Não. O momento não é de festa e euforia na cultura brasileira, principalmente quando falamos do Rio de Janeiro. Com o estado cada vez mais sem recursos e os artistas em crescente indignação, o panorama é de revolta e resistência. Pelo menos foi isso o que Soraya Ravenle desabafou em entrevista exclusiva ao HT. Com dois projetos culturais para o teatro, um musical e uma peça, a atriz comentou a dificuldade e as barreiras impostas pelo governo carioca para se fazer arte na cidade do Rio. Em um ambiente em que os teatros públicos não possuem autorização para funcionar e os particulares estão fechando por causa de falta de recurso, Soraya ainda destacou a dificuldade de comunicação e argumentação com a Secretaria de Cultura do município.
Com quase 30 anos de carreira dedicada aos palcos, cinema e televisão, Soraya Ravenle é uma das diversas artistas brasileiras que está passando por um momento de revolta e indignação. Hoje, a atriz está com dois espetáculos na ponta do lápis: “A Era dos Festivais”, com Edu Krieger, que conta o período da ditadura militar através de músicas da época, e “Instabilidade Perpétua”, que é uma adaptação própria do livro homônimo do filósofo Juliano Peçanha. A adaptação foi feita pela própria atriz e pelo diretor Diogo Liberano de forma que traduzisse da melhor maneira o que o autor queria passar. “Criamos o texto de forma muito intuitiva. O outro roteirista já conhecia muito do texto o que ajudou muito. A minha identificação com o livro foi tão forte que eu sabia exatamente o que escolher para entrar na peça. A peça é muito pessoal. O texto me tocou tão rápido que a única explicação é minha aproximação com aquelas ideias. Ele me espelha e fala da minha relação com o mundo. O espetáculo é dividido em blocos com recortes do livro, em uma adaptação que fiz com o Diogo. De modo geral, foi o resultado de uma conversa entre mim, o autor e o Diogo”, contou.
A peça foi montada sem patrocínio e, por isso, a atriz dispensou cenários e grandes produções. Além de estar sozinha em cena, as únicas ferramentas que tem com o mundo exterior estão restritas àquele espaço. “Utilizo tudo que existe no palco como, por exemplo, uma caixa de som, sempre tentando abrir pontes com o mundo lá fora. Essa maneira de fazer teatro, que está acontecendo muito devido aos problemas estruturais do estado, acaba me deixando nua. Ou seja, o sucesso da peça só depende de mim e dos elementos que vou trazer para aquele espaço. Acho que foi um momento bom para entrar com esse trabalho, pois tenho maturidade para arcar com a nudez”, informou a atriz.
Como obstáculo, Soraya e a classe artística brasileira têm a falta de apoio e recurso do poder público. Como já contamos por aqui, hoje, o Rio de Janeiro vive um quadro de suspensão das produções culturais por causa do não pagamento de um fomento, assinado na gestão passada, que contemplava cerca de 200 produções culturais. Com isso, artistas de pequeno e médio porte estão impossibilitados de seguirem com seus espetáculos por falta de verba. “A nossa secretária de cultura (Nilcemar Nogueira) e o nosso prefeito (Marcelo Crivella) estão sendo muito cruéis. Eles estão rompendo um projeto, que é o fomento, que contemplava mais de 200 produções culturais espalhadas por toda cidade. Eram trabalhos de porte pequeno e médio, pesquisas etc. Nisso tudo, parece que a secretária só quer holofote, e por um lado negativo, para ganhar visibilidade e marcar a sua passagem na pasta. Porém, ela está fazendo isso da pior forma. Ela está ceifando e querendo matar a única possibilidade de realização de arte e cultura, que era esse fomento”, afirmou.
Na visão de Soraya Ravenle, o panorama da política de incentivo à cultura do município ainda é mais sério e complexo. De acordo com a atriz, além de não cumprir com o pagamento do fomento, que foi assinado em R$ 25 milhões, a secretária de cultura ainda privilegia produções pontuais. “Para piorar, ela ainda está fazendo uma política de balcão. Ela divide o dinheiro público dando um pouco para um, um pouco para outro e assim vai levando. Mas eu tenho um recado: alô secretária de cultura, o ano não acabou e você ainda pode rever essa maldade, crueldade e assassinato que você está cometendo”, denunciou.
Para completar o desabafo, a atriz ainda trouxe outra questão, um tanto quanto antitética, para a discussão. Neta de um dos maiores gênios da música brasileira, Cartola, a secretária de cultura do Rio se mostra, na opinião de Soraya Ravenle, uma pessoa fechada para debates e que se esconde atrás de uma bandeira de vítima deste contexto. “Ela é uma pessoa que tem dificuldade de ouvir e se coloca em uma posição de vítima quando é contrariada. E, para piorar mais ainda, ela usa o fato de ser mulher e negra para contrapor qualquer diferença que exista entre o que estão falando e o que ela acredita. Ou seja, se a gente argumenta qualquer coisa e questiona uma ideia, ela já se defende levantando a bandeira de que só estamos fazendo isso porque ela é mulher e negra”, afirmou a atriz.
Mesmo com mais de 50 anos de intervalo de tempo, Soraya contou que identifica uma semelhança entre este momento que estamos vivendo hoje no Brasil, com foco no Rio de Janeiro, e o período da ditadura, que conta através de músicas no espetáculo “A Era dos Festivais”. Para a atriz, nestes dois contextos, há uma censura de participação da população e da classe artística. “Também era uma época em que a política estava pegando fogo e a indignação estava latente a muitos de nós. Porém, mais que isso, eram tempos de censura muito forte que se assemelham a nossa atual situação. A partir do momento que essa secretária não quer conversar com calma com a classe artística ela acaba anulando o nosso trabalho. Querendo, pelo menos”, desabafou a atriz.
Mas ela – e os companheiros de profissão – garantem não desistir. Mesmo com um sentimento de estarem remando contra a maré, Soraya Ravenle põe em prática uma palavra que, apesar do uso constante nos últimos tempos, não deve virar clichê: resistência. Por isso, a atriz se mantem ativa nos palcos e segue fazendo seus espetáculos. Nos próximos dias 20, 21, 22 e 23, Soraya, Edu Krieger e a banda apresentam o espetáculo “A Era dos Festivais” na Universidade Federal Fluminense, em Niterói.
Fora o panorama complexo do teatro, Soraya segue sua carreira também na televisão. A atriz irá fazer uma participação na série “Sob Pressão”, que estreia no próximo dia 25, na Globo. Na trama, que tem a saúde pública como pano de fundo, Soraya interpretará a esposa do personagem de Fernando Eiras, que se envolve em um acidente e precisa ser levado para o hospital. “Ela descobre no meio dos feridos de um acidente de van que seu casamento acabou. Naquele momento, ela vê que o marido tinha um relacionamento com um homem. Então, é tudo muito intenso. Embora seja apenas uma participação e um único capítulo, é uma experiência muito concentrada em que tudo acontece. Foi um grande desafio”, lembrou.
E a pluralidade de temas e debates não é algo exclusivo deste episódio de Soraya Ravenle. Em “Sob Pressão”, as histórias e os dramas se costuram em uma narrativa que tem a emoção como personagem constante. “A trama é muito bem construída. A série é escrita por feras que sabem fazer esse cruzamento de histórias de forma única. Um caso vai entrando no outro, que se depara com um drama diferente e que é conectado a outro. Enfim, é uma verdadeira trança de acontecimentos”, adiantou Soraya sobre o texto de Jorge Furtado que terá, entre as temáticas, a abordagem de aids, abuso, doação de órgão e drogas. “Eu acho que a televisão está cada vez mais aberta a novas linguagens, situações e ideias. É isso o que estamos vivendo. A TV não pode parar no tempo e no espaço e, neste momento, estamos acompanhando justamente essa evolução”, completou a atriz Soraya Ravenle.
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