alívio cômico. Há uma gravidade nisso. Falta a quem produz o audiovisual brasileiro hoje em dia ter a consciência de que isso também é uma forma de discriminação racial e esse pensamento não se restringe ao teatro e ao cinema”.
Conta-nos a atrista que há um grupo de WhatsApp composto por atores orientais onde eles debatem este tema, além de haver páginas nas redes sociais segmentados a este gênero. Inclusive, relata a moça, que uma cena recente da novela das sete “Cara e Coragem” não foi ao ar devido às reivindicações dos atores e da “imprensa amarela”: “A cena de “Cara e Coragem” haver caído deve-se muito pela mobilização dos atores e atrizes asiáticos que foram em peso questionar nas páginas da Globo. Muita gente acha que a cena caiu por minha causa, e acho importante dizer que não foi. A Tati Takiyama, fundadora da página “Notícias Amarelas” publicou um vídeo maravilhoso sobre o tema e a primeira pessoa a publicar um vídeo falando sobre esse assunto do Yellowface em “Cara e Coragem” foi a influencer Bruna Tukamoto.
No último mês foi publicado na página de Takiyama um debate, apoiado pelos atores de ascendência oriental, sobre o Yellowface existente na peça “Tudo”, encenada no Rio de Janeiro, que contou inclusive com o posicionamento do diretor da montagem, o ator Guilherme Weber e um debate exercitado entre os atores do espetáculo e a comunidade amarela. Uma das falas de Takiyama remonta ao fato de que o comentário sobre a montagem teatral “não seria a primeira nem a última vez em que falaria de Yellowface”.
De fato, a prática, especialmente na TV, é antiga e recorrente. Haveria neste ano, 2022, na novela que está no cartaz das 19h, de forma episódica. Todavia, um dos casos mais recentes deu-se no ano de 2014, onde um personagem coreano foi interpretado pelo ator Rodrigo Pandolfo. Outro caso icônico, e também recente, foi a transformação em japonesa da atriz Giovanna Antonelli em “Sol Nascente”, novela que tratava sobre a imigração japonesa. Além de Antonelli, seu pai na trama, Luís Mello, também interpretou um japonês, ainda que o ator seja descendente de… indígenas! Casos mais antigos na dramaturgia chamam ainda mais atenção. Edney Giovenazzi, também descendente de italianos, foi um oriental duas vezes – uma na Globo, em “A Próxima Atração” (1970) e outra na já citada “Yoshico, Um Poema de Amor” (1967), da Tupi. Na galeria abaixo, os registros destes exemplos de yellowface.
Um caso que chama a atenção, também nos anos 1960, é o de Yoná Magalhães (1935-2015) em “À Sombra de Rebecca”. Não apenas a atriz viveu uma oriental, Suzuki, como praticou o haraquiri – suicídio ritual restrito aos homens. No ano seguinte, 1968, foi a vez de Theresa Amayo (1933-2022) viver uma chinesa – sendo ela uma atriz loura, de ascendência franco-italiana. Quanto às capas de trilhas sonoras de novelas, apenas em duas ocasiões atrizes figuraram. Nas duas, em “Malhação”. Uma com a própria Ana, junto às outras quatro meninas de seu elenco, outra com Dani Suzuki.
O Brasil não é composto apenas por pessoas brancas ou só por pessoas brancas e negras. Existe uma diversidade étnica no país que precisa ser apresentada no audiovisual brasileiro. Existe essa questão e não dá para pensar que pessoas brancas podem representar toda e qualquer pessoa além daquela de sua própria etnia – Ana Hikari
Por ocasião da pandemia do coronavírus, os orientais foram vítimas do preconceito, diante do fato de um dos primeiros casos da doença haverem se difundido na China. Por conta disto, muitos orientais sofreram hostilidades. “Ver etnias associadas a doenças é uma estratégia de opressão muito antiga. Os asiáticos já eram associados à sujeira, à ausência de higiene e não é de hoje e isso. Trata-se de uma expressão do racismo que a gente viu se potencializar com o coronavírus. O que conferimos foi o número bizarro de aumento de violência, cada vez mais forte e crescendo a ponto de haver situações graves. Às vezes, não temos consciência deles por que não há uma tipificação como o do crime de feminicídio que não era contabilizado. Falta vocabulário para trazer estatística e debater esse fato”.
Eu acho que o nosso país vive uma grande ausência de debate racial . Temos a ilusão de haver aqui uma democracia racial e que não há racismo e isso nos faz ignorantes em ralação a quais são as identidades [étnicas] possíveis aqui. Até mesmo havendo a escalação de atores brancos para representar pessoas do Oriente Médio, os asiáticos marrons – Ana Hikari
Outro tema que a jovem traz ao debate é a hiperssexualização da mulher oriental e emasculação do homem: “Passei por períodos na adolescência de hiperssexualização por viés racial. Havia caras de diziam “nunca haver beijado uma japinha”, ou algo do gênero, ainda como dizerem que eu ‘era igual à atriz pornô que ele havia visto’, como se isso fosse elogioso. Passei toda a minha adolescência e início da fase adulta vivendo isso até que descobri que esta objetificação e hiperssexualização atinge às mulheres asiáticas de maneira geral”.
QUANDO AS CEREJEIRAS FLORESCEM
Perguntamos a atriz se haverá algum momento em que os negros e os orientais não precisarão mais falar sobre proconceito ou racismo. Hikari disse ser “otimista. Tento muito me abstrair, porque a gente não tem como esquecer a nossa própria existência. Mas eu procuro ao máximo estar com os meus. Me aproximo de quem compreende e pode colaborar para estarmos num ambiente seguro, saudável e respeitoso. E com pessoas que podem trazer mudança real e para além das redes sociais”.
Ana celebra a ascensão dos doramas – “novelas” orientais – e dos tokusatsus, séries de super-heróis e onde reinam os efeitos especiais (Como “Jiraya” e “Black Kamen Rider”) que popularizam a figura dos não-brancos, bem como os filmes que trouxeram para a cena diretores, atores e filmes, inclusive premiados como “Parasita” e o candidato ao Oscar “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”. Segundo ela, este movimento “simboliza uma mudança de comportamento diante do deslocamento de mercado, que sempre pautou-se por uma hegemonia americana. Trata-se de uma potência no leste asiático esse deslocamento político que a gente está vivendo e que acaba reverberando na cultura e no consumo cultural.
A cerejeira, árvore típica do Japão, floresce num especial momento do ano e é justamente aquele o momento que a faz viçosa. A flor é a liberdade da cerejeira. Ana diz q o que a faz florescer é a sua arte: “Quando estou atuando posso fazer a loucura que quiser dentro do meu personagem. Minha maior liberdade é poder minhas personagens”. A atriz finaliza com uma frase, atribuída a Nietsche, que diz que “atuar é ter é a liberdade de Dionísio no reino de Apolo”.
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