Em 2021, às vésperas das comemorações de seus 55 anos de carreira, a atriz Françoise Forton e o marido, o produtor teatral Eduardo Barata, estavam se preparando para levar aos palcos, assim que a pandemia permitisse, a vida da festejada e célebre atriz Glauce Rocha. Morta precocemente em 1971, aos 41 anos, Glauce, que foi tutora e mentora profissional de Françoise no final dos anos 1960, seria vivida pela atriz no teatro. Contudo, naquele mesmo ano, Fran, como era chamada pelos colegas e íntimos, descobriu o câncer que a levou embora em janeiro de 2022. A fim de realizar este último desejo de Françoise e homenagear ambas as atrizes, Eduardo Barata então convidou a atriz Débora Duboc, madrinha de casamento dos dois, para interpretar a vida da lendária atriz em “Glauce”, montagem que estreia na próxima terça-feira (dia 19), no Sesc Copacabana, com texto de Leonardo Netto e direção de Debora Dubois.
Na verdade, Françoise participou de toda a construção do texto e do espetáculo, que fez, em agosto, curtíssima temporada no Sesc Tijuca. Ainda na cama do hospital, leu a última versão escrita pelo o ator, diretor e dramaturgo Leonardo Netto. “Fran me mandou uma mensagem linda, dizendo que não tinha conseguido parar de ler o texto. Glauce queria muito ser mãe, teve nove abortos espontâneos, nunca conseguiu manter uma gravidez. Isso era uma grande frustração na vida dela. Por isso, tinha uma relação muito maternal com a Françoise”, recorda Leonardo.
As histórias de Françoise e Glauce se misturam quando a atriz ainda era criança e as duas se conheceram em Brasília. Ao passar no teste para o filme “Marcelo Zona Sul“, que trouxe Fran para morar no Rio de Janeiro, Glauce imediatamente se colocou como tutora da atriz, ainda menor de idade. Françoise a chamava de Tia Glauce e desse convívio nasceu o desejo ainda maior da então iniciante atriz de seguir a carreira artística, nos passos desse ícone dos palcos, que morreu vítima de um ataque do miocárdio e que deixou uma grande marca na cultura brasileira.
Em apenas 18 anos de carreira, Glauce Rocha atuou em 46 peças, 25 filmes e seis novelas, além inúmeras produções de teleteatros. Participou de movimentos artísticos importantes nas telas, principalmente, o Cinema Novo, no qual integrou o elenco de filmes antológicos como “Rio 40 Graus”, “Os Cafajestes”, “Terra em Transe”, entre outros, e, nos palcos, como o Teatro do Estudante. Em sua breve, porém meteórica trajetória, Glauce recebeu prêmios relevantes concedidos a grandes atores no Brasil, como o Molière e o APCA, e também se destacou como ativista. Lutou pela legalização da profissão de ator, contra o fascismo e a ditadura e refugiou em seu apartamento diversos representantes da esquerda brasileira. É considerada, ao lado de Cacilda Becker e Fernanda Montenegro, uma das maiores atrizes do país.
Para contar toda essa trajetória que marcou a arte brasileira, Françoise Forton quis que a ficha técnica fosse formada somente por mulheres, com exceção do texto, que já havia sido encomendado. Coube a Eduardo Barata essa escalação: a direção ficou a cargo de Débora Dubois e, no palco, Débora Duboc dá vida a Glauce. “Débora Duboc é nossa madrinha de casamento. A gente nunca pensou que a Fran fosse morrer. É uma linda homenagem para a memória da Fran e para perpetuar a imagem dela como atriz e mulher”, diz Eduardo Barata.
O texto começa na madrugada do dia 12 de outubro de 1971, dia em que Glauce morreu. Às 4h da manhã, o telefone toca na casa da irmã de Glauce, em São Paulo, onde a atriz estava hospedada para gravar uma novela na Tupi. Ela atende e do outro lado da linha uma mulher avisa que alguém naquela casa iria morrer, que a morte rondava aquele local. “Isso foi um fato real, ninguém sabe até hoje quem era aquela mulher”, diz Leonardo. Glauce não consegue mais dormir, com medo de perder a hora da gravação, e começa a relembrar sua vida. Naquele mesmo dia, às 19h, ela sofreu uma parada do miocárdio, mesma tragédia que matou sua mãe, um ano antes.
“Muita gente diz que ela morreu de exaustão e ela nunca deixou que essa exaustão a impedisse de fazer qualquer coisa. Ela aceitava mais trabalho, amava o teatro, ser atriz. Isso me tocou demais: como a pessoa vai se abandonando para fazer o que é sua paixão. Ela trabalhava muito, mas não era rica. Tinha uma vida muito generosa com dinheiro, ajudava os amigos, família, estava sempre dura”, afirma o autor.
É essa paixão pela arte que a diretora Débora Dubois quer mostrar na peça. “A vida da Glauce é construída pela arte. Falar dela é muito mais do que falar de sua história. Se você pensa que ela morreu em 71, o discurso dela cabe hoje. Nos últimos quatro anos, estávamos quase iguais ao momento em que ela estava vivendo. Ela enfrentava e dava a cara a bater”, diz Débora. Um dos destaques do texto é quando o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) invade o teatro e prende uma das atrizes da peça “Electra“, antes da apresentação. Glauce não hesita em convocar toda a plateia para libertar a atriz. Vão todos para a frente do DOPS e conseguem libertá-la. “Eles poderiam matá-la naquela hora, ou prendê-la. Mas ela era uma influenciadora e usava sua postura para falar e fazer o que precisava. Ela era uma diva do momento e não se comportava como tal. Tinha um cuidar da classe teatral muito forte”, diz Dubois.
“Glauce ensina que não tem outro caminho a não ser a união. Precisamos estar de mãos dadas com as pessoas que têm a mesma onda”, complementa Débora Duboc, que afirma estar aprendendo muito com a personagem. Para ela, interpretar Glauce não é apenas mostrar a vida dessa diva, mas falar de muitas mulheres. “A Glauce explode para ser todas nós do ofício. Ela é uma atriz sensacional, fico muito apaixonada assistindo ao seu trabalho. Ela é moderna e contemporânea. Tudo desse texto tem um espelho para o momento que vivemos hoje, com os artistas brigando pelos seus direitos no streaming. Não existe outro caminho senão lutar pelo que precisamos”, acredita Duboc.
O projeto “Glauce” conta com o patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro e Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa.
Serviço
“Glauce”
Sesc Copacabana – Sala Multiuso
19 de setembro a 4 de outubro.
Terças e quartas, às 19h.
Valores dos ingressos a definir
Classificação indicativa: 12 anos
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