75 Anos de “O Mágico de Oz”: os dolorosos bastidores do filme mais visto e querido da história!


O único produto da famosa safra de ouro de Hollywood, de 1939, homenageado pela festa do Oscar da Academia, em março, foi – na verdade – uma maratona inacreditável de provações, dor e dedicação dos seus artistas e artesãos

* Por Flávio Di Cola

Após quase quatro anos de trabalho caótico, insano e frustrante em vários aspectos, nem o próprio Walt Disney poderia imaginar que “Branca de Neve e os Sete Anões” (Snow White and the Seven Dwarfs) obteria um sucesso tão espetacular desde o seu lançamento às vésperas do Natal de 1937 a ponto de humilhar no box office todos os pretensos blockbusters do ano – “Jezebel” (Jezebel) com a atriz adulta mais popular da época, Bette Davis; “As Aventuras de Robin Hood” (The Adventures of Robin Hood) com o ídolo mais amado das matinês de todos os tempos, Errol Flynn, e “Do Mundo Nada se Leva” (You Can’t Take it With You), obra-prima do mais influente diretor daquela década, Frank Capra. Se não bastassem esses feitos, “Branca de Neve” ainda provocou uma corrida desesperada entre todos os estúdios de Hollywood por obras literárias que pudessem inspirar filmes tão feéricos como esse primeiro longa-metragem de animação da história e cujo custo inicial pulou de 150 mil dólares para 1,4 milhão quando finalizado.

A Metro-Goldwin-Mayer (MGM), considerada a Vênus Platinada entre os grandes estúdios americanos, imediatamente comprou os direitos da novela para crianças “O Mágico de Oz” (The Wizard of Oz) de L. Frank Baum por 75 mil dólares – à época, um valor astronômico – a fim de sinalizar para os seus concorrentes – os Estúdios Disney incluídos – que a recriação de mundos fabulosos e de dimensões fantásticas era mais uma especialidade insuperável da marca do leão. O centro das operações artísticas e industriais da MGM ficava em Culver City, um dos subúrbios de Los Angeles que devem, até hoje, seu desenvolvimento e notoriedade ao advento da indústria do cinema nos anos 1910. Desde o início dos anos 1930, a MGM detinha os melhores e mais bem equipados complexos de produção cinematográfica do planeta, e seu exército de operários, artesãos, técnicos, artistas e executivos era o mais bem treinado e bem pago do ramo do cinema. O próprio Louis B. Mayer, chefe do estúdio, recebeu durante décadas o maior salário dos Estados Unidos. E, assim, convicta de ser o Olimpo da Sétima Arte onde “brilhavam mais estrelas do que o céu” – mote que se tornou seu slogan lendário – a MGM iniciou a complicadíssima e problemática produção de “O Mágico de Oz” já no final de 1938, dando origem a uma série de acidentes que iriam colocar o filme como uma das mais desagradáveis e cansativas experiências para aqueles que participaram do seu processo criativo.

Para começar, o primeiro diretor escalado para a empreitada – Richard Thorpe – foi despedido duas semanas depois de iniciada a produção e morreu em 1991 sem saber exatamente o porquê do seu afastamento. Naquela época, sob o império do studio system rigidamente hierarquizado, eventuais substituições ou dispensas nas equipes não eram muito discutidas ou dramatizadas, já que o grande maestro do projeto era mesmo o produtor delegado, um profissional dono de um talento tão especial como valioso: saber conciliar a natureza artística do cinema com os seus ditames industriais. O diretor que realmente tocou as filmagens – Victor Fleming, famoso “pau para toda obra” da MGM – também quase foi mandado embora por estar gastando muito mais do que o planejado para uma produção por si mesma cara, fotografada no mais deslumbrante Technicolor, o que multiplicava por cinco qualquer orçamento.

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O grupo que mais se submeteu a toda sorte de pressões e agressões foi – sem dúvida – a dos atores e atrizes que viveram os personagens principais. Alguns quase perderam a vida ou sofreram acidentes sérios. O ator primeiramente contratado para viver o Espantalho e – depois – o Homem de Lata, Buddy Ebsen foi internado nove dias após o início da sua participação e colocado numa câmara de oxigênio onde precisou ficar por semanas e para nunca mais retornar às filmagens. Buddy fora vítima de intoxicação e de reação alérgica ao pó de alumínio, substância que era espalhada sem maiores precauções sobre o seu rosto e necessária à caracterização do amiguinho de metal de Dorothy. Seu substituto – Jack Haley teve mais sorte: depois da quase morte de Ebsen, os maquiadores resolveram trocar o pó pela pasta de alumínio para obter o mesmo efeito, e Haley só precisou se hospitalizar por quatro dias quando seus olhos irritados indicaram que ele poderia perder a visão.

O departamento de maquiagem não poupou desses sofrimentos nem a Bruxa do Oeste – magistralmente recriada pela “feia assumida” Margaret Hamilton. Sua tenebrosa maquiagem esverdeada tinha como base química o cobre que, misturado a outros cosméticos, transformava seu rosto e braços num prato cheio para queimaduras e incêndios, já que a atriz teve que ser exposta ao fogo em diversas cenas em que se exigiram infindáveis repetições. Sua capa, chapéu e vassoura pegaram fogo em várias ocasiões, algumas delas sem que a própria Margaret se apercebesse do fogaréu sobre o qual praticamente se atirava. A famosa cena em que a Bruxa morre derretida diante de Dorothy foi particularmente árdua e perigosa: os cenógrafos e contra-regras planejaram para Margaret um alçapão através do qual ela era baixada, enquanto o amplo figurino da Bruxa se esvaziava do seu corpo, produzindo a ilusão de derretimento. O problema foi que, enquanto ela descia pela armadilha, um jato de fumaça era lançado para cima a fim de disfarçar o truque, mas que também serviu para quase matá-la por asfixia dentro do cubículo em que ficava presa no final da tomada.

O calor nos vários estúdios de Culver City mobilizados para abrigar os cenários gigantescos de “O mágico de Oz” era simplesmente intolerável e não foi atenuado pelo fato de as filmagens terem transcorrido durante o inverno do sul da Califórnia. Os desmaios e as interrupções forçadas nos trabalhos eram frequentes devido às temperaturas que se elevavam prodigiosamente em poucas horas. Mesmo assim, os figurinos não poderiam ser tirados ou relaxados nessas pausas em hipótese alguma. Atores e figurantes deveriam esperar a retomada dos trabalhos imobilizados sobre tábuas reclináveis que preservavam o caimento perfeito das roupas, como os 40 quilos de pele verdadeira do Leão Covarde, vivido por Bert Lahr. Todo esse sacrifício, pelo menos, valeu a pena: a inigualável qualidade visual da película foi obtida graças à colaboração dos departamentos de arte do estúdio com os consultores da Technicolor cujo novo sistema de cor exigia quatro vezes mais luz do que os filmes em preto e branco. Todos os gigantescos refletores de arco voltaico usados pela MGM na época do cinema mudo foram restaurados para dar conta das exigências de iluminação, literalmente torrando os atores e figurantes ao longo das pesadíssimas jornadas de trabalho que começavam às 7h e acabavam às 18h, de segunda-feira a sábado, com pausa de 1 hora para almoço e duas paradas breves para um chá.

Aliás, Culver City, assim como os demais grandes estúdios em Hollywood, eram praticamente pequenas cidades com milhares de habitantes que nunca dormiam. Após um dia de filmagem, todos os departamentos continuavam trabalhando normalmente, madrugada adentro, na preparação dos itens e dos serviços que se fariam necessários às 5h da manhã, quando as equipes técnicas se dirigiriam para os sets e os atores para as cadeiras do departamento de maquiagem. Tudo conduzido num ritmo capaz de manter uma máquina produtiva suficientemente azeitada para entregar – a cada ano – 500 longas-metragens necessários para alimentar as 18.000 salas de cinema do país, requentadas semanalmente por 85 milhões de norte-americanos (números de 1939). De pequeno mesmo, na produção de “O Mágico de Oz” só tinha o elenco de 125 anões – a maioria sofrendo de problemas de alcoolismo – contratados para serem os Munchkins, habitantes da Munchkiland, de onde partia o caminho dos tijolos amarelos e primeira parada de Judy Garland rumo à Cidade Esmeralda, onde ela desafiaria o Mágico de Oz. Mas isso é história para um outro dia.

O vento levou os horrores da backstage e só sobrou o mito: Pink na homenagem ao clássico no Oscar deste ano (Foto: reprodução)

O vento levou os horrores da backstage e só sobrou o mito: Pink na homenagem ao clássico  da MGM no Oscar deste ano (Foto: reprodução)

* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os constrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema