*por Vítor Antunes
Falas sobre uma maternidade pouco romântica e desglamourizada. É sob esse prisma que se apoia Samara Felippo, atriz que, junto com Carolinie Figueiredo, está em cartaz com “Mulheres que Nascem com os Filhos“. Na peça, a primeira de autoria de Samara, ela promove um olhar disruptivo ao fato de ser mãe: “Falo disso há mais de cinco anos. Tive um post meu que bombou em abril de 2019 numa tarde em que cortei a minha franja e passei analisar coisas da vida. Dentre as quais, as que amava e não curtia tanto. Diante disso declarei que, apesar de amar minhas filhas não amava tanto ser mãe. Foi a primeira vez que soltei esse questionamento”. Segundo Samara, ela não sabia que esse sentimento desabafado poderia gerar identificação em tantas mães. Ainda de acordo com ela, há mulheres que passam por aquilo que chama de “maternidade compulsória“: “Será que, realmente, a Samara de 30 anos queria ser mãe? Será que algumas mulheres não viram na maternidade algo que nasceu de uma imposição social para dar um neto para a mãe ou por algo vindo do parceiro? A mulher é a todo tempo julgada. E eu, inclusive, falo de um lugar de muita solidão, já que sou uma mãe solo – ainda que muito privilegiada. Por mais que haja pessoas ao meu redor, há muita solidão e cansaço, não só advindo das demandas físicas, mas também das emocionais”.
“Mulheres que Nascem com os Filhos” é uma peça que marca não apenas a versatilidade de Samara – que exerce a função de atriz e de roteirista – mas também o seu encontro profissional com a atriz e amiga Carolinie Figueiredo. Mas o investimento de Samara não deve ficar restrito a este trabalho. Ela também está escreevendo outra peça, na qual brinca com o fato de chamarem-na de “aquela atriz“. Inclusive fantasiou-se assim em um carnaval. Esta montagem será um monólogo. “Trata-se de um deboche, um sarcasmo com o fato de nem sempre lembrarem meu nome e tratarem-me assim – coisa que, aliás, nunca me incomodou ou magoou. Neste novo projeto quero falar, também, de assuntos importantes – desde alienação parental, à violência doméstica e coisas que me incomodam”.
Desde 2007 sem fazer novelas inteiras na Globo, sua última foi “Sete Pecados”, e após atuar em algumas novelas da Record, Samara diz que há muita cobrança do público por seu retorno à telinha, bem como aponta o preconceito que há àqueles que fazem novelas na emissora religiosa. “Minha última novela inteira na Globo já tem 16 anos, logo depois fiz “Dança dos Famosos” e engravidei. Quando retornei, fiz Record. “[Nós que fazemos novela na emissora] Somos colocados num limbo dos atores vistos como fracassados por haverem ido para lá. Como se não pudéssemos trabalhar em outro canal ou dedicar-nos a outras atividades como o teatro.
A participação mais recente de Samara na emissora líder de audiência foi em “Vai na Fé“, na qual deu vida a uma presidiária. “Foi um boom, bonito de ver, depois de ter ficado anos sem trabalhar. E esta novela revelou uma mulher diferente, com cabelo branco, com olheira, sem maquiagem e fazendo uma cena incrível, um presente da Rosane Svartman.
As pessoas pedem minha volta à TV, mas sigo esperando convite. Enquanto isso, há uma vida correndo – Samara Felippo
MÃE CORAGEM, MÃE SEM GLAMOUR
Desde sempre é destinado à mulher, e não facultado a ela, a missão de maternar. Ainda criança, elas ganham bonecas bebês, ou são instruídas a serem princesas. Quanto aos homens, nunca recebem crianças-boneco para brincar de cuidar. A contrário, são julgados quando fazem isso. Inclusive, esse estímulo ao cuidado de outro não é algo que componha o ideário masculino da primeira infância. A maternidade é algo romantizado a modo de ser quase impraticável assumir algo de diferente do belo.
Mas, transgressora, Samara Felippo está decidida a reconhecer que ainda que haja beleza, há também, muita dor, renúncia e exaustão: “Escrevi esta montagem como forma de romper com a romantização, e contra o que pregam de que que só há beleza na maternidade, e reconhecem-na apenas como algo sublime, maravilhoso. Há quem diga, inclusive, que só é possível conhecer o amor verdadeiro quando se tem filho. E as mulheres que não têm filhos? Não conhecem o amor? E as que abortaram ou que tentaram ter filhos e não puderam, e ainda as que decidiram não os ter? A mulher pode amar verdadeiramente o que ela escolher e isso recai numa discussão de várias camadas”.
E ela prossegue: “A gente ganha o carrinho da boneca, o nenenzinho, a cozinha, a vassourinha para brincar de cuidar da casa. Os meninos não recebem essa demanda. Eles não são ensinados a exercer a paternidade nem nas brincadeiras. Nós, a contrário, temos que estar cuidando, limpando… A nós cabe essa carga e culpa de tal modo que, mesmo não tendo filho, a gente acaba se auto intitulando mãe-de-alguma-coisa. A eles, o estímulo a desbravar o mundo, a serem médicos, astronautas. A nós, a ser miss ou a servir ao machismo estrutural ou a cuidar de criança e ser dona de casa”.
Dizer estar cansada ou não gostar da função [de maternar] não invalida a minha dedicação, a minha sensação de porto seguro [que ser mãe me dá]. Uma mulher dizer que não é fã da maternidade não a invalida como mãe. Creio que deva ser permitido dizer que a sobregacarga é pesada. Tire seus peso das costas, mulher! – Samara Felippo
MATERNIDADE INTERRACIAL
A primeira filha de Samara nasceu em 2009, Alícia. E a outra é Lara, nascida em 2013. Ambas filhas dela com o jogador de basquete Leandrinho. E as duas, meninas negras. Samara, por ser branca relata que por estar diante de duas meninas pretas, acabou, também sendo apresentada ao racismo. “Ser mãe de meninas negras trouxe a mim muita coisa, incluídas aí as cobranças e a presença do preconceito. Foi um choque cruel e triste do qual me dei conta, especialmente por estar dentro da bolha da branquitude e reconhecer o quanto ela é racista. Demorei para reconhecer meus privilégios e minha ficha só caiu no que diz respeito ao proconceito estrutural quando a minha filha pediu para alisar os cabelos. Fora isso, o fato de ser de uma família da Barra da Tijuca, de classe média, num bairro majoritariamente branco, assim como a escola das meninas”. E ela prossegue dizendo que o mundo que as cercava também não abria espaço para a negritude: “não havia boneca de cabelo crespo nem personagem preto nos livros. Nem touca de natação para elas, nem band-aid. Essa ausência nos motivou a criar o canal “Muito Além dos Cachos“, no YouTube, onde entravistamos pessoas pretas em espaços de poder, ou relevantes na sociedade, como Taís Araújo e Cris Vianna”
Samara diz ter uma relação muito aberta e amigável com as filhas. “Conversamos sobre tudo e de uma forma muito aberta. Eu fui vendo gradativamente até onde ir, a maturidade delas e quais assuntos tratar, sempre de forma muito franca com muito diálogo e jogo aberto. Lara pergunta coisas que eu jamais perguntaria na idade dela aos 10 anos, e hoje é impossível ter controle das redes sociais. Mas compreendo que tudo é por etapas e que assim vamos solucionando as dúvidas, com transparência, e com elas descobrindo as coisas antes que o façam através do Google”.
Para Samara, o letramento racial é algo que é muito necessário hoje, já que o racismo estrutural se impõe a todo tempo, e especialmente nas mulheres sobre os cabelos delas: “O racismo precisa ser nomeado para as crianças e para que elas saibam que isso existe. Mesmo para a Lara que é mais clara, e portanto, privilegiada por conta do colorismo. Eu não admito que tratem-na ‘moreninha’, por exemplo. E eu não entendia quando diziam que o cabelo delas era ruim”. Samara aponta que a sociedade vê nos cabelos uma forma de distinção social. “No filme “A Princesa e o Sapo“, a Tiana sonha que está rica. E quando isso acontece ela está com um vestido lindo e um cabelo chanel, alisado. Trata-se de um signo muito forte”.
Eu lembro dos desenhos da minha época e um deles era Luluzinha e Bolinha – já com segregação. A partir do momento em que a sociedade não é capaz de usar o mesmo banheiro, é sinal de que falimos como coletivo – Samara Felippo
DESSA VIDA DESSA ARTE
No dia 6, data em que Samara completa 45 anos, coincidiu com a da estreia da peça “Mulheres que Nascem com os Filhos“. A montagem fica até o dia 19/11, no Morumbi Shopping, em São Paulo. No mesmo dia, houve uma festa, com ingressos à venda, chamada “Apocalipse Tropical“, da qual ela é produtora e sócia. Falar de 45 anos, impele em falar de etarismo: “Aos 45 a mulher não faz mais papéis sexy. Veja, não colocam nem mais a Cláudia Ohana, que é uma mulher super sexy, nesse lugar. Os cabelos brancos em mim são uma tortura para fazê-los confortáveis e deixar crescer. Há muita pressão sobre nós se decidirmos colocar uma roupa curta. As mulheres precisam se sentir sensuais na maturidade”.
A galera da minha geração me viu na TV e ao haver esse hiato meu das telas, viu a mim com ruga, com mancha no rosto e cabelos brancos. Se bobear, acabamos caindo no limbo do botox e da harmonização facial e não vou ser hipócrita em não reconhecer que vou acabar sentindo vontade de fazer em algum momento – Samara Felippo
Uma das primeiras aparições de Samara na TV foi no programa Alberto José, na extinta TV Corcovado. Depois, apareceu na abertura da novela “74.5 – Uma Onda no Ar“, da Manchete, que inclusive, falamos sobre, aqui no site. Porém, Samara surge, efetivamente, participando do quadro “Estrela por um dia“, do “Domingão do Faustão“. Perguntamos se ela sente falta de programas e/ou quadros de revelação de talentos e ela diz não ter uma opinião definitiva. “É muito ambíguo. Ao mesmo tempo em que fui muito feliz fazendo, também houve uma exposição muito grande. Não sei se hoje haveria uma exposição excessiva, cancelamento ou humilhação, de quem não se desse tão bem. É algo muito perigoso por que a Internet abre pra uma possibilidade que me atemoriza”.
Outro trabalho que ressaltamos a importância foi aquele vivido por Samara em “Malhação”, no qual sua personagem, Érica, é infectada pelo vírus do HIV, sendo ela uma mulher branca, hétero, e de classe média, portanto fora do grupo de risco até então estabelecido. “Eu não tinha noção da importância, da abrangência. Sabia que era importante, mas reconheço que tudo avançou muito no que tange ao assunto HIV. Porém, ainda acho que somos muito carentes de educação sexual nas escolas. Mulheres periféricas não recebem esta educação e em muitas das vezes há uma romantização do sexo e as mulheres aceitam o parceiro [sem restrições]. Isso é muito cruel”, finaliza.
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