Adriana Dutra reflete sobre tempo em doc e declara: “Estamos doentes com a vida conectada e multifacetada da qual não se desliga nunca”


A cineasta e uma das sócias da Inffinito, produtora responsável pelo Circuito Inffinito de Festivais – uma das principais janelas da nossa produção audiovisual no mundo -, fala sobre sua carreira como diretora, sociedade do consumo, a influência das novas tecnologias nas relações interpessoais e como o cinema nacional respira em meio à crise

“Viver de cinema no Brasil é uma luta constante”. A frase foi dita durante o 19º Brazilian Film Festival of Miami por Adriana Dutra, cineasta e idealizadora de eventos, responsável pelo Circuito Inffinito de Festivais, uma das maiores vitrines da produção audiovisual nacional em todo o mundo, cujo trabalho ela divide com Viviane Spinelli e a irmã, Cláudia Dutra. Há quase 20 anos trabalhando com festivais internacionais – a edição recente do 19º Brazilian Film Festival of Miami levou aos Estados Unidos o premiado “Que horas ela volta”, de Anna Muylaert -, Adriana conta em entrevista exclusiva a HT que a sua paixão pela sétima arte resultou em duas experiências consagradas atrás das câmeras: “Fumando Espero” (2008), longa-metragem sobre a difícil experiência de se deixar de fumar e o documentário “Quanto tempo o tempo tem”, que será exibido hoje, domingo, dia 3, durante a Mostra Expectativa, do Festival do Rio, no Cinépolis Lagoon, para convidados. Adriana explica que, a partir de sua inconformidade acerca de temas gerais da vida, ela idealizou seu segundo filme, parte integrante de uma trilogia, baseando-se na relação do ser humano com o tempo e a forma como as novas tecnologias e a globalização tem interferido nas relações entre as pessoas. “Meus filmes nascem dessa inquietação com a vida conectada, multifacetada, que você não desliga nunca. Na verdade, estamos todos doentes. Não conseguimos nos aprofundar em um assunto, porque sempre tem algo novo chegando e o mundo acaba ficando raso. O filme nasceu dessa sensação”, comentou.

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Para o projeto, que ao longo do Festival do Rio será exibido ainda no Cine Joia (6/10), no Centro Cultural Justiça Federal (10/10) e no Ponto Cine (11/10), Adriana entrevistou filósofos, físicos, arquitetos, neurocientistas, transumanistas e até uma monja budista. Os depoimentos no filme são de André Comte-Sponville, Marcelo Gleiser, Thierry Paquot, Arnaldo Jabor, Francis Wolff, Luiz Alberto Oliveira, Raymond Kurzweil, Erick Felinto, Stevens Rehen, Domenico De Masi, Arthur Dapiéve, Alexandre Kalache, Monja Coen Sensei, Tom Chatfield, Analice Gigliotti, Nélida Piñon, Max More, Natasha Vita-More e Nilton Bonder. E, além de “Quanto tempo o tempo tem” já estar com distribuição garantida para circuitos internacionais, canais de TV e ter sido selecionado para diversos festivais, incluindo o 17ème Festival du Cinéma Brésilien de Paris, Adriana Dutra já está de mangas arregaçadas para mergulhar no encerramento da trilogia com “A sociedade do medo”, questionando o padrão consumista que impõe a necessidade de produtos supérfluos à população, com o início das filmagens marcado para o próximo ano.

Mas isso está longe de ser tudo. Ao longo do bate-papo com HT, Adriana também reflete sobre a difusão do cinema nacional no mundo; como o Circuito Inffinito de Festivais fincou seus alicerces na história recente do audiovisual brasileiro com a exibição de 798 filmes e 76 edições espalhadas por cidades como Nova York, Londres, Bueno Aires, Montevidéu, Milão e Vancouver; os desafios de trabalhar com arte em meio a uma crise financeira no Brasil 2015. A entrevista completa, você lê abaixo, com a certeza de que, apesar das dificuldades, o cinema nacional ainda respira – e Adriana Dutra tem se mostrado por quase duas décadas uma peça essencial nessa bomba de oxigênio.

As sócias na produtora Inffinito: Cláudia Dutra, Viviane Spinelli e Adriana Dutra (Foto: Divulgação)

As sócias na produtora Inffinito: Cláudia Dutra, Viviane Spinelli e Adriana Dutra (Foto: Divulgação)

HT: Vocês (Adriana e Cláudia Dutra + a sócia Viviane Spinelli) estão entrando na reta dos 20 anos noa quais Circuito Inffinito representa o cinema brasileiro pelo mundo. Qual o balanço dessa trajetória?

AD: Cada vez mais, eu tenho a certeza de que esse trabalho é extremamente importante. Com essa vitrine anaul pudemos levar 798 filmes ao mundo inteiro com 76 edições de Circuito Inffinito. Nós começamos em 1997, em Miami Beach, com uma audiência de 4 mil pessoas. Hoje, já são 1,8 milhão de pessoas nos festivais pelo mundo, em Montevidéu, Buenos Aires, Bogotá, Miami, Nova York, Londres, Roma, Madri, Barcelona, Vancouver, Milão e Frascati. Ainda há 80 milhões de pessoas que de uma forma ou de outra tiveram contato com informações sobre os festivais e um retorno de mais de U$ 1 milhão em mídia espontânea. Eu acho muitíssimo importante. Enquanto existem os festivais de Berlim e Sundance, o Circuito Inffinito também consegue fazer um trabalho diferenciado, abrindo uma janela exclusiva do cinema brasileiro em praças importantíssimas para essa difusão.

Os Estados Unidos têm esse poder atual, porque todos os envolvidos com a indústria cinematográfica souberam usar o cinema para alavancar seus produtos, serviços, profissionais, música, culinária etc. E é com esse olhar que nós precisamos e queremos continuar, apesar de todas as dificuldades que vivemos por não existir uma plataforma ou uma política específica para a manutenção desse trabalho. Ele renasce a cada ano. Na hora de captar recursos e conseguir fundos, eu preciso provar tudo novamente, o que é desgastante. Nós precisamos ter no Brasil uma política especialmente voltada para festivais. Hoje, temos vários projetos que são considerados importantes para trilharmos juntos esse caminho. Mas todos nós precisamos de um apoio do Brasil, porque isso gera economia. Retorna dinheiro para nós, e fecha o ciclo da cadeia produtiva. Você exibe e produz no país e, com a oportunidade de levar isso para o exterior, é possível trazer mais dinheiro para a nossa indústria audiovisual.

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HT: E como tem sido manter o Circuito Inffinito em meio à crise financeira que o Brasil atravessa?

AD: Hoje, nós passamos por uma recessão financeira que já é oficial, mas eu tive que adiar dois festivais para o ano que vem por conta dela. É algo que eu já sei desde o início deste ano. Por exemplo, não conseguimos viabilizar os festivais de Nova York, Bogotá e Londres. O de Miami foi feito com 40% do orçamento, o que nos fez cortar filmes, convidados, campanha, tecnologia… Ou seja, fazemos isso pela nossa paixão e pela certeza de que é algo necessário.

Viviane Spinelli e Adriana Dutra, sócias da Inffinito, em frente ao Colony Theatre, onde foi realizada a cerimônia de encerramento do 19º Brazilian Film Festival of Miami (Foto: Heloisa Tolipan)

Viviane Spinelli e Adriana Dutra, sócias da Inffinito, em frente ao Colony Theatre, onde foram realizadas as sessões da Mostra Competitiva e a cerimônia de encerramento do 19º Brazilian Film Festival of Miami (Foto: Heloisa Tolipan)

HT: Nesses 19 anos levando a produção audiovisual made in Brasil para o mundo, a Adriana produtora se descobriu como diretora, e alcançou dois sucessos com investidas em documentários. Como foi o processo do “Fumando espero” (2008) e, agora, de “Quanto tempo o tempo tem”?

AD: Sempre trabalhando com todos esses profissionais do cinema e envolvida com a formação em artes cênicas, decidi há 10 anos que queria resolver meus problemas através do audiovisual. Utilizá-lo como plataforma para pensar a vida. Comecei pelo cigarro, minha única dependência, mas contra a qual eu luto diariamente, até hoje. Foi uma experiência fantástica, que gerou o “Fumando espero”. Mas isso foi há anos. Já em 2010, eu pensei em “Quanto tempo o tempo tem”, algo que foi super bacana e impressionante pela repercussão que o projeto teve. Como está na sinopse do meu filme, “vivemos um tempo diferente. Corremos sempre, corremos sem motivo, corremos por nada. Como se o tempo tivesse ficado mais rápido. Tudo sugere velocidade, urgência. Mas afinal de contas, por que o tempo parece tão curto? “Quanto tempo o tempo tem” parte desse conflito sobre a questão do tempo e da falta dele no mundo contemporâneo e faz uma profunda reflexão sobre o tempo, a civilização e o futuro da existência”.

HT: E como foi arrecadar verba para esses dois trabalhos?

AD: Para o “Fumando”, tivemos uma empresa privada que nos patrocinou. O filme fez toda uma carreira de non-theatrical, sendo exibido em universidades, museus etc. Ficamos sete semanas em cartaz, o longa foi transformado em minissérie e vendido para Canal Brasil, GNT, A&E, Discovery… Seguindo esse caminho, de pensar a vida pelos documentários, saquei a angústia sobre o tempo. Meus filmes nascem dessa inquietação com a vida conectada e multifacetada, da qual você não se desliga nunca. Na verdade, estamos todos doentes. Não conseguimos nos aprofundar em um assunto, porque sempre tem algo novo chegando e o mundo acaba ficando raso. Meu filme veio dessa sensação. O mais engraçado é o que o longa-metragem nasceu assim: em 2010, eu tinha uma reunião com o Secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, em Brasília, Sílvio Da-Rin, às 9h. Acordei às 6h, porque eu estava no Rio e super ansiosa. O táxi chegou atrasado, mas acabei conseguindo pegar o voo. Desembarco em Brasília e, quando finalmente entro na sala do Da-Rin, ele está com o computador ligado, o celular no colo e o telefone na mesa ao mesmo tempo. “Adriana, estou desesperado! Não tenho tempo! Vamos falar rápido”, ele disse. Eu só respondi: “Não, vamos falar disso que está acontecendo agora, dessa loucura”. Foi aí que eu pensei em rodar um filme sobre o tema. A partir disso, comecei uma pesquisa feroz para tentar entender o que é o tempo e descobri muito do que as pessoas ainda não haviam percebido.

HT: Como, por exemplo…?

AD: A questão da previdência. Hoje, vivemos a longevidade. Ganhamos 30 anos de vida. Esse tempo é algo que simplesmente quebra o sistema, porque a previdência foi criada esperando que morrêssemos aos 50. E nós chegamos aos 100 anos! Então, já não é novidade nenhuma que teremos que mudar o nosso estilo de vida. A nossa sociedade precisará ser reestruturada pela longevidade. Há também a questão da nossa relação social, que hoje nós já perdemos. Não damos mais valor para quem está presente. O ausente passa a ser mais importante do que quem aqui à nossa frente. Somos seres solitários, porque estamos em uma mesa de bar e ninguém conversa entre si. As pessoas estão perdendo as propriedades das relações… Nós, cinquentões, somos da última geração analógica. Não vivemos nada disso… Nós ainda presenciamos a chegada do celular, do jornal online… Todos nós temos que nos reinventar a cada dia.

HT: E você encara essa adaptação como dolorosa?

AD: Claro! É sofridíssima. Porque nós sabemos como era antes, e sabemos que podemos perder muito com isso. Hoje, as crianças já nascem baixando aplicativos, o que para elas é normal, algo que não é para nós. Precisamos nos adaptar a essa nova linguagem de vida, e isso não vai mudar.

HT: Você acha que essa geração atual sabe o que é uma verdadeira relação entre seres humanos?

AD: Acho que a nova geração não sabe nem escrever. São jovens que não se aprofundam em absolutamente nada, porque tudo é muito raso. Com um parágrafo, hoje, você acha que domina qualquer assunto. Já pensou que, se houver um crash na internet, o mundo para?! Já pensou que não exercitamos mais a nossa memória? Na Grécia Antiga, uma das maiores cadeiras era a da memória, onde as pessoas praticavam e passavam seu conhecimento adiante. Hoje, até as fotos que nós tiramos ninguém vê, porque se você quebra o seu HD ou perde o seu celular, nunca mais as recupera. É um mundo muito diferente esse que se apresenta. E, ao mesmo tempo, muito perigoso. Acho que a maior das catástrofes mundiais não será um tsunami, um tornado ou um furacão: será o crash da internet. Se, por um acaso, perdermos a conexão, o mundo irá parar.

HT: Acredita que, em 2015, dá para se viver de cinema no Brasil?

AD: Eu vivo de cinema. Mas, como cineasta, meu trabalho é muito específico e autoral. “O Tempo” e “Fumando” fazem parte de uma trilogia, que se encerra com “A sociedade do medo”, meu próximo filme. Ele trata da questão de vivermos em uma sociedade que nos incute o medo a toda hora, para que possamos consumir os produtos dessa própria sociedade: seguro, saúde, crédito, beleza, juventude, supérfluos… Nós estamos morrendo de medo! E quando consumimos esses produtos, nos sentimos mais seguros. A proposta é fechar a trilogia vício, tempo e medo. Eu consegui pagar os dois filmes que fiz, mas não ganhei dinheiro. Meu salário, já que sou uma empresária assalariada por ter o meu próprio negócio, vem dos festivais de cinema, quando conseguimos realizá-los. É uma luta constante.


Trailer de “Fumando espero”

Agora temos uma indústria muito fortalecida, com uma cadeia produtiva pensante. Eu sou da época de fundação da Ancine. No primeiro festival que produzi, ela nem existia! Eu estava lá no primeiro fórum do Congresso Brasileiro, com as pessoas que fundaram o órgão. O Circuito Inffinito é parte dessa retomada do cinema nacional. Tenho certeza que, daqui a 30 anos, quando falarem da retomada da indústria audiovisual brasileira e de sua internacionalização, a Inffinito fará parte dessa história.

HT: A Inffinito sempre abre leque para outras produções. Vocês tiveram, há pouco tempo, um projeto na Cidade das Artes. Fale um pouco sobre esses trabalhos paralelos da produtora.

AD: Nós temos três núcleos específicos. O primeiro é de festivais de cinema no exterior, com o Circuito Inffinito. O segundo é com a produção audiovisual, onde temos um novo reality show, “Opção laje”, dirigido por mim, roteirizado em parceria com Flávia Guimarães e que será exibido no Canal Brasil, mostrando jovens da Zona Sul que não conseguiram mais pagar seus alugueis com o boom imobiliário e mudaram-se para o Vidigal. Teremos também um documentário de 70 minutos para a TV, que se chama “Eu quero botar meu bloco na rua”, sobre a construção dos blocos de rua do Rio de Janeiro, mas contando a história desse impacto sob o ponto de vista de três ícones: o Cordão do bola pretaa Banda de Ipanema e a nova geração representada pelo Último gole, que é fundado pela Maria de Moraes, filha do Vinícius de Moraes (pretendemos filmá-lo no próximo carnaval).

E, por fim, temos os eventos culturais, como o Verão do Morro, no qual levamos cinema para o Morro da Urca por três anos consecutivos. Um trabalho muito forte com o cinema social, utilizando o audiovisual como agente transformador de perspectiva dos jovens. Um exemplo é o “Bê a bá do cinema brasileiro”, que viaja o país inteiro e faz oficinas de capacitação para os estudantes da rede pública, para que eles tenham a possibilidade de pensar na cadeira audiovisual ao longo de sua jornada. Temos ainda o Festival de Canudos, com a mesma pegada. O Cine Itinerante, que viaja o Brasil todo exibindo filmes. E o 15 Vezes Áustria, que trouxe a música e o cinema da Europa para a Cidade das Artes, de forma totalmente gratuita, com o público mais democrático possível. É impressionante ver como nossa noção de público e cultura às vezes pode estar errada.

FESTIVAL DO RIO

Quanto tempo o tempo tem – Mostra Expectativa 2015

04/10: Cinépolis Lagoon, 19h15 (somente convidados)

End.: Av. Borges de Medeiros, 1424 – Leblon

06/10: Cine Joia, 16h

End.: Av. Nossa Sra. de Copacabana, 680 – Copacabana

10/10: Centro Cultural Justiça Federal 2, 17h

End.: Av. Rio Branco, 241 – Centro

11/10: Ponto Cine, 16h

End.: Estrada de Camboatá 2300 – Guadalupe Shopping – Guadalupe

Ficha Técnica de “Quanto tempo o tempo tem”
Direção: Adriana L. Dutra
Roteiro: Adriana L. Dutra & Flávia Guimarães
Codireção: Walter Carvalho
Direção de Fotografia: Walter Carvalho & Bacco Andrade
Produção Executiva: Cláudia Dutra & Viviane Spinelli
Direção de Produção: Flávia Guimarães
Produção Geral: Alessandra Alli
Edição de Som: Lulu Farah
Som Direto: Marcel Costa
Animação: Marcello Rosauro
Trilha Sonora: Lucas Ariel e Pedro Silveira
Edição: Renato Martins
Entrevistados em ordem de aparição no filme: André Comte-Sponville, Marcelo Gleiser, Thierry Paquot, Arnaldo Jabor, Francis Wolff, Luiz Alberto Oliveira, Raymond Kurzweil, Erick Felinto, Stevens Rehen, Domenico De Masi, Arthur Dapiéve, Alexandre Kalache, Monja Coen Sensei, Tom Chatfield, Analice Gigliotti, Nélida Piñon, Max More, Natasha Vita-More, Nilton Bonder.
Produção: Inffinito
Distribuição: EH Filmes & Synapse