*Por Simone Gondim
Em tempos de pandemia e suspensos todos os espetáculos por conta do isolamento social, Angela Leal transborda força, empatia e amor. Aos 72 anos, a carioca já passou por momentos difíceis, como o tratamento de um câncer no fígado, há cerca de três anos, e um infarto no fim de 2019. Aposentada da carreira de atriz, ela segue no comando do Teatro Rival Refit, no Rio de Janeiro, e em um de seus papéis preferidos – o de avó de Julia, filha da também atriz Leandra Leal. Ao falar das duas, Angela mostra toda a sua corujice. “Leandra é uma pessoa forte, de atitude, o melhor presente que recebi na vida. E agora tem a Julia, que ainda é um presentinho, mas já percebo que também tem bastante atitude e vai se posicionar muito bem”, derrete-se.
A comemoração pelo Dia das Mães foi um pouco diferente. Em vez de conversar ao redor da mesa, durante o almoço de família, Angela e Leandra comandaram uma live no Instagram do Rival (@teatro.rival.refit). A sinceridade e o carinho que norteiam a relação das duas deram o tom do bate-papo. “Um dia lindo e tantas mães longe dos filhos, mas tem que ser assim. Na live, falamos das nossas vidas, brincamos e relembramos momentos alegres. Nos posicionamos em termos de sociedade, dissemos o que nós pensamos, o que não aceito e o que ela aceita. Foi um papo diverso e aberto entre mãe e filha, como nós sempre tivemos”, pontua Angela.
Ligada à arte desde sempre, Angela, filha do produtor cultural Américo Leal, de quem herdou o Teatro Rival, demorou um pouco a assumir a carreira nos palcos, no cinema e na TV. A pedido do pai, ela se tornou advogada e chegou a trabalhar na área penal. “Naquela época, a profissão não era regulamentada e as atrizes tinham na carteira o mesmo certificado das prostitutas. No entanto, eu sempre quis atuar. Mas, para fazer a vontade dele, escolhi direito. E direito penal, por causa do júri. Ali, para mim, era teatro, o teatro do direito”, recorda. “Mas chegou a um ponto em que eu comecei a ver tantas injustiças, tantos favorecimentos, tantos erros, que virei para o meu pai, com o diploma, e disse: ‘ou engaveto meu diploma ou engaveto minha sensibilidade. Vou ficar com a minha sensibilidade’. E virei as costas para o direito. Encontrei o Sérgio Britto, meu grande mestre, e fiz todos os cursos dele, onde conheci Regina Casé, Luiz Armando Queiroz, Eduardo Tornaghi e vários outros”, acrescenta.
No caso de Leandra, quem deu o empurrãozinho foi o pai, o advogado Julio Braz e Silva, morto no começo dos anos 1990. “Minha filha era muito tímida quando não conhecia as pessoas. Ao mesmo tempo, eu notava que ela era muito alegre com os amigos. Aí, o Julio resolveu levá-la à Laura Alvim para ter aulas de teatro. Nem me comunicou”, conta Angela. “Quando vi, Leandra estava fazendo aula de teatro e teria uma apresentação no fim do ano – na época, ela tinha uns 8/9 anos. Não lembro o nome da peça, mas ela fazia Aracne, da mitologia grega. Quando a vi de cabeça baixa, ajoelhada no centro do palco na hora da apresentação, e ela levantou os olhos e encarou a plateia, eu disse: ‘meu Deus, é uma atriz. E que atriz’. Então, nossos caminhos não foram marcados nem pensados, mas já estavam destinados”, afirma.
Juntas, mãe e filha cuidam do Rival, patrimônio da família. Depois de ficar sem o patrocínio da Petrobras, a casa passou a receber o apoio da Refit, antiga Refinaria de Petróleo de Manguinhos. “Considerei quase um milagre. Comecei a receber telefonemas depois que a coluna do Ancelmo Gois publicou a saída do antigo patrocinador. Achei aquilo tão bom, tão lindo, porque era resposta a um trabalho, ver que as pessoas estavam não só torcendo, mas querendo ajudar. Um belo dia ligou a Refit, que salvou o Rival”, diz Angela. “O Rival é um marco de resistência, que é exatamente o que temos que fazer quando as coisas não nos favorecem: resistir. O teatro também tem a diversidade na sua história e isso é muito bonito. Sem falar na carioquice. Então, acho que ele reúne coisas que dificilmente se encontra em algum setor cultural. É uma dádiva da cultura e tenho muito orgulho em administrá-lo”, garante.
Por causa dos riscos relacionados à Covid-19, toda a programação do Rival foi adiada. As lives vieram como forma de movimentar o calendário nesse período de isolamento social. “Foi muito triste, porque havia de cantores e artistas mais conhecidos aos que estavam começando. Afinal, sempre foi a cara do Rival lançar, difundir e resgatar. Entre os famosos, era uma programação de peso: Elba Ramalho, Zélia Duncan, Leny Andrade, Fafá de Belém, MPB-4. Adiamos os contratos e ninguém desistiu”, explica Angela.
E será que trabalhar em família dá certo? Segundo Angela, como tudo na vida, há vantagens e desvantagens. “De vez em quando, uma quer impor uma coisa à outra, mas, ao mesmo tempo, existe o lado bom de uma ajudar a outra. Acho que é complexo, mas muito agradável. Até pode brigar, mas o amor é mais importante do que tudo. Leandra sabe que, atualmente, tenho minhas limitações por causa da idade, mas ela me trata de igual para igual e com respeito”, assegura a atriz.
Mesmo aposentada dos palcos, Angela reconhece a existência do preconceito contra atores e atrizes mais velhos. “A sociedade não enxerga os mais velhos como pessoas sábias, que cresceram na vida. A maioria das pessoas trata os idosos com paciência e caridade. Acho muito estranho. Existe um distanciamento, da mesma forma que fazem com as crianças. Isso se reflete nas obras teatrais e nas novelas”, critica. Em relação ao momento que a cultura no Brasil atravessa, a dona do Rival é otimista. “Eterna é a cultura. Sem ela, o povo não existe, não tem ritmo, não tem cara, não tem nada, é um povo perdido. Acho que, por mais terrível que seja o momento, e é terrível, a cultura vai superar, como sempre superou. Ninguém conseguiu acabar com a cultura. Tivemos momentos terríveis, como agora. Mas eles passarão, e nós, passarinho”, acredita.
Fora do trabalho, Angela é uma avó que não esconde o encantamento pela neta, que tem total liberdade quando está em sua companhia. “Babo mesmo! Na minha casa ela faz o que quer, come coisas que não come na casa dela. Na casa da avó pode tudo, só não pode desrespeitar. Tem que ter um limite. E Julia é adorável, a gente se diverte muito, tem uma cumplicidade muito grande”, confessa.
Para as mães que criam sozinhas filhos ou filhas, Angela tem um conselho: formar seres humanos fortes, com atitude e respeito. “Quis fazer isso com a Leandra. Quando ela chorava, porque era o caso da perda do pai, eu também chorava, não bancava a forte na frente dela. E dizia: é um momento difícil, é um momento triste, mas nós vamos vencer isso juntas. Outros momentos passaram, outras perdas vieram e a gente sempre se abraçou e pensou: vamos resistir”, revela.
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