*Por Flávio Di Cola
Quando os editores da revista mais respeitada do mundo – a Time – decidiram que a capa da edição de 18 de março de 1974 ostentaria os rostos de Robert Redford e Mia Farrow de perfil e banhados por uma suave radiância solar, já pairava no ar a certeza de que “O Grande Gatsby” (The Great Gatsby) desempenharia um papel fundamental nos esforços da indústria do entretenimento em proporcionar para as plateias do mundo inteiro uma fuga rumo a um passado idealizado através de um produto muito bem empacotado.
Com o planeta penando por causa do segundo choque da crise do petróleo, com a auto-estima dos norte-americanos no chão depois do escândalo Watergate e da retirada vexatória do Vietnam, com ditaduras militares e civis pipocando na América Latina, África e Ásia, e com as revelações de Alexander Soljenitsyn sobre as atrocidades do Gulag soviético, as massas não hesitaram em invadir os cinemas para sonhar com o glamour impecável dos anos 1920 a 1950 segundo a ótica de filmes como “Cabaret” (Idem, 1972), “O Poderoso Chefão” (The Godfather, 1972), “Loucuras de verão” (American Graffiti, 1973), “O golpe de mestre” (Sting, 1973), “Nosso amor de ontem” (The Way We Were, 1973) ), “Chinatown” (Idem, 1974), ou para se deliciar sadicamente com o aniquilamento fantasioso do mundo em produções-catástrofe que hoje são verdadeiros monumentos ao kitsch-trash cinematográfico como a franquia “Aeroporto” (1970-1979), “O Destino do Poseidon” (The Poseidon Adventure, 1972), “Inferno na Torre” (The Towering Inferno, 1974) e “Terremoto” (Earthquake, 1974).
De fato, os early seventies foram uma época muita esquisita para todos que a viveram, mas muito boa para Hollywood que despertou de uma década de crises e reinventou-se como “fábrica de ilusões”, ostentando taxas de crescimento em vendas de ingresso elevadíssimas, como os 17% de 1974. “O Grande Gatsby” iria não só coroar esse período de prosperidade como também elevar o controvertido Robert Evans – seu produtor – à categoria de novo “magnata” da indústria do cinema, tirando a Paramount do coma financeiro e a tornando o estúdio mais próspero do período depois de uma série impressionante de sucessos arrasadores como “O Bebê de Rosemary” (Rosemary’s Baby, 1968) e “Love Story” (Idem, 1970), este último estrelado pela sua mulher e ex-modelo Ali MacGraw. Aliás, foi pensando nela no papel de Daisy Buchanan que Evans adquiriu os direitos para a readaptação da obra-prima de Fitzgerald. Mas, um pouco antes do início das filmagens, em 1973, estourou o escândalo que literalmente expulsou Ali MacGraw do set. Ela e Steven McQueen estavam vivendo um romance tórrido sob as barbas de Evans, que começou durante as filmagens de “Os implacáveis” (The Getaway, 1972), alimentando um dos casos mais rumorosos de adultério público do mundo do cinema, só ultrapassado pelos affairs Elizabeth Taylor-Richard Burton e Angelina Jolie-Brad Pitt.
E foi nesse clima de dor de cotovelo que Robert Evans escalou de última hora María de Lourdes Villiers Farrow – sim, ela mesma, Mia Farrow – grávida do maestro e compositor André Previn para substituir Ali no papel que poderia tê-la tornado uma superstar. Cerca de 7 milhões de dólares foram despejados numa luxuosa e bem cuidada produção alternada entre externas em Nova York e Newport, e os gigantescos estúdios londrinos de Pinewood.
Devido a uma troca repentina de produtores, o diretor Jack Clayton foi obrigado a contratar a consagrada figurinista da Broadway Theoni V. Aldredge (1922-2011) de origem grega apenas 15 dias antes da primeira tomada. Recorrendo à sua incomparável experiência teatral, Theoni quebrou todos os recordes possíveis e imagináveis de rapidez na confecção de figurinos, entregando centenas deles minutos antes de os atores chegarem para o primeiro dia de filmagem. A cena da festa colossal que Gatsby promove na sua mansão – à qual misteriosamente ele não comparece – foi deixada para ser rodada por último, exatamente com o propósito de conceder a Theoni um pouco mais de tempo para desenhar e confeccionar os incontáveis figurinos previstos para a sequência mais importante do filme.
Outra proeza de Theoni, em seu terceiro trabalho para o cinema, foi ter conseguido disfarçar a silhueta maternalmente protuberante do corpo de Mia. Para tanto, aproveitou-se dos formatos tubulares que marcaram a moda da Era do Jazz e dos caimentos leves e ondulados proporcionados pelo tecido-símbolo do período, o crêpe de Chine. Mas a confusão toda no Departamento de Figurinos começou quando ela se viu tão pressionada pelos prazos absurdos que resolveu terceirizar a confecção das camisas, dos coletes e dos costumes dos principais intérpretes masculinos – Robert Redford, incluso – para um jovem tão talentoso quanto ambicioso chamado Ralph Lauren, no início de carreira, mas já se afirmando com suas célebres camisas polo. O espetacular impacto desses figurinos retrôs sobre o imaginário do público e sobre a própria indústria da moda antes e depois do lançamento do filme catapultou Lauren instantaneamente para o primeiro pelotão da “grande moda”, apoiado pela imprensa especializada que omitiu solenemente o fato de que Ralph apenas materializara as diretrizes e os desenhos de Theoni V. Aldredge. Os ternos risca-de-giz, os sapatos bicolor branco e marrom, os casacos cor amarelo mostarda, as gravatas listradas, as boinas de feltro e os suéteres espessos jogados sobre os ombros passaram a ser conhecidos como um produto do casamento de Jay Gatsby com Ralph Lauren.
É claro que Theoni, indignada, exigiu que Lauren se retratasse. Mas o estilista, agora confortavelmente instalado na posição do mais novo “queridinho” do mundo fashion, ignorou os apelos da veterana figurinista e continuou a alimentar a percepção da mídia e do público como sendo ele o designer que estava mudando a forma de vestir de milhões de homens mundo afora. Theoni intimou, então, a Paramount a remover dos créditos o nome de Lauren até como figurinista secundário. Mais uma vez não foi obedecida, já que interessava ao estúdio associar à “febre Gatsby” que assolava o mercado à imagem de um jovem e emergente criador. O imbróglio não acabou aí: na entrega dos prêmios Oscar, quando Theoni V. Aldredge subiu ao palco para receber o galardão de Melhor Figurino pelo filme que quase a levara ao óbito por exaustão, ela olimpicamente excluiu o nome do estilista nos agradecimentos.
“O Grande Gatsby” de Jack Clayton arrastou multidões ao cinema por meses a fio, marcou o renascimento de Hollywood, consagrou Robert Redford como o maior astro da década, inspirou a onda da nostalgia escapista pelo globo e incorporou as massas no circuito das releituras de modas antigas. Todavia (e talvez por isso mesmo), foi impiedosamente massacrado pela crítica desde o primeiro dia do seu lançamento, não sendo poupado sob nenhum aspecto, com a honrosa exceção do seu formidável guarda-roupa, visivelmente superior ao da versão de 2013 – dirigida por Baz Luhrmann e protagonizada por Leonardo DiCaprio – que, curiosamente, também arrebatou o Oscar de Melhor Figurino deste ano com a designer Catherine Merlin. Neste caso, a colaboração criativa com grandes marcas do universo da moda – Prada e Miu Miu – foi muita mais harmoniosa, mas certamente muito menos excitante.
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os constrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema
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