*por Vítor Antunes
Ele surgiu na televisão e a televisão o fez reconhecer sua vocação. Thiago Lacerda vê o atual momento da TV aberta como uma fase de transição, tanto nos programas como na teledramaturgia. “A atual circunstância histórica é a da consciência que o que existia não existe mais. A gente está tentando entender com clareza os caminhos do audiovisual, e meio à sensação de que está tudo meio bagunçado. É natural que o formato-novela esteja sendo repensado, revisto. E não sei nem se ele volta a ser como conhecemos. Acho que vai ser transformado em outra coisa. A internet veio dar uma embaralhada nas coisas. Inclusive, gosto de muito pouca coisa do que eu vejo hoje na TV aberta em todos os canais que se desafiam a fazer contação de história para o audiovisual”.
Sinto que o que os profissionais que faziam, e que sabiam fazer [televisão] não estão mais ali. A TV parece estar tentando encontrar um jeito de substituir uma mão de obra que foi envelhecendo e cuja linguagem vem sendo buscada na internet ou no streaming, o que torna tudo meio confuso. A gente está buscando um caminho, mas creio que em breve teremos mais clareza dos rumos de tudo isso – Thiago Lacerda
Thiago prossegue dizendo que “Globoplay tem efeito projetos interessantes, o streaming – de modo geral – tem efeito coisas interessantes, mas diferentes daquilo que eu conheço, então me sinto num processo de adaptação a essa nova realidade, a essa nova perspectiva de mercado e de trabalho. Creio que por enquanto vamos ter de surfar essa onda meio mexida até que ela volte a ficar uma onda mais definida, mais clara com menos surpresas e menos estranhamento”.
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Inspirada na emblemática obra “A Peste“, do renomado escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), numa adaptação teatral homônima e inédita, dirigida por Ron Daniels, Thiago estreou no SESC Santana no dia 10 de outubro. Publicada em 1947, “A Peste” é uma das criações mais marcantes de Camus, sendo uma profunda reflexão sobre a condição humana diante de crises existenciais e sociais.
A peça, ambientada na cidade de Orã, então colônia francesa na Argélia, convida o público a examinar a sociedade sob uma ótica coletiva e crítica. O enredo se desenrola através do relato do Dr. Bernard Rieux, que, com profundidade e lucidez, narra o progresso da epidemia que assola a cidade. A história explora desde os primeiros sinais da peste até sua devastação em grande escala, abordando os impactos tanto individuais quanto coletivos, as medidas adotadas para conter o surto e os desdobramentos das ações sobre a estrutura social. Com ingressos esgotados em várias sessões, a montagem tem atraído grande atenção do público e permanecerá em cartaz até o dia 10 de novembro.
RAÇA DE HERÓIS
Thiago Lacerda é, definitivamente, um homem discreto. Os preparativos para esta entrevista revelaram muito de como ele próprio pautou sua carreira nos quase 30 anos de carreira. O ator passou incólume pelo tempo, e pelos holofotes em seus inúmeros papéis como protagonista, mostrando que, mais que respeito à sua profissão, tem respeito a si. Além dos seus trabalhos, só são públicas suas declarações de amor à família e ao Flamengo – que enquanto esta entrevista era escrita, estava classificado para as fases finais da Copa do Brasil.
Não seria inoportuno dizer que, além das paixões acima citadas, há a própria profissão, que surgiu por acaso. O sonho do rapaz, que fazia Administração de Empresas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), era ser gerente de banco. Mas foi convidado a fazer uma participação em “Malhação”, ainda nos anos 1990, que transformou sua vida. “Na primeira cena da minha carreira, na primeira vez em que eu botei um figurino num set e ouvi a palavra ação, me apaixonei pelo que estava acontecendo na minha vida. Até então, não havia me dado conta de que ser ator não era uma circunstância da juventude. Me apaixonei em cena pelo meu ofício e entrei numa espiral de disciplina e de apego pelo estudo”.
Não passei a minha juventude trilhando um caminho para me preparar para essa carreira. Ela chegou antes. Me preparei com a bola rolando. Depois de “Malhação”, fiz uma minissérie, uma novela e Terra Nostra, quando tudo aconteceu, e de maneira muito rápida, em menos de três anos – Thiago Lacerda
Se há um perfil de personagens que Lacerda e Tarcísio Meira (1935-2021) se assemelham são os heróis. Não apenas os que o são pela simples acepção da palavra, mas os heróis clássicos, épicos. Alguns deles, inclusive, foram divididos entre os dois atores. Tarcísio e Thiago deram vida ao Capitão Rodrigo Cambará, de “O tempo e o Vento“, e ao herói da Inconfidência, o Tiradentes. “Esses personagens heroicos e épicos estiveram presentes em minha carreira sem que isso fosse um plano meu. Eles simplesmente aconteceram de forma muito natural. De Capitão Rodrigo a Giuseppe Garibaldi. De Jesus a Calígula. Adoro a presença desses personagens na minha vida. A fala desses homens não é apenas uma fala, mas uma propagação de ideia. Tiradentes mesmo diz: “Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela Liberdade do meu povo”, não tem como isso ser superficial! Isso tem que ser dito com intimidade. Eles mudaram, certamente, a minha perspectiva sobre a vida, e a maneira como eu encaro o meu cotidiano”.
Sobre a relação dele com Tarcísio Meira, Thiago aponta que há também, um lugar de afeto. Haja vista que, além de tudo, foram pai e filho em “Páginas da Vida” (2006) e sempre foram comparados. “Minha história com Tarcísio é muito antiga. Uma professora de matemática, me chamava pelo nome dele, quando eu tinha sete anos. Em minha primeira crítica já na TV, um jornalista disse que eu seria o próximo Tarcísio, o que muito me honrou. Anos depois, nos encontramos em cena, em “Páginas” cercado por sua generosidade. Depois, ele foi a primeira pessoa a saber do convite para fazer “O Tempo e o Vento“. Ele sorriu e disse ‘que bom que é você'”. Razão pela qual optei por homenageá-lo na caracterização”.
Thiago Lacerda está em cartaz com “A Peste“. Montagem que fala de um passado distante, na Argélia, mas que sem muito esforço permite uma conexão com um passado recente, como o da pandemia. “Para o público, é importante que essa reflexão seja constantemente provocada. Esquecer é um mecanismo de autodefesa importante. As nossas relações, elas continuam impactadas pelo que vivemos. A gente reduziu os nossos acordos civilizatórios a muito pouca coisa e estamos vivendo o impacto daquela peste, da pandemia, no ponto de vista político e no ponto de vista da saúde, com muita coisa sendo empurrada para debaixo do tapete. Acho que as pragas – tanto de saúde pública como políticas – estão sempre à espreita”.
Thiago nos conta que o livro que baseia a peça foi escrito durante a ascensão do autoritarismo da Europa dos Anos 1930 que resulta em Paris ocupada pelo exército alemão. Para o ator, a doença para além de enfermidade é o autoritarismo e que não pode ser relevado hoje. “Se a gente não tiver coragem de empurrar essa gente autoritária de volta para o esgoto, de encarar os ratos – e essa é a metáfora da peça – essa coisa volta e nos engole a todos”.
Fazer um monólogo é estar sozinho em cena e ser responsável por 7.983 palavras por uma hora e meia. Num movimento de esperança, de resiliência, de resistência. Cabe a mim, em cena, ocupar esse lugar de convocar as pessoas à reflexão – Thiago Lacerda
Para encerrar, Thiago volta seus olhos à própria montagem, dizendo ser preciso estar atento e forte para, mais que existir, reexistir, num mundo que vez por outra, flerta com a tirania e com a doença da insensatez. “A última frase para esta matéria pode ser a minha última fala da peça: ‘Um médico escreveu esta narrativa que termina aqui. É para aqueles que não se calam. É um depoimento em favor das vítimas da peste, para deixar ao menos uma lembrança da violência e da injustiça que a eles tinham sido feitas. É para dizer que o vacilo da peste não morre nem desaparece. Pode ficar adormecido por anos nas roupas, nos móveis, nos porões, na burocracia, nos lenços… Porque um médico sabia que um dia, talvez para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.
Em meio às ondas revoltas da transição, Thiago Lacerda nos lembra que a arte, como a vida, nunca é estática. Assim como o monólogo que carrega sozinho no palco, ele nos convoca a refletir, resistir e adaptar-se às mudanças que se impõem. Sua jornada pessoal e profissional reflete a trajetória de um herói moderno, alguém que, mesmo sem ter planejado, assumiu o manto de figuras épicas e, com disciplina, abraçou o ofício que a vida lhe ofereceu. Como a peste de Camus, as crises que enfrentamos podem adormecer, mas jamais desaparecem completamente. E, com sua última fala na peça, Lacerda nos adverte: é preciso estar sempre atento, porque o perigo, seja ele de ordem política, social ou humana, espreita nos cantos mais inesperados. Que sua arte continue a inspirar resistência e a chamar atenção para as verdades que, muitas vezes, preferimos – por ignorância – ignorar.
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