*Por Elisa Torres
“Muito comum nas histórias que compõem o imaginário social do homem branco, a frase ‘Tenho uma tataravó que foi pega no laço’ significa, nada mais, nada menos, que a naturalização de uma cena de sequestro, estupro e subjugação da mulher a um casamento arranjado, no qual foi obrigada a procriar”, diz Vera de Paula, ao fazer menção a um dos ricos depoimentos do terceiro episódio de “O que querem as mulheres”, série com temática feminista que tem a sua assinatura na produção executiva, direção de Liloye Boubli e curadoria da acadêmica e escritora Heloísa Buarque de Hollanda. Com quatro episódios que ficarão disponíveis durante um mês para não assinantes no Canal Brasil Play, a série estreia 26 de agosto, Dia Internacional da Igualdade da Mulher.
A fala sobre a mulher pega no laço, que serve para ilustrar o discurso etnocêntrico do homem branco, é de Marize Vieira, da etnia Guarani, doutoranda em Educação e liderança pioneira da Aldeia Maracanã que integrou a equipe de depoimentos do terceiro episódio, “Feminismo Indígena”. O capítulo conta ainda com entrevistas emocionantes de outras duas representantes da causa, de etnias distintas: a geógrafa e poeta Márcia Wayna Kambeba, da etnia Kambeba, do Pará, candidata a vereadora; e a antropóloga Taily Terena, da etnia terena, do Mato Grosso do Sul, e filha do famoso líder indígena Marcos Terena. Nas falas, a experiência nos cursos de mestrado e doutorado; os problemas com o garimpo e os madeireiros; os adornos e pinturas corporais nos rituais de identidade e empoderamento; a violência ambiental, o território invadido e a falta de água limpa.
“O não indígena pouco sabe sobre esses povos. O que se conhece diz respeito ao “descobrimento”, pela ótica do colonizador. Todas as entrevistadas são guerreiras, militantes da causa indígena, que vêm para o Rio estudar ou trabalhar, mas sempre fazem o caminho de volta para as suas aldeias, levando os novos conhecimentos. O feminismo delas é completamente diverso do feminismo não indígena. O que existe é uma parceria entre homens e mulheres na luta pela terra, pela educação, pelo território. Na primeira marcha de mulheres indígenas, em Brasília, o título era ‘Território, nosso corpo, nosso espírito’. A luta delas é para sair da invisibilidade. E o que querem realmente as mulheres indígenas? Ver os seus filhos viverem e não simplesmente sobreviverem. E o bem-viver é o respeito ao espaço de cada um”, afirma Vera.
As gravações da série foram realizadas em dezembro, antes, portanto, da pandemia. Segundo Vera de Paula, os depoimentos sempre voltam ao tema central da luta indígena, que é a necessidade da demarcação das terras. O assunto já havia sido abordado no documentário “Terra dos Índios” (1979), de cineasta Zelito Viana, marido de Vera, com narração de Fernanda Montenegro, que reunia depoimentos sobre os interesses da Funai, das multinacionais e dos latifundiários por trás da desastrosa política de emancipação indígena.
“Os problemas ainda são os mesmos de 40, 50 anos atrás. “Terra dos Índios” deveria falar sobre as diferentes culturas e etnias, mas acabou revelando o grande problema de sempre, uma preocupação constante, de Norte a Sul, que é a demarcação da terra”, relata.
Os movimentos dos anos 60, o feminismo negro, a identidade de gênero, o empoderamento, a sexualidade e o feminicídio são temas abordados nos outros capítulos da série, produzida pela Mapa Filmes do Brasil. Segundo Vera de Paula, a ideia de produzir “O que querem as mulheres” surgiu após a leitura de “Explosão feminista”, de Heloísa Buarque de Hollanda. Nele, a autora fala sobre a avassaladora onda feminista no Brasil, conhecida como “a quarta onda”, que começou em 2013 e vai até os dias de hoje. Fruto de extensa pesquisa, o livro estabelece pontos de convergência e divergência entre os muitos feminismos que compõem o cenário brasileiro atual.
“Eu me encantei por ‘Explosão Feminista’. Quem são as mulheres dessa onda explosiva que estão à frente dos movimentos de hoje e o que elas reivindicam? Como a militância vem impactando a política, o comportamento, a criação artística? Conversei com Heloisa e ela topou na hora fazer as entrevistas. Foram várias reuniões para decidirmos quem seriam as personagens entrevistadas e eu tive uma participação maior na escolha das indígenas pela ligação que a minha família tem com a causa”, explica Vera de Paula, adiantando que o próximo projeto é uma série sobre homens.
Heloísa Buarque de Hollanda disse que ficou feliz em saber que a leitura do livro, com multiplicidade de feminismos, tenha inspirado a Vera a produzir “O que querem as mulheres”. “O feminismo como vimos hoje é, de fato, uma verdadeira explosão. Negro, trans, asiático… E foi maravilhoso conversar com todas aquelas mulheres dentro da minha própria casa, na minha sala. Uma experiência literalmente feminina e íntima. A vivência dessa invasão tão enriquecedora, da mulher que estuda isso e conversa com as personagens, sem aquele tom formal, acadêmico, que às vezes fica muito chato. Mas não sei dizer qual das histórias ou episódios é o que mais me interessa. Sou apaixonada por todos, cada um com a sua vibração”, diz a ensaísta.
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