Vivendo Bibi Ferreira no teatro, Luísa Vianna condena “discursos “burrificantes” que vilanizam artistas


Atenta ao panorama político brasileiro e voz ativa na temática LGBTQIAP+, a atriz acredita que o teatro é o espaço onde a sociedade pensa e reflete sobre si, mas artistas estão sendo alvo de críticas ferinas tanto do governo como de seus apoiadores

*Por Vítor Antunes

No ano em que Bibi Ferreira (1922-2019) completaria 100 anos, a montagem de “Bibi, uma vida em Musical”, voltou os palcos cariocas. Peça escrita por Luana Guimarães e por Artur Xexéo (1951-2021), o musical tem direção de Tadeu Aguiar. Na montagem comemorativa, a peça possui duas atrizes vivendo a protagonista: Amanda Acosta e Luísa Vianna, que, durante a semana se revezam frequentemente no papel. Luísa é experiente no segmento e atuou em diversos espetáculos. Produtora teatral e artista múltipla, esta é a primeira vez que vive uma protagonista no teatro. E o fato de ser uma das grandes damas do teatro e da música faz com que haja um sabor especial para a jovem atriz, que recentemente fez uma websérie em homenagem às cantoras do rádio: “É gostoso demais viver a Bibi. Eu tenho grande admiração e um amor profundo pelas cantoras brasileiras, pelas atrizes brasileiras. Eu gosto de estudar a história dos rádios, dos cassinos, sou muito fã. Então, para mim, colocar estes figurinos, brincar com este universo, é algo muito divertido, muito querido para mim. E agora fazer a minha própria Bibi está sendo algo inexplicável”.

Centenária, se viva estivesse, Bibi Ferreira, aos olhos de sua intérprete, é muito vanguardista: “Nos Anos 1960, a atriz tinha um programa de TV, além de ter esse ar meio missionário sobre fazer teatro, de fazer arte, essa independência. Ela botava a mão na massa. Ainda mais jovem, em plenos Anos 1940, com 20 anos, ela fundou a própria companhia teatral. Havia nela uma determinação tamanha pelo ofício que trabalhou até os 95 anos. Esse ato de colocar-se à frente é muito moderno. Bibi, com 80 anos de carreira tem uma magnitude de popularidade que é muito curiosa por que ela não fez novela. Apenas teatro e apresentou programas de TV. É um fenômeno brasileiro!”, explica.

Em razão de Bibi Ferreira ser eternizada por conta de seu trabalho teatral, sem ter feito novelas – Sua única participação em teledramaturgia foi na extinta TV Manchete (1983-1999) em “Marquesa de Santos”, de 1984 – Perguntamos à Luísa o que falta para o Brasil ser um país de teatro. Ela diz: “Quem souber responder a essa pergunta merece um prêmio, mas eu acho que, na verdade o Brasil é um país de teatro, e não só apenas, mas também de música e de arte. O brasileiro gosta de ouvir música, há quem problematize as leis de incentivo, e com isso, o teatro, mas tanto Bibi como Procópio Ferreira (1898-1979)são a antítese de tudo isso. A Bibi sempre foi popular e sempre levou teatro pelo país, fazendo turnê pelo Brasil inteiro. Procópio dizia haver chegado em lugares em que o presidente da república da ocasião disse não haver chegado. O Brasil é sim um país de teatro. A gente tem que parar com alguns discursos ‘burrificantes’ que passaram a ecoar recentemente e que não falam sobre nada. Muito se fala sobre o patriotismo, mas o que é ser patriota sob a ótica atual? É esse patriotismo que desmata, que ignora a causa indígena?  Que não fala que a música do Brasil é originalíssima, que não fala da nossa dramaturgia, dos nossos autores, que vê serie americana o dia inteiro? Se é assim, eu estou sendo patriota para quem?”, questiona.

A gente tem que parar com alguns discursos ‘burrificantes’ que passaram a ecoar recentemente e que não falam sobre nada. Muito se fala sobre o patriotismo, mas o que é ser patriota sob a ótica atual? É esse patriotismo que desmata, que ignora a causa indígena? – Luísa Vianna

Na primeira temporada da peça, em 2018, Vianna vivia Neyde Galassi, secretária de Bibi e uma de suas melhores amigas “A personagem, que existiu na vida real, foi um anjo da guarda na vida da atriz, uma secretária que tem uma devoção imensa por ela”. Quando a titular da protagonista é Amanda Acosta, a personagem volta às mãos de Luísa: “A Amanda trouxe à Bibi uma dicção muito especial que acabei emprestando à Neyde, já que elas conviveram muito juntas. A proposta da Amanda era de que a personagem tivesse uma fala que era muito próxima àquele que havia no rádio dos Anos 1950, que era comum em algumas atrizes daquela geração, como a Glória Menezes e a Eva Wilma (1933-2021). Como esse é um período da nossa história que me agrada muito eu observei ainda mais”.

Ambas homenageadas, Neyde e a própria Bibi, assistiram à montagem. A filha de Procópio Ferreira, já muito idosa estava alhures quando assistiu a homenagem a si. Conta-nos Luísa: “A atriz, da plateia, cantava, da plateia, as canções que constavam na encenação, num outro andamento. Fazia interferências e comentários.  Na outra temporada, onde eu só vivia Neyde, eu não cantava em cena, senão no trecho final, onde eu entrava cantando muito, um trecho do samba da Viradouro (A escola de samba homenageou Bibi em 2003). Enquanto eu fazia esta intervenção ouvi a cantora dizer, da plateia ‘Que vozeirão!’. Para mim foi algo equivalente a ganhar a vida, por ter recebido um elogio da Bibi. Foi maravilhoso ter estado com ela. Aprendi muito tanto com a própria Bibi, por havê-la estudado, como com a personagem criada pela Amanda Acosta, a quem sou apaixonada. Amanda é de uma generosidade absurda. Tanto que Neyde, cresceu e ganhou destaque. Temos uma amizade de irmãs”.

Aprendi muito tanto com a própria Bibi, por havê-la estudado, como com a personagem criada pela Amanda Acosta, a quem sou apaixonada. (…) Temos uma amizade de irmãs – Luísa Vianna

Luísa Vianna e Amanda Acosta: “Parceria de irmãs” (Foto: Reprodução/Instagram)

Rainha do Rádio

No auge da pandemia, Luísa Vianna conseguiu montar um projeto que conversa profundamente consigo: A websérie “Rádio Acordar o Tempo”, onde vivia Ernúbia, mulher que para fugir da solidão e isolamento provocados pela pandemia rememora o tempo em que era cantora do rádio. Nos cinco episódios disponíveis na internet a trilha sonora era cantada pela própria Luísa, que rememorava os anos dourados da radiofonia. Segundo a atriz, Ernúbia é muito próxima da Bibi. “Eu aprendi a falar assim para criar uma persona que, sob algum aspecto é o meu alter ego. Ela me é muito querida, tem muito de mim na Ernúbia”. Para não parecer datada, a personagem poderia ter várias leituras, desde parecer uma senhora de idade avançada a uma criança descobrindo a vida. Além da referência já citada, outras mulheres se somam à composição da personagem, como Marília Pêra (1943-2015), Eva Wilma, Dercy Gonçalves (1907-2008), Dalva de Oliveira 91917-1972), Dolores Duran (1930-1959) e Carmen Miranda (1909-1955). Todas atrizes de uma geração muito anterior à sua.

Sobre ter uma afeição às músicas antigas e cantores de outra época, ela diz que “Desde criança fui assim. Meu avô tinha um disco da Ângela Maria e colocava para tocar quando eu tinha apenas 5 anos e eu me desatava a chorar, apenas por achar aquela voz emocionante. Esse universo sempre me tocou, me atraiu. Ernúbia veio para coroar meu primeiro trabalho solo e meu desejo era fazê-la no teatro. Acabei fazendo-a na Internet. Meu sonho é poder vive-la no palco”, projeta.

Natural do interior do Rio, Vianna foi parte do coral infantil “Canarinhos de Petrópolis”, em sua cidade natal, sendo aluna de sua mãe, Claudia Vianna, sua maior referência: “Minha mãe é cantora lírica foi uma grande referência vocal, canta muitíssimo. Ela é professora de canto, teve uma carreira mais local e acabou ficando por lá quando casou e teve filho. Fez pequenos e grandes concertos, cantou em sinfonias. É, sem dúvida, uma referência vocal. Eu não tenho memória de ter visto a minha mãe com a voz ruim em toda a minha vida. Toda a minha família, pelo lado da minha mãe, canta”.

Na websérie “Rádio Acordar o Tempo”, Luísa é Ernúbia (Foto: Bléia Campos)

Os musicais, a cena política brasileira e um posicionamento afirmativo na causa LGBTQIAP+

As batalhas de uma carreira artística especialmente no Brasil contemporâneo são duras. É o que Vianna salienta “São dez anos de carreira. Sempre que eu penso em desistir, acontece algo (surpreendente) e eu não consigo. O teatro tem algo sagrado, não adianta. (…) A gente sempre considera o fato de que a arte no Brasil é muito cruel, a gente é muito desvalorizado. (…) O teatro parece que é uma arte que foi esquecida, mas ela é única até hoje. É um espaço de encontro social, de a gente se ver e querer pensar sobre a sociedade. Ao ficarmos todos apenas no celular alimentando o próprio ego e replicando o próprio pensamento é algo ruim. A presença física ainda tem muito valor e o teatro, o palco talvez seja um dos últimos redutos onde é possível haver a presença do outro”, filosofa.

A atriz prossegue analisando o momento político do Brasil e o encaixe deste recorte na cena artística: “No momento politico e histórico que estamos vivendo, algumas histórias de fora, como as franquias estrangeiras, não ecoam mais e não dizem tanto ao nosso coração. Eu como atriz e produtora tenho vontade de que sejam feitas coisas mais brasileiras. A política brasileira é muito turbulenta. A arte e o posicionamento dos artistas incomoda por que o teatro está, quase sempre, na contramão (do status quo). Ele é a arena pública. É o lugar de presença social, e, como muitos artistas dizem, é o lugar onde a sociedade se vê, onde pensa. Talvez por esta razão cause tanto reboliço. A Bibi mesma passou por momentos de censura, assim como a Marília Pêra. Espero que não cheguemos a esse ponto, por mais que as leis de incentivo à cultura peçam o texto antecipadamente para que haja uma espécie de censura prévia. Eu acho que fazer teatro é se posicionar sempre. Eu sempre procuro me posicionar nos meus trabalhos. Embora só o fato de fazer e não deixar o meu trabalho morrer só em estar fazendo arte e arte brasileira, já conte alguma coisa. Eu acho que as Leis de incentivo à cultura elas têm que ser vistas, cuidadas e pensadas como qualquer lei, mas achar que ela é uma vilã e que os atores estão “mamando nas tetas do Governo” é algo inexplicável. Se há 19 pessoas no palco, há o triplo disso trabalhando no backstage, vivendo e mantendo suas casas com o dinheiro da cultura do Brasil”.

Luísa Vianna (Foto: Júlia Assis)

Num governo conservador, onde o debate acerca das questões LGBTQIAP+ ainda é tímida e problematizada, onde exposições são tiradas de cartaz e beijos entre casais gays ainda são censurados nas novelas, a atriz se posiciona afirmativamente: “Eu entendo muito que artistas e atores de outra geração não tenham falado abertamente sobre sua sexualidade. E isso não quer dizer que eles não tenham feito a sua parte, pois eram temerosos de que fossem colocados na caixinha do “ator gay”, ou da “a gay afetada da novela”. Mas creio que o meu posicionamento como mulher bissexual – coisa que não escondo por que está nas minhas redes sociais eu acho importante dizer isso – é o de que isso não vem à frente da atriz que sou. Não vejo problema em falar disso, digo com naturalidade, tal como falo da minha carreira por que isso também me compõe”, afirma.

O meu posicionamento como mulher bissexual – coisa que não escondo por que está nas minhas redes sociais eu acho importante dizer isso – é o de que isso não vem à frente da atriz que sou. Não vejo problema em falar disso, digo com naturalidade, tal como falo da minha carreira por que isso também me compõe – Luísa Vianna

Em 1944, numa entrevista ao extinto semanário O Cruzeiro, Bibi Ferreira disse que, se pudesse fazer um pedido ao Papai Noel, pediria às crianças brasileiras daquela época “vitória e paz”. Luísa, munida do sentimento da personagem que interpreta, diz que pediria “Educação, escola, acesso à cultura, respeito e igualdade. (Que elas já soubessem sobre) o combate ao racismo e à homofobia, que são temas que afetam muito”. Tal como diz o samba enredo em homenagem à filha de Procópio Ferreira, Luísa Vianna deixa o som leva-la e guia-la em busca de um ideal, ao reviver Bibi em seu mais brilhante papel: Viver.