Os amantes de Nelson Rodrigues poderão se deliciar com mais uma produção teatral que carrega uma peça do autor. Escrita em 1957, ‘Perdoa-me por me traíres’ inicia esta semana sua segunda temporada no Teatro dos Quatro, no Shopping da Gávea, com direção de Daniel Herz. A tragédia de costumes conta a história de uma adolescente órfã, vivida na pele de Clarissa Kahane, que resolve se aventurar nos bordéis da cidade por não aguentar mais ser reprimida pelos tios. Raul, interpretado por Ernani Moraes, descobre que a sobrinha se prostitui o que acaba gerando muitas desavenças na família. “O Nelson é o nosso Shakespeare. Ele construiu uma linguagem, sotaque e problemática brasileira e, ao mesmo tempo, tem questões que tocam assuntos universais. Acho muito importante pensar o teatro se debruçando sobre um texto dele”, considera o diretor Daniel que comanda o elenco composto por Bebel Ambrosio, Bob Neri, Clarissa Kahane, Ernani Moraes, Gabriela Rosas, João Marcelo Pallottino, Rose Lima, Tatiana Infante e Wendell Bendelack. Apesar do incêndio que aconteceu recentemente no shopping, a produção deste espetáculo não foi afetada.
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A primeira temporada foi exibida na Casa de Cultura Laura Alvim e foi muito elogiada pela crítica. “A cobrança que temos hoje é conseguir mostrar que nos aperfeiçoamos. Uma segunda temporada só é possível se as pessoas entendem que o espetáculo nunca vai ser igual ao outro, sempre irão existir novas falas ou incrementos que conseguimos dar para melhorar a peça. Assim como a vida, não há estabilidade em uma produção. Ontem mesmo, coloquei sete coisas novas na marcação do espetáculo. Há uma expectativa interna de melhora”, conta Daniel. O texto foi adaptado, inclusive, para o cinema, em 1980, dirigido por Braz Chediak.
Daniel é um grande admirador e pesquisador da obra de Nelson Rodrigues. O carinho é tanto que não se importaria em fazer para o resto da vida obras do autor. “Já estudei muito sobre o Nelson ao ponto de fazer um texto inspirado na obra dele, ‘Decote’. De certa forma, é um autor que está sempre aparecendo na minha frente. As referências que coloquei nesta peça foram das pesquisas que fiz sobre ele”, informa o diretor que buscou ilustrar o que gostaria de passar com a peça com as próprias pesquisas que havia feito anteriormente.
Dentre tantas que admira como ‘Os sete gatinhos’ e ‘Boca de ouro’, o diretor escolheu o texto de 1957 por falar de assuntos que acha interessantes e que são totalmente atemporais. “Tem algumas peças dele que sou apaixonado e o ‘Perdoa-me por me traíres’ é uma delas porque existem alguns temas que me interessam muito. Como, por exemplo, idade e traição que são coisas que acho importante refletir na nossa cultura monogâmica. É importante entender como a gente se relaciona com essas contradições que surgem, às vezes, na sociedade. Além disso, ele mostra como as relações familiares podem se deteriorar. Tudo isso com uma ideia de atemporalidade incrível”, comenta.
‘Perdoa-me por me traíres’ fala sobre grandes tabus da sociedade como desejos, traições, morte, sexo, prostituição, vingança, violência física e moral. Exibe diversas camadas que um ser humano pode ter se apenas tentarmos conhece-lo melhor. “Os tabus são as interdições que temos dentro da sociedade que nos mostra que não podemos falar sobre certo tema. A cultura expõe estes desejos contraditórios como, por exemplo, a paixão de um tio por uma sobrinha. É importante entender como a complexidade urbana se desenvolve através destes paradigmas”, sugere o diretor ao se referir sobre a vontade proibida e reprimida que Raul tem de namorar a sobrinha. Este desejo, na sociedade em que vivemos, é constantemente criticado e abordado como assédio sexual ou abuso.
O cenário é assinado por Fernando Mello da Costa e traz diversas reflexões interessantes que já explicitam e complementam as informações que a peça busca levantar. Um desses elementos é a presença de persianas que elenca o que pode ser revelado e o que não deve ser mostrado. Ou seja, representa os próprios tabus da sociedade. “As venezianas trazem exatamente esta ideia do proibido. Quando estamos conhecendo alguém, algumas camadas começam a se revelar depois de um tempo mostrando os desejos mais profundos desta pessoa”, explica. No palco, há a presença de um chuveiro que através das luzes imita filetes de água. Para o expectador, se torna uma visão literal da sujeira que os atores expõem em cena. É uma sujeira moral que a água não limpa, mas que atormenta a todos os que estão a volta. “O tio personifica esta pessoa que precisa ser limpa. O Gilberto é o personagem que fica no chuveiro, no entanto é o mais lúcido da peça, mesmo estando naquele espaço”, exemplifica.
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