Rodrigo França faz peça sobre racismo, critica ausência de afetos negros nas novelas e academicismo no carnaval


Ator, diretor e ativista adapta para o teatro o livro de Manoel Soares e traz à cena a importância do debate sobre o racismo dentro do ambiente educacional. Rodrigo fala sobre a relevância da cena artística preta após o movimento de vanguarda Teatro Experimental do Negro e aponta que os movimentos afro afirmativos hoje prosseguem ativos e potentes. O artista critica a escalada do academicismo embranquecido no carnaval, bem como a pouca equanimidade de Leis de Incentivo para projetos voltados à questão preta

por Vítor Antunes

O teatro enquanto espaço de debate. O ator enquanto agente social. É assim que Rodrigo França compreende a arte, e especialmente a arte negra. Dirigindo e adaptando uma peça baseada na obra de Manoel Soares, Rodrigo traz a tona um forte discurso antirracista, especialmente presentes na montagem em cartaz no SESC Copacabana, até o dia 20. A peça se propõe a discutir como nasce um discurso e uma atitude racista, no espaço escolar, além de reflexões sobre racismo estrutural, posto que a prática do preconceito é enxergada entre os personagens brancos como sendo “uma brincadeira de criança”. No elenco estão Alex Nader, Reinaldo Junior, Stella Maria Rodrigues e Mery Delmond. Ou seja, a montagem se põe a discutir os limites da branquitude – conceito que explora os privilégios que uma pessoa branca tem, especialmente por conta de sua cor. Rodrigo também fala da extensão deste privilégio no carnaval, na educação e na televisão.

Outra pauta discutida por França diz respeito à presença negra e LGBT na dramaturgia e na teledramaturgia. Os afetos pretos e homossexuais costumam ser escanteados quando das encenações. Para Rodrigo, a teledramaturgia, “sob algum aspecto, reproduz esse comportamento colonial”, diz, quando observa a desumanização e ausência de afetividade dessas pessoas em projetos dramatúrgicos. Ante as discussões sociais e antropológicas que os realities suscitam, Rodrigo não crê haver um problema na ocasional superficialidade dos embates nas redes sociais. “Acho perigoso quando se determina o que pode ser discutido ou não”.

Rodrigo França. Potência discursiva na militância negra (Foto: Magali Moraes)

É A ARTE NEGRA QUE DESFILA

Um dos sambas clássicos da Estácio de Sá – na época em que ainda se chamava Unidos de São Carlos – exalta a pretitude quando diz que “a arte negra desfila. Com seus encantos e magia”. Rodrigo França, aproveitando-se do mesmo expediente, coloca as artes negras em desfile, e acadêmico que é, debate todo o assunto que lhe é proposto, desde o embranquecimento e o academicismo do carnaval carioca – assunto que cada vez mais ganha espaço  na cena cultural – como a superficialidade, ou não, de discussões nas redes sociais oriundas de disputas discursivas nos realities, sobre conceitos sociais e/ou antropológicos como a “branquitude”.

Aliás, em se tratando da branquitude – que a contrário do que parece não é o oposto de negritude, mas trata-se dos privilégios sociais que os brancos têm apenas por serem brancos – é que Rodrigo dirigiu e adaptou “Para o Meu Amigo Branco“, peça baseada no livro do jornalista e apresentador Manoel Soares. Para o autor da montagem dramatúrgica, “fala-se muito pouco da branquitude fora dos livros e da academia. O teatro negro é forte mas fala da gente pra gente. Ao adaptar e dirigir, proponho falar que foi a branquitude que historicamente inventou o racismo, que é de uma cultura ocidental, europeia. Passou da hora de se responsabilizar as pessoas brancas em relação à pauta sobre racismo e luta antirracista, e a oportunidade de falar artisticamente dessa função me estimulou a adaptar e dirigir esse espetáculo, que se porta como um espelho da sociedade”, frisa.

Rodrigo explica-nos que a narrativa da peça é constituída de uma sala de aula. Durante uma reunião pedagógica há um pai inquieto em razão de a filha ter sido alvo de ofensas racistas e esta não é a pauta primordial da reunião da comunidade educacional. Os professores não estão ali para discutir ou responsabilizar o aluno e sua família por uma agressão racista à personagem. “Há pessoas brancas que se colocam como aliadas e caem em contradição quando diante de uma situação racista. E neste caso não estamos falando de gente com quem não há diálogo, que não querem ouvir ou sinalizam que a pauta antirracista é mimimi, mas àqueles que dizem estar do nosso lado. Aqueles que dizem ser antirracistas por ter amigos negros ou por ser relacionarem afetivamente com pessoas pretas ou ainda aqueles que desconsideram o debate”.

A função dos negros é criar mecanismos de proteção e potencializar sua existência e possibilidade de sobreviver. A pauta antirracista é sobre vida – Rodrigo França

Rodrigo França e o elenco de “Para o meu amigo branco”. Um debate contumaz sobre racismo no âmbito escolar (Foto: Gabriella Moreira)

Como a peça se orienta nesta seara, do racismo no contexto das escolas, Rodrigo revisita a própria história. Diz ele que “estudava num colégio religioso e não tínhamos nome. Éramos todos “irmãos” . Tudo o que faziam de errado era uma responsabilidade coletiva. Há uma máxima nas Ciências Sociais que aponta que se uma sociedade é racista as suas instituições também o são. Ou seja, a escola também não está preparada para este debate, salvo alguns professores ou aqueles inseridos numa luta individual. Não há um projeto público ou político pedagógico sobre o tema, ainda que hajam leis que proponham uma discussão antirracista ou sobre cultura e história afro-brasileira e africana nas escolas. Importante destacar que 56% da população se declara negra”. A Lei a qual Rodrigo se refere é a 10.639/03, que obriga as escolas de Ensino Fundamental e Médio a ensinarem sobre História e Cultura Afro-Brasileira. No entanto essa obrigatoriedade nunca foi devidamente cumprida. Segundo publicado na Agência Brasil em Abril deste ano, uma pesquisa que mostrava  a aplicabilidade da Lei 10.639/03 no País, revelou que nas Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, 42% dos órgãos educacionais urbanos têm dificuldade em aplicar o ensino nos currículos e nos projetos. 33% disse não ter informações suficientes a respeito desta temática.

Eu acho que o teatro não tem compromisso nem condições de mudar nada, mas de fazer refletir – Rodrigo França

O diretor prossegue dizendo que “Quem vier ao teatro estará nesta reunião escolar. O público estará no cenário e na encenação, vai ouvir a inquietação desse pai. É importante que a plateia branca veja a naturalização do seu comportamento, ao passo que a plateia preta se aperceba de seu cansaço, que geralmente se retroalimenta, para não deixar passar em branco. E deixar passar a pauta do racismo é algo inegociável”. A peça “Para o meu amigo branco” fica em cartaz no SESC Copacabana até o dia 20/08.

Entre 1944 e 1961, a cena teatral deparou-se com o Teatro Experimental do Negro (TEN), movimento de vanguarda liderado por Abdias do Nascimento (1914-2011), onde todos os atores eram negros, e a questão afirmativa se fazia presente. Perguntamos a Rodrigo se faz falta um movimento semelhante a este ou algo que faça ressurgir um teatro afro-brasileiro. “Não se pode dizer que o teatro preto ressurgirá por que ele nunca morreu. O que diferencio é a existência de um teatro preto e de um teatro hegemônico. O teatro negro não está esvaziado, tem púbico, sempre existiu, enquanto o hegemônico está brigando para ter público. Creio ser errado restringir o teatro como sendo apenas do Centro e da Zona Sul. Ele também está no metrô, na Baixada, no trem. O maior movimento cultural do Brasil hoje é o Slam –  batalha de rimas ou competição de poesia falada – na qual mulheres da perfiferia discutem o momento. O legado de Abdias, Lea Garcia e Ruth de Souza (1921-2019), pioneiros do TEN, está vivo. A meu ver, falta apenas uma devida discussão e divisão mais equânime no que diz respeito às Leis de Incentivo”.

Rodrigo França. Ator, diretor e acadêmico tem falas firmes sobre a questão negra no Brasil (Foto: Magali Moraes)

REALITIES, PLURALIDADES, AFETOS  

O tempo embranqueceu Mário de Andrade  (1893-1945) e sublimou sua homossexualidade. Ainda que branco, João do Rio (1881-1921) também era homossexual e disso pouco é falado. Uma das primeiras obras a tratar sobre a questão LGBT na literatura brasileira –  e talvez na  ocidental –  foi “O Bom Crioulo“, de Adolfo Caminha (1867-1897). Neste último, além da homossexualidade, um romance inter-racial foi interrompido por uma tragédia. Em “Vai na Fé“, o personagem de Jean Paulo Campos, Yuri, iniciou a novela com um rapaz e concluiu-a com uma mulher. O que, incialmente seria o primeiro casal preto homoafetivo das novelas, foi desfeito. Por qual razão a afetuosidade preta – e por que não dizer preta e homoafetiva – é tão escanteada pela literatura e pela dramaturgia? Para Rodrigo, isso se deve ao fato de que o racismo “desumaniza as pessoas. Uma pessoa desumanizada não pode ter civilidade, afeto. Ela está num plano abaixo ao ponto de vista do racista. Quando ele compara um homem preto a um macaco, ele põe o homem no lugar do primitivismo, como se o homem (branco) houvesse evoluído e o símio, não. Eu, como dramaturgo e roteirista, busco novas narrativas. A teledramaturgia, sob algum aspecto, reproduz esse comportamento colonial e coloca personagens pretos sem família, sem troca afetiva, ou reproduzindo ódio, à margem da sociedade”.

Quando a novela não coloca pessoas pretas se amando ou dentro de um recorte civilizado, reitera a prática de uma escrita racista – Rodrigo França

Quando os reality-shows vão ao ar, assuntos sérios e temas sociais e conceitos antropológicos são discutidos fartamente nas redes sociais. Para Rodrigo, que participou do BBB em 2019, é importante que se discuta tais assuntos, mesmo que na superficialidade do X/Twitter ou é necessário que haja maior aprofundamento? “Acho que o entretenimento vai reproduzir o que a sociedade é. Acho perigoso quando se determina o que pode ser discutido ou não. Creio que deva existir um compromisso de quem esta por trás da mídia, repensar o que escreve o que dirige ou executa. A arte e a mídia tem um papel fundamental na construção do social e do Brasil”

Ainda que seja acadêmico, Rodrigo vê com desconfiança o avanço do embranquecimento e do academicismo no carnaval carioca, o que para ele é uma apropriação cultural. “É perigoso discutir apropriação cultural na folia carioca. Quando se tira do autor, do elaborador daquela cultura – que é preto – e há lucro sem retorno para ele, revela-se mais uma vez o fluxo do que  a sociedade brasileira é e da irresponsabilidade que nos faz pensar no quão errado é dizer que o racismo é sempre do outro. São pessoas autointituladas progressistas, revolucionárias, aliados apaixonados pelo samba, mas na hora do lucro do convite ao protagonismo, para assinar um desfile ou para ser rainha da bateria, não comtemplam as pessoas pretas e comunitárias”.

Um dos trechos da obra de Joao do Rio diz que as ruas têm alma. A alma preta das ruas foi ouvida? Rodrigo diz que não. “Essas pessoas estão gritando, berrando. Elas não precisam de voz, elas precisam ser ouvidas. Tenho uma reflexão que é a de que o maior erro de conceito é falar que a humanidade errou. Esses que erraram têm cor, raça, classe e orientação sexual. E esses que erram não são os indígenas, ou africanos nem seus descendentes”, finaliza.

Rodrigo França (Foto: Magali Moraes)