Um celular na mão e sete personagens na cabeça: assim é “Homem de lata”, live teatral de Mouhamed Harfouch


Ator transforma um dos quartos de sua casa em cenário e se desdobra sozinho para contar a história de Marcão, um homem em crise que precisa se reinventar e é apanhado de surpresa pela pandemia. “As pessoas custam a acreditar, porque, enquanto elas estão me vendo na tela, minhas mãos estão botando música, abaixando volume, desligando luz. No momento em que corto a tela para outra cena, tenho fração de segundos para preparar o novo ambiente e me instalar nele. É um tour de force, no qual faço sete personagens, além de operar áudio, luz e cenografia”, conta Mouhamed

*Por Simone Gondim

Em tempos de isolamento social por causa da Covid-19, muitas pessoas foram obrigadas a transformar em escritório uma parte do lugar onde moram. No caso de Mouhamed Harfouch, o home office é um pouco mais elaborado: enquanto durar a pandemia causada pelo novo coronavírus, um dos quartos da casa do ator é cenário para a peça “Homem de lata”, que ele escreveu com Moisés Liporage. Totalmente planejado para um formato que Mouhamed chama de selfieteatro, o projeto é praticamente um crossfit artístico, porque o ator faz a transmissão usando a câmera do próprio celular e cuida de tudo, da iluminação ao som. “As pessoas custam a acreditar, porque, enquanto elas estão me vendo na tela, minhas mãos estão botando música, abaixando volume, desligando luz. No momento em que corto a tela para outra cena, tenho fração de segundos para preparar o novo ambiente e me instalar nele. É um tour de force, no qual faço sete personagens, além de operar áudio, luz e cenografia”, conta Mouhamed. “Mas nada substitui o teatro, o que estamos tentando é uma maneira de amenizar essa impossibilidade física”, esclarece.

O espetáculo conta a história de Marcão, um músico que é apanhado de surpresa pela pandemia, tendo que ficar 15 dias de quarentena, sozinho em um quarto. “O personagem está em crise com a chegada do primeiro filho, em crise no casamento e em crise profissional. Nesse momento, ele questiona valores e reavalia sua condição de homem – o machismo estrutural e a posição de um cara que é participativo, cuida do filho enquanto a mulher sai de casa para trabalhar. A peça passa por esse estado de necessidade que a pandemia causa, mas para falar de algo mais profundo, que é essa aflição do homem contemporâneo”, explica Mouhamed.

(Foto: Sergio Santoian)

O ator lembra que, no começo da quarentena, o excesso de notícias ruins, misturado ao clima de insegurança trazido pela pandemia, resultou em uma sensação de paralisia. “Todos nós fomos pegos de surpresa. Começou com um papo de ficar 15 dias sem sair de casa e estamos assim até hoje. Não é só a questão paralisar os projetos e a vida, mas é a morte de muitas pessoas, famílias inteiras sendo afetadas pela pandemia. A gente somatiza tudo isso, porque tendo olhar empático você sofre pelo outro. Já batemos a marca das 50 mil mortes, é uma coisa muito séria”, observa. “No início da quarentena e de todo aquele processo, fui ficando cada vez mais impressionado e paralisado. Eu tinha duas crianças para cuidar e não podia transferir esse peso para elas, então mudei a chave e disse: preciso usar essa pandemia para produzir, criar e me preparar para quando ela passar”, acrescenta.

Dessa preparação nasceu a ideia de aproveitar “Homem de lata”, projeto antigo concebido para o teatro convencional e reescrito durante o isolamento social. Além da formatação nova, a peça tem um lado beneficente. Na primeira semana, o valor arrecadado com todos os ingressos vendidos irá para a APTR (Associação dos Produtores de Teatro). No restante da temporada, que vai durar enquanto houver quarentena, parte da renda obtida com bilheteria será destinada à APTR. “Foi a maneira que encontrei de não perder a conexão com o público, colaborar com os colegas que estão em dificuldade e fazer algo que me ajudasse a sobreviver nesses tempos difíceis”, diz Mouhamed.

(Foto: Sergio Santoian)

Segundo o artista, a versão de “Homem de lata” que está em cartaz atualmente é a melhor das três já escritas. “A gente buscava para a peça uma situação-limite crível para o personagem, na qual ele pudesse estar isolado e reavaliar sua vida. Antes da pandemia, não estávamos achando. Veio a pandemia e o absurdo virou realidade”, ressalta. “Futuramente, pretendo fazer mais uma adaptação do espetáculo e levar para o teatro”, completa.

Mouhamed enfatiza que trabalha para o público não perceber a parte técnica, mas não está livre de imprevistos. “Já toquei a trilha errada, por exemplo. Também aconteceu de o meu áudio ficar mudo de repente, porque um administrador do grupo foi tirar o som de todos os participantes por causa do barulho e me deixou mudo sem querer. Teve ensaio em que acabou a luz. Parei e esperei voltar. Se o wi-fi cair, tem o 4G. Quando nada funcionar mais, será preciso remarcar a sessão”, pontua.

Com a mulher e os filhos no carnaval, antes da pandemia chegar ao Brasil (Foto: Reprodução Instagram)

Outro desafio é o fato de ter apenas um computador na casa, que também é usado pela mulher do ator e para as aulas online da filha mais velha do casal, de 8 anos. “Só ensaiei esse espetáculo de 21h30 em diante, porque aí as crianças já estariam dormindo. Tive que escrever o espetáculo às 6h, quando todo mundo ainda estava na cama. Foi a maneira que encontrei de me adaptar sem incomodar o pessoal da casa e poder trabalhar tranquilamente”, revela. “Foi um desafio, em todos os sentidos, e uma provação, mas que me fez ressurgir. Quando você fica parado, somatizando tudo, a tendência é pirar, surtar, ir para uma depressão. Troquei isso pelo desafio de desbravar um lugar novo e acho que me instigou a encontrar soluções que me orgulho de ter achado”, comenta.

Fora da ficção, Mouhamed passou por uma situação-limite antes de estrear “Homem de lata”. A uma semana de apresentar a peça ao público pela primeira vez, mudou de casa com a família toda. “Antes da pandemia eu já tinha vendido meu imóvel para ir para outro lugar. Aí, veio a quarentena e precisamos aguentar três meses. Chegou uma hora em que não dava mais e tivemos que sair do apartamento antigo. Botei as crianças em um espaço aberto para fazer a mudança, depois chamei uma firma de higienização para limpar tudo e a gente poder entrar na casa. Além disso, precisei reensaiar a peça toda no espaço novo”, conta.

Como acontece com qualquer pessoa com filhos pequenos, nem sempre é fácil transformar a residência em local de trabalho. “É a realidade de todo mundo que está quarentenado e tem filho pequeno. A gente tem uma vida. No meu caso, são duas crianças saudáveis e cheias de energia, que demandam muito. Ensaiei várias vezes com muito sono. Durmo uma média de quatro ou cinco horas por noite, porque às 6h eles estão pulando na minha cama. Confesso que chegou uma hora que achei que iria surtar. A casa é uma indústria, não para, está em processo o tempo inteiro”, ressalta. “O convívio vai ficando mais tenso, porque o estresse de não poder sair vai pesando. Um mês é uma coisa, o humor com dois meses é outro. Com três, já vamos chegando no limite. Você passa a ver as pessoas 24 horas, perde um pouco a sua individualidade e não dá para ir a algum lugar refrescar a cabeça e voltar”, conclui.

“Homem de lata” – Crítica

Além de causar ansiedade em muita gente, o isolamento social imposto pelo novo coronavírus trouxe uma outra pandemia: a de lives. Dia sim, outro também, nos deparamos com debates, entrevistas e shows transmitidos via internet, que, com algumas exceções, não surpreendem nem conseguem prender a atenção durante muito tempo. Por isso, confesso que fui assistir à peça “Homem de lata” com um certo receio. Teria paciência para essa live teatral? Felizmente, o tédio não deu as caras durante 1h15 de espetáculo. Mouhamed Harfouch mostra que o que ele chama de selfiteatro pode, sim, ser uma experiência divertida e um alento para quem, como eu, pouco saiu de casa nos últimos meses.

Antes da peça, o ator cumprimenta a plateia e passa algumas instruções, como desligar as câmeras para que a única imagem seja a dele e procurar um lugar silencioso para assistir. O fato de os microfones ficarem abertos proporciona ao ator a chance de acompanhar as reações do público, mas nem sempre é bom para quem assiste: qualquer descuido incomoda e atrapalha, seja uma risada mais alta encobrindo o texto dito pelo artista ou o ruído desagradável de um microfone roçando na roupa de quem optou por usar os fones do celular. Ao menos, na sessão que assisti, ninguém falou alto durante o espetáculo ou decidiu conversar com alguém que estivesse na mesma casa, mas fazendo outra coisa. Também não levaram o celular, tablet ou notebook ao banheiro, para meu alívio – ou fizeram isso e foram discretos, tirando o som.

Mouhamed Harfouch usa a câmera do celular no modo selfie na hora de encenar “Homem de lata” (Foto: Reprodução Internet)

Seguindo os moldes do teatro convencional, pouco depois do terceiro sinal o espetáculo começa. A porta do quarto se abre, com o cômodo iluminado apenas pela luz do corredor, e vemos Marcão, usando máscara, luvas, jaqueta e escudo de proteção facial. Ele entra, as luzes do quarto acendem e a porta é fechada. A partir daí, a destreza de Mouhamed Harfouch fica evidente – além do protagonista, ele interpreta mais seis personagens, sem mudar figurino ou recorrer a perucas e maquiagem. Um exercício de atuação, com ênfase em caras, bocas e no tom de voz, que revela, além de talento, o domínio do texto e do posicionamento de câmera.

Embora, oficialmente, a pandemia seja um pano de fundo para a trama, na prática é por causa dela que tudo acontece: o motivo do isolamento de Marcão é o risco de ser contaminado por covid-19 ou transmitir a doença. A saudade da mulher e do filho ainda bebê, a crise profissional e o desgaste no casamento são tratados com humor. A plateia se identifica e vai às gargalhadas com a paranoia envolvendo a limpeza de tudo que chega da rua ou entra em contato com o ambiente externo – afinal, nesses tempos de coronavírus, que atire a primeira pedra quem nunca deu banho nas compras do supermercado ou exagerou na dose do álcool gel.

Foto: Sergio Santoian

Como em um truque de mágica, Mouhamed Harfouch distrai o público enquanto muda o cenário ao trocar de lugar dentro do quarto e controla sozinho som e iluminação, deixando a plateia em dúvida se ele realmente faz tudo por conta própria. E, pasmem, o ator só tem ajuda externa para mudar as cartelas que controlam a passagem de tempo e rodar os vídeos que abrem e encerram o espetáculo. Por enquanto, sigo preferindo a experiência do teatro in loco, mas, até que seja possível voltar a ocupar um lugar diante do palco, espetáculos como “Homem de lata” ajudam a matar a saudade desse tipo de programa.