*Por Karina Kuperman
A busca pela identidade de gênero. Isso foi o que fez com que a atriz Marcella Maia se apaixonasse pelo texto do espetáculo “Brian ou Brenda?”. A maior sensibilidade diante do tema tem razão de ser: ela própria passou pelo processo de adequação do corpo ao padrão cisgênero de feminilidade. “Nossos corpos ainda são romantizados e violados. O estupro corretivo compulsivo sobre os nossos corpos começa desde muito cedo, ainda em família, os pais quase sempre não sabem onde bate a dor dos filhos na esquina que é fria e oprimida. Até aqui foi tanta dor e força nesse processo com a peça, na busca dolorida da identidade, confesso que foi um processo de gritos e calafrios, consegui arrancar a casca dos machucados que estavam selados, tirando forças para reviver minhas cicatrizes para contar essa fábula no teatro, relembrando toda vez que minha identidade foi questionada, pisoteada, desmoralizada”, desabafa ela, que interpreta brilhantemente Brenda, sob a direção de Yara de Novaes e Carlos Gradim. “A Brenda é a minha dor, a minha raiva”.
Em cartaz no CCSP, em São Paulo, Marcella ressalta: “Acho que todos os pais da aclamada família tradicional brasileira têm que ir ao teatro, principalmente os que têm filhos. Está na hora de acordar, se tocar e começar a mudar essa realidade patriarcal que tanto mata sem moral. Tudo isso começa na família, ao lado dos pais que surram seus filhos lgbtqia+. A peça é baseada em uma história real que aconteceu na década de 60, no Canadá. Trazer essa história à tona é transgredir e romper barreiras para um público acostumado com o teatro tradicional que geralmente temos em cartaz. Estamos falando de vida, na peça atravessamos a quarta parede com os dois pés na porta. Vem e cola. Aceita ou surta”.
Ao final do espetáculo, ela participa de uma emocionante intervenção. “A direção incluiu na peça uma fala a partir de um texto de minha autoria. Ele traz a performatividade com a minha mais pura arte misturada com a crua realidade, coroando o espetáculo. A escrita me permite ir mais fundo e espero que as pessoas possam ir ao teatro assistir ‘Brian ou Brenda?’. Gosto de ver a expressão de surpresa. É impossível passar uma vivência de um corpo trans em um manifesto ou em uma peça de uma hora e vinte minutos para uma sociedade que não legitima esses corpos. Mas se conseguirmos mexer com a mente do público e tocar, virando a chavinha da hipocrisia, já é um retorno esperançoso de um mundo novo”, confessa.
Além do teatro, Marcella também está no elenco da série “Todxs Nós”, da HBO, que ainda não tem data de estreia definida, mas promete balançar os espectadores. “Espero que as pessoas gostem. Falamos sobre um universo não binária, assédio e racismo. Meu núcleo é o do teatro, podemos dizer que Lorena é brava e determinada, espero que deem muitas risadas”, diz ela, que, desde jovem, quando vivia entre vários lares, dos semáforos de Brasília e retornos a Juiz de Fora, onde trabalhou como performer, sempre amou a arte. “Sonhei com isso quando pequena, cantava no coral da igreja e apresentava peças do grupo da mocidade da igreja batista desde os oito anos. Depois que me tornei uma ‘desviada,’ as coisas foram acontecendo ao acaso. A arte é um dos pilares no qual consigo me expressar verdadeiramente. É político”, destaca. Antes de atuar, chegou, também, a ser produtora de moda e, mesmo sem ir a escola, tornou-se poliglota.
As conquistas de sua vida não foram fáceis: “Quando recebi um convite para fazer shows em casas noturnas da cidade do Palácio de Buckingham não fui maliciosa. Era inocente e queria sair das ruas a qualquer custos. Como é muito comum para corpos trans, a viagem se mostrou parte do esquema de aliciamento e tráfico humano para prostituição compulsória em países europeus e eu voltei para Brasília depois de oito meses fugindo desse esquema violento. Fui recontratada pela Mega Models, onde trabalhei como booker pela agência durante um ano. Minha vida dá um livro, por isso estou escrevendo um, que está autêntico, verdadeiro e ácido, quero poder falar que tive uma segunda opção”, adianta.
Aos 19, Marcella casou-se com um suíço e se mudou para Zurich. O casamento durou dois anos e foi nessa época que ela decidiu pelo processo de redesignação sexual, em uma cirurgia realizada na Tailândia. “Sobretudo, foi para mim mesma, uma decisão muito individual. Eu acho que minha carreira tem muito mais relevância do que uma cirurgia. Não vejo problema em falar, mas não é isso que me define. Genital não deveria ser algo que defina alguém”, afirma ela, que, depois disso, viajou pela Ásia, Europa e Estados Unidos e estampou as páginas das principais revistas de moda, como Vogue, Harper’s Bazaar Espanha, Porsche e outras. Durante esse período, investiu, ainda, na formação como atriz e chegou a cursar a New York Film Academy, a Actor’s Studio London e a Eric Morris, em Los Angeles. Pensa que acabou? Pois a bela atuou no videoclipe da música ‘Like It Ain’t Nuttin’, da americana Fergie e viveu a Guerreira Amazona em “Mulher Maravilha“, longa-metragem da DC Films/Warner Bros. “Tenho muitos amigos no exterior, conheço de um tudo, as pessoas gostam de trabalhar comigo. Conheci a Fergie em um jantar do estilista Philipp Plein, seguido de uma festa na semana de moda de Milão. Essa noite foi incrível”, lembra. “Sinto que estou no caminho certo”.
Após a visibilidade da produção hollywoodiana, Marcella sentiu a necessidade de voltar ao seu país e trouxe ao Brasil todo know how que adquiriu na arte. “Não gosto de planejar as coisas, elas simplesmente acontecem e foi assim com o Brasil. Logo após desfilar para a fashion week em Londres fui chamada para um trabalho no Brasil, a princípio ia ficar um mês e essa brincadeira já dura três anos”, conta. “Mas tenho a minha vida em Londres e Milão e não pretendo abrir mão disso”, ressalta ela.
Por outro lado, é uma época em que muito se fala de diversidade e que artistas trans tem ganhado cada vez mais espaço na televisão. “Isso sim é maravilhoso, e quanto mais melhor. As travestis vão se juntar e as coisas vão mudar, o nome disso é retratação social”, acredita. “Ainda temos um longo caminho pela frente, enquanto minhas manas periféricas não estiverem ocupando os mesmos privilégios de respeito e dignidade em todas as profissões e todos os lugares sem sofrer nenhum tipo abuso legitimado pelo CIStema binário, esse dia, sim, vai ser glorioso e a queda desse patriarcado”, critica ela, que já foi vítima de preconceito no meio artístico: “Quando coloco o meu corpo em jogo, automaticamente lido com a transfobia estrutural, porque o sistema é transfóbico, cisgênero, branco, é sonso”, lamenta.
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