Ailton Graça e a visibilidade LGBT através da Xana de Império: “Nosso país cresceu sob a tutela do preconceito”

“A Xana me trouxe muitas alegrias. Fiquei feliz de ver a reprise de Império e o alcance dela na internet. Meu Instagram bombou”, frisa Ailton (Foto: Globo/Paulo Belote)

* Por Carlos Lima Costa

Com a apresentação do último capítulo da reprise de Império, nesta sexta-feira, dia 5, o Brasil se despede novamente de Xana Summer, um dos principais personagens da carreira de Ailton Graça, que mais uma vez conquistou o país desde sua exibição original, em 2014, dando visibilidade à causa LGBTQIA+. “A Xana me trouxe muitas alegrias. Fiquei feliz de ver a reprise e o alcance na internet, muita gente assistindo novamente, fazendo comentários, memes, mandando recados. Meu Instagram bombou. Um personagem que me deu muitos prêmios, mas foi extremamente difícil de interpretar, buscar as nuances certas. Estou feliz até porque a pauta da Xana continua em evidência e mais ainda agora. Grupos LGBTQIA+ me enviaram bastante carinho através das redes sociais”, comenta.

Isso reflete a forma como criou a Xana, fugindo do lugar comum. “Fui atrás de muita orientação para não fazer uma interpretação caricata que se associasse a um discurso ou que debochasse, fizesse uma crítica ou fosse extremamente panfletária. Queria que fosse mais no afeto, uma pessoa resolvida com o seu ser, com o seu corpo. Ela não aceitava rótulo. Agradeço a muita gente que me ajudou na época, como a Rogéria (1943-2017). Pessoas que me orientaram a respeito das pautas que já estavam brotando. Falas foram trocadas, enfim foi tudo muito bem estudado, e, hoje, na reprise, vejo que não foi em vão, porque eu tinha que fazer isso e corresponder a muito. As pautas estão aí. É o país que mais mata gay no mundo e fazer um personagem que era amor e que era amado e respeitado por sua comunidade foi bem bacana. Agradeço a todos os diretores que ajudaram nos diálogos, na construção coletiva desse personagem, uma grande líder comunitária, que agia na vida das outras pessoas de forma afetiva”, acrescenta, ressaltando a parceria com a atriz Viviane Araújo, a Naná. “Somos amigos do samba de muito tempo e esses personagens são significativos para nós”, diz.

O ator é presidente da escola de samba Lavapés, de São Paulo (Foto: Globo/João Miguel Junior)

Com tantos outros preconceitos existentes em nossa sociedade, como gordofobia e racismo, o caminho ainda é longo para mudar a realidade do Brasil. “É um país que cresceu sob a tutela do preconceito, que até hoje não resolveu a questão do povo negro, do povo indígena e com essa direção que hoje atravessa o país, a tendência é piorar. A fome estava sendo erradicada do nosso país, mas ela voltou. O padrão de educação caiu vertiginosamente. Avanços que tínhamos conseguido em relação aos Direitos Humanos estão na balança séria para a gente perder. O trabalhador tem perdido os seus direitos. Então, nunca foi tão importante falar sobre intolerância como agora. Nunca foi tão importante unir o movimento negro a todas as outras questões, a todas as outras minorias que o tempo todo são vítimas da construção de um país que é racista, que guarda isso na sua célula com orgulho. Um país que nunca soube perder os privilégios da casa grande”, desabafa o ator, que desde 2019, é presidente da Lavapés, a mais antiga escola de samba em atividade, em São Paulo, fundada em 1937. Nela, planeja narrativas que consigam trazer conhecimento de todo o legado do povo negro para compartilhar com as pessoas. “Esse ano, vamos fazer homenagem para nossa mamãe Oxum”, conta.

Em meio às preparações para o Carnaval 2022, tem sua atenção voltada também para o filme Galeria Futuro, dirigido por Fernando Sanches e Afonso Poyart, que estreia nos cinemas no próximo dia 18. Na trama, ele, Marcelo Serrado e Otávio Müller interpretam respectivamente Eddie, um mágico; Valentim, o funcionário de uma locadora de vídeo; e Kodak, dono de uma loja de fotografia, que trabalham em uma galeria decadente vendida para uma Igreja Evangélica.

Otávio Müller, Ailton Graça e Marcelo Serrado em cena do filme Galeria Futuro (Foto: Still – Fred Siqueira e Gabriel Brasil)

“Vivemos o Woodstock, pedíamos e usamos a camiseta de Che Guevara, (1928-1967), tivemos o prazer de ver a evolução da música black norte-americana, tivemos o prazer de conhecer grandes revolucionários lá atrás como Candeia (1935-1978), Martinho da Vila, e presenciamos que o mundo foi mudando, ficando carola, careta através de algo que foi aprisionando todo mundo na questão econômica. Então, ela se sobrepôs a questão humanitária. Tudo que era mais humano, foi perdendo. A tecnologia ela de alguma forma nos libertou, mas também nos aprisionou, então, pensando em Galeria Futuro, nós somos três caras que viveram tudo isso e estão vendo tudo sucumbir, ainda presos ao passado. E esses cinquentões que viveram esse período de liberdade, estão vendo a galeria virar refém de mais um desses desbundes sociais, quando o local vai deixar de ser galeria com várias lojinhas para se transformar em um shopping da fé”, conta.

As filmagens de Galeria Futuro, que aconteceram em 2019, remetem a boas lembranças. “Serrado é meu irmão, então, foi uma delícia, um prazer gigante. O Otávio Müller é um mestre. Tenho uma admiração pela pessoa que ele é e de seu mergulho artístico. Tê-lo com suas inquietações artísticas foi fundamental e a Lu (Luciana Paes), meu Deus, que delícia foi contracenar com uma mulher supercriativa. Começamos de forma despretensiosa e quando comecei a ver as imagens sendo captadas, vi que a gente tinha um grande trabalho, uma ousadia gigante de linguagem. É um filme que inaugura a inadaptação de três caras cinquentões num espaço tempo, em profissões que já desapareceram. Como esses caras vivem a partir daí, se entregam, jogam a toalha? Não, enquanto existe vida, existe uma possibilidade”, explica Ailton.

Equipe do filme Galeria Futuro, que estreia nos cinemas, dia 18 (Foto: Still – Fred Siqueira e Gabriel Brasil)

O filme fala sobre amizade, evolução e nostalgia. “Eu sou e não sou saudosista. Algo que eu aprecio muito é a cultura dos orientais. Quanto mais avançam no futuro com a tecnologia, mais eles buscam as referências do passado. A filosofia africana é a mesma coisa, por isso que acredito que quanto mais a gente avança no desenvolvimento tecnológico, de linguagem, postura e tantas outras coisas, temos que buscar essas informações. A gente não pode anular as grandes descobertas e a postura lá atrás. A humanidade já errou queimando as bruxas, queimando pessoas que sucumbiam a determinada doutrina ou pensamento. Lá atrás existia uma disputa de pensamentos e o aprendizado que cada um levava pra vida. Não sou saudosista, mas para avançar mais no futuro a gente tem que ir atrás de passados que foram riquíssimos na humanidade”, filosofa.

Cartaz do filme Galeria Futuro

E prossegue em suas reflexões. “Se a gente não resolver questões que lá atrás não foram resolvidas, a humanidade não avança de maneira alguma e entre elas a primeira questão que deve ser resolvida é porque a humanidade que se baseia na construção greco-romana, elegeu a cor preta para ser criminalizada, a cor que se remete a algo ruim? Os gregos e os romanos estudavam com os egípcios, estudavam com o nosso povo preto. Então, quero de volta o que era antes do greco-romano, mas isso é uma longa conversa”, aponta ele, que no momento, grava como um policial a produção Rota 66, série da Globoplay, baseada em livro homônimo do jornalista Caco Barcellos, com estreia prevista para 2022. E aguarda também, para o próximo ano, as filmagens do longa-metragem sobre Mussum (1941-1994), onde ele vai interpretar o saudoso integrante de Os Trapalhões.

No momento, Ailton Graça está gravando a série Rota 66, da Globoplay, que estreia em 2022 (Foto: Globo/Renato Rocha Miranda)

Ailton vem marcando a carreira com papéis diferentes uns dos outros em novelas como O Sétimo Guardião, Totalmente Demais, Flor do Caribe e, em filmes, como Carandiru. Antes de se tornar um ator consagrado entre seus pares e pela crítica, ele trabalhou, por exemplo, como feirante. “O brasileiro que continua trabalhando na feira ou na construção, que faz qualquer outro tipo de atividade também deu certo. Eu tinha uma inquietação e dei vozes para ela. Estou tendo a felicidade de trabalhar com um rapaz que é auxiliar do meu pedreiro e ele pinta quadros. Eu não tenho esse talento. Dentro do olhar do lado simplório, ele simplesmente é um pintor de parede. Mas tem uma potência gigante. Comprei dois quadros dele. Para não parecer que a minha mudança de profissão é um ato heróico, eu apenas dei vazão ao meu desejo, que era o meu grande foco. Não posso ver de maneira diferente o que eu faço. E o Ailton Graça que foi feirante e pedreiro continua aqui dentro de mim, eu sei emboçar, vender os meus tomates. Isso me ajuda a compor esses personagens mais populares. Gosto de mergulhar no perfil psicológico de cada personagem. Alguns a gente acerta, outros nem tanto. Alguns conseguem atingir a empatia, outros não tem caráter, mas de qualquer forma cumprem a função de levar reflexão e provocações para quem está assistindo. Foi bonito ver agora em um bar que os caras jogam sinuca, todos parados assistindo a Xana, da mesma forma que via as ruas vazias com o povo assistindo Avenida Brasil”, ressalta ele, que relembra momentos da pandemia.

“Não tive Covid, mas surtei achando que tive, minha mulher (Kátia Naiane) ficou na sala e eu fiquei trancado no quarto recebendo comidinha pela porta como se fosse um prisioneiro, eu surtei. Agora, foi duro perder alguns amigos. Sofri com cada um. A morte crescente na nossa cidade, no mundo, através da Covid faz a gente voltar pra dentro e recalcular a rota dos caminhos pelos quais a humanidade está trilhando”, finaliza.