*Por Brunna Condini
A atriz Sara Antunes escreveu, produziu e atua, online, na história de Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dora, que tinha 23 anos quando entrou na luta armada contra a ditadura militar. Foi presa, torturada, exilada e suicidou-se na Alemanha em 1976, aos 31 anos. De posse de um material histórico inédito, confiado pelos familiares à atriz, Sara traça um percurso de registro de memória e afirmação das trajetórias femininas na política. “Não pretendo mitificar heróis, também não se trata de uma homenagem, mas acho importante nos debruçarmos sobre a história do país do ponto de vista de quem participou dela. Principalmente, as mulheres”, afirma Sara.
“A Dora foi uma grande mulher brasileira, estudante de medicina de pensamento brilhante, alta sensibilidade e com um senso de justiça social imenso, colocou o corpo e a vida para lutar por um Brasil que até hoje não chegou! Lutou contra a ditadura, foi barbaramente torturada e ainda assim seguiu pesquisando saúde mental e o corpo da mulher. Em um momento de tanto retrocesso e negacionismo poder colocar as palavras e os desejos dessa mulher na roda através do meu corpo é também reavivar sua luta”, conclui Sara.
Para além da ficção, a vida da atriz paulista também se entrelaça à peça que é estruturada com a mistura de trechos de cartas, imagens de arquivos e relatos autobiográficos da atriz. Angela Bicalho, mãe de Sara, faz uma participação especial traçando um paralelo da vida de Dora com a trajetória familiar de Sara. Dora, mineira como os pais de Sara, nasceu no mesmo ano que sua mãe e se envolveu na resistência à ditadura tendo sido presa e exilada, assim também aconteceu com o pai da Sara, Inácio Bueno. “Meu pai Inácio de Loyola Bueno era de 1926 e foi padre durante 30 anos . Quando estava em Volta Redonda, município do estado do Rio de Janeiro, meu pai (então Padre Bueno) lutou pelas causas operárias, não se calou quando presenciou injustiças, prisões arbitrárias, torturas. Por isso foi preso duas vezes e a ditadura pediu o afastamento dele. Meu pai foi expulso do Brasil. Ficou oito anos na França quando largou a batina, se formou psicanalista além de estudar novos sistemas educacionais na Tanzânia”, revela.
No trabalho a atriz utilizou imagens de arquivo mais pessoais e documentos oficiais, como áudios de rádio, vídeos, fotos, recortes de jornais e revistas, alternando momentos de objetividade com experimentação, apoiados por elementos audiovisuais. Tudo feito ao vivo, transmitido da casa da atriz, em São Paulo. “Ao reconstruirmos a subjetividade de períodos traumáticos que deixaram marcas profundas na história deste país, confrontamos a política da amnésia com que se pretende, reiteradamente, apagar um passado incômodo para criar campos de ignorância histórica. ‘Dora’ é um projeto importante de reparação histórica, de pretensão multidisciplinar em que as lutas femininas do Brasil estão em foco”, explica Sara.
Até hoje mulheres são desrespeitadas e sofrem vários tipos de violências em suas trajetórias, inclusive políticas. Como isso está presente no espetáculo? “Dora foi amplamente retaliada não só por ser guerrilheira mas , por ser mulher, uma mulher brilhante que pensava o Brasil. Dora foi grande amiga de Dilma Rousseff. Além de mineiras , dividiram apartamento, eram da mesma organização politica, a VAR Palmares. O golpe sofrido por Dilma, atingiu as mulheres de maneira profunda, ela como Dora também estava sendo violentada por ser mulher. O golpe que sofremos foi um golpe do patriarcado. Parece que avançamos, mas patinamos e voltamos às mesmas questões. A peça trama um conversa íntima de mulheres através de palavras reais de Dora, de Dona Clélia, sua mãe, Angela, minha mãe e Dilma”.
Vida na arte
Sara Antunes iniciou a pesquisa em 2016 quando foi convidada pelo diretor José Barahona a participar como atriz do longa documentário ‘Alma Clandestina’. Desde que tomou conhecimento da história de Dora vem gestando a ideia de um espetáculo, que teria sua estreia em 2020. Com a pandemia, o projeto ganhou novas possibilidades e nasceu o curta ‘De Dora por Sara’, filmado e dirigido em parceria com Henrique Landulfo, que estreou na mostra de Tiradentes, n início do ano. Para Sara, trata-se de um projeto transmídia. “Ele não foi pensando assim, mas se transformou pela necessidade do momento. Nasceu como cinema, será apresentado como teatro no formato online e futuramente, quando for possível, pretendo levar para o teatro presencial. São obras distintas, mas complementares”, detalha a artista, sobre o projeto que é a continuação de uma pesquisa que ela vem fazendo sobre história e representação das mulheres no Brasil como nas criações: ‘Hysteria’, ‘Hygiene’, ‘Negrinha’, ‘Guerrilheiras, ou Para a Terra Não há Desaparecidos’ e ‘Leopoldina, Independência e Morte’: “É uma oportunidade imensa de registrarmos outro olhar para mulheres da história brasileira e promover um encontro que nos foi negado e segue sendo ”.
Ela revela que nunca pensou em ser outra coisa senão artista, desde que se entende por gente, vivendo a arte até aqui na sua vida: “Eu criança tive uma conversa séria (risos ) com meus pais: disse que queria ser atriz. Eles levaram a sério. Minha mãe buscou o Ilo Krugli do Teatro Vento forte em São Paulo, que como ela tinha trabalhado com a doutora Nise da Silveira e comecei ali. Sou uma pessoa obssessiva e dedicada. Meus pais me apoiaram desde sempre. Depois fiz Filosofia e também Escola de Arte Dramática na USP. Aos 18 anos, co-criei a peça ‘Hysteria’ que foi um grande sucesso. Apresentamos pelo Brasil inteiro, temporadas na França, na Inglaterra, Portugal. Então desde os 18 me sustento como atriz. São mais de duas décadas de vida profissional. Nunca pensei em ser outra coisa. Há 10 anos comecei no cinema e mais recentemente na televisão com as séries ‘Segunda Chamada’ e ‘Todas As Mulheres do Mundo’. A coisa que mais amo na vida é atuar!”.
Sara foi casada com Vinicius de Oliveira, que ficou conhecido como ator mirim do premiado ‘Central do Brasil’. Com ele, teve Benjamin, 8 anos, e Antonio, 6, e conta que divide a criação dos filhos com o ator, por igual. “Sempre trabalhei muito. Com três meses Benjamim estava num set, com um mês Antônio estava nas salas de ensaio. O peso é muito maior para as mulheres, percebi isso depois que virei mãe. A maternidade evidencia todas as estruturas machistas e por isso fiz questão de compartilhar os cuidados com as crianças. E o Vinicius sempre assumiu com muita dedicação e amor a responsabilidade de ser pai, o que deveria ser normal, certo? “.
Como mulher, artista, criadora, o que não abre mão na criação dos meninos? “Do afeto. Estimulo a expressão do afeto, da sensibilidade e também das responsabilidades. São meninos carinhosos e eu tenho muito orgulho. Acho que estamos aprendendo a educar. Espero que eles cresçam com escuta, com respeito!”
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