Como podemos sentir a felicidade em momentos de distanciamento social como o que estamos atravessando com a pandemia do coronavírus – com uma realidade tão delicada – e inseridos em uma sociedade com tantas inquietações? Em live promovida pelo SENAI CETIQT, o antropólogo Marcelo Ramos afirma que a palavra felicidade deve vir sempre no plural e o caminho para alcançar as felicidades possíveis não tem uma receita e as diversas emoções sentidas em momentos difíceis também fazem parte da vida. “A construção da felicidade como uma obrigação deixa as pessoas frustradas e inquietas. Em diferentes âmbitos da vida há sempre projetos que não chegaram ao seu objetivo, justamente porque estão sendo trabalhados em cima de ideais”, explica. “É vital a reflexão. É importante sentir as emoções de tristeza também até para perceber o que é positivo e se mobilizar para isso, sabendo que no caminho haverá um processo de desenvolvimento e elaboração. Ter esse pensamento é ainda mais importante em uma situação como a que estamos vivendo, na qual vemos que a tristeza e a inquietação são inevitáveis”, acrescenta.
Segundo Marcelo, o problema da nossa época é que ser feliz virou um imperativo, a partir do momento em que a felicidade deixou de ser considerada um dom de Deus e se tornou uma responsabilidade do indivíduo. “Ser ou parecer feliz é um signo de realização pessoal, embora esse conceito varie de pessoa para pessoa e leve em conta determinados contextos socioculturais. Ser religioso ou não, por exemplo, interfere nas concepções e nos projetos de felicidade de alguém”, observa. “É importante entender que os momentos de tristeza são parte da vida humana. Os ideais de felicidade fazem com que isso não seja uma verdade, mas é importante aceitar ativamente e buscar significado para avançar”, pontua.
Marcelo cita o neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl (1905-1997), autor de “Em busca de sentido” ao dar um conselho para evitar a frustração da busca por essa felicidade idealizada: “Quando a situação for boa, desfrute-a. Quando a situação for ruim, transforme-a. Quando a situação não puder ser transformada, transforme-se”. O antropólogo também aponta que o pensamento de Frankl vai na mesma direção da oração de São Francisco de Assis. “Quem reza pede para ter sabedoria a fim de estabelecer a diferença entre as coisas que pode e as que não pode mudar”, descreve.
Segundo Marcelo, a dificuldade em admitir que nem sempre se é feliz pode interferir na saúde de forma radical. “Há pesquisas mostrando o aumento, de forma exponencial, do consumo de ansiolíticos e antidepressivos nesses últimos meses, por conta da pandemia. Isso tem a ver com a medicalização da sociedade por conta da exigência de ser feliz, sem tolerar a tristeza”, lamenta. Ele frisa que as pessoas diagnosticadas com doenças que precisam desse tipo de medicamento para serem tratadas não se enquadram nesse grupo. “Quero dizer que muitos acreditam que existe um desconforto absurdo de viver as situações de tristeza”, esclarece.
O antropólogo ressalta que não há um manual de instruções para ser feliz. “Essa busca surge do permanente confronto entre o desejo, o ideal de felicidade, e a realidade possível. Mais do que uma resposta, quem procura uma receita única para a felicidade quer ignorar as próprias angústias. Quando indago a qualquer pessoa o que falta a ela para ser mais feliz, a questão aciona uma reflexão sobre insatisfações e não felicidade. E revela, ao mesmo tempo, quais são os ideais e as frustrações decorrentes disso”, conta.
Marcelo enfatiza os paradoxos existentes na discussão entre o ideal e o possível. “Quando pergunto sobre felicidade e relacionamentos afetivos e sexuais, as pessoas me falam: quero casar. Ao mesmo tempo em que procuram cumplicidade na vida a dois, esses mesmos entrevistados dizem valorizar a liberdade e o espaço de cada um. É muito interessante notar como conciliar esses ideais, alguns do amor romântico e outros mais individualistas e hedonistas, já é, por si só, um grande desafio para os relacionamentos”, afirma.
As questões com o próprio corpo também aparecem quando Marcelo pergunta a homens e mulheres o que lhes falta para serem felizes. A insatisfação com a aparência física é algo bastante comum. “Queria me sentir livre para ir à praia, tirar a roupa, fazer sexo com a luz acesa, ter intimidade sem vergonha do meu corpo. Eu seria mais feliz se meu corpo, cabelo, peito ou nariz fossem como os de outras pessoas”, dizem eles. O antropólogo aproveita para fazer uma observação. “Os corpos que estão hoje na nossa sociedade e cultura, aparentemente mais livres, menos contidos, mais expostos, estão sob uma nova moral que ganhou força, que a gente chama de moral da boa forma. É uma moral que estabelece normas rígidas para a exposição do corpo, de acordo com padrões imitáveis de beleza e forma física. Como lidar com essas questões e ser feliz diante disso?”, pondera.
Voltando a tratar especificamente do período de pandemia, o antropólogo convida a pensar na felicidade e na infelicidade presentes no momento em que boa parte da humanidade teme o coronavírus. “Para refletir sobre as emoções que emergem no atual contexto, alguns dados da pesquisa que que realizei até aqui sobre o tema felicidade, mostraram-se bons para pensar o que muitos estão vivendo e sentindo em meio à pandemia. Muitas pessoas relatam enorme dificuldade de encontrar felicidade nas atividades mais rotineiras. O comum é dar ênfase nas situações extraordinárias como promotoras de mais felicidade, fazendo com que a rotina seja algo que não atrai tanto nem causa sensação de bem-estar”, conta. “Outro ponto que aparece muito quando se fala de felicidade é a valorização das atividades de lazer e tempo livre em contraposição às atividades de trabalho e obrigações diárias. Hoje, estando mais em casa, as obrigações diárias sobressaem e as atividades de tempo livre tiveram que ser ressignificadas. Outra tendência é tratar a felicidade como estado de satisfação mais pleno a ser alcançado no futuro, ou seja, a pessoa tem muitas coisas nas quais investe hoje para pensar em uma felicidade no futuro”, descreve.
Por outro lado, em momentos de adversidade, a busca de um novo sentido para a vida se intensifica. “É comum ver pessoas mudarem padrões de comportamento e planos frente às dificuldades ou uma mudança brusca de perspectiva, como uma doença grave e o risco de morte, duas características da Covid-19”, garante Marcelo.
E quando se trata de felicidade e pandemia? Será que é possível juntar as duas coisas? Com a palavra, Marcelo Ramos: “O filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), no livro ‘Aforismos para a sabedoria da vida’, fala que a busca humana pela felicidade se dá em um eterno pêndulo entre o tédio, que é essa sensação de monotonia, e a dor, gerada pelas frustrações que acabam acontecendo nessa procura permanente por novidades. É interessante pensar nisso para ver como o isolamento social traz uma rotina mais tediosa para alguns e de muitos afazeres. É bem difícil perceber a felicidade nesse momento. Quando estamos nessa situação, somos chamados a uma reflexão. E é uma reflexão no sentido de ter atenção ao que estamos vivendo, aceitar as coisas ativamente e buscar um sentido nisso tudo. A felicidade não é contínua, as emoções negativas fazem parte do processo. E essa liberdade interior de buscar um sentido e ir em frente, mesmo com as emoções negativas, é condição para o que chamamos de felicidade possível”.
Há uma corrente de pensamento que aposta em um mundo diferente após o fim da ameaça do coronavírus. “Iremos usar mais a internet do que usamos hoje? Para comprar, trabalhar, estudar e nos relacionar? Buscaremos mais a convivência com as pessoas, já que perdemos isso nesse momento? Ficaremos mais em casa do que antes? Ou, como efeito rebote das privações do momento, viveremos com mais intensidade coisas que, muitas vezes, a gente negligenciava em nosso dia a dia? Valorizaremos mais a vida, a saúde, a paz, o equilíbrio, as amizades, o amor? Refletiremos mais sobre os impactos dos nossos comportamentos no coletivo? Sobre o quanto são sustentáveis? Sobre a relação que a gente estabelece com a natureza? A cooperação sobressairá em oposição ao individualismo e à competição?”, questiona Marcelo. “O sociólogo Anthony Giddens, no livro ‘As consequências da modernidade’, nos dá uma pista sobre a reflexão diante das mudanças”, afirma.
De acordo com Giddens, é provável que as mudanças que promovem desencaixes, ou seja, interferem radicalmente em nossa rotina, quando produzirem reencaixe, isto é, a situação passar e a vida ficar mais normalizada, não rompam completamente com as tradições. “Aquilo que a gente abraçava como projeto de felicidade, nossos valores, estilos de vida, nossa visão de mundo, enfim, são coisas muito difíceis de desinternalizar para mudar bruscamente. Mas não deixamos de estar em um momento no qual somos chamados à reflexão, no qual a possibilidade de refletir, aceitar ativamente essa situação e se ancorar em uma liberdade interna, que é a sua última liberdade diante de tantas outras perdidas nesse momento”, avalia Marcelo. “Devemos seguir em frente, apesar disso. E aprender que, apesar das exigências de ser feliz hoje nos tornarem muito frustrados com aquilo que não conseguimos, devemos trabalhar com o que é possível, entender que os sentimentos negativos fazem parte do processo e que, mesmo com eles, é possível alcançar as felicidades no presente e não apenas no futuro, como a gente tende a colocar”, conclui.
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