Gustavo Klein vive Patrício Bisso no palco. E, única novela do polêmico ator, alvo da censura, estará no Globoplay


O ator revive Patrício Bisso, ator ícone da cena LGBT nos anos 1980 no qual viveu a personagem Olga del Volga. Sua criação fez tanto sucesso que acabou indo parar na novela “Um Sonho a Mais”, que trazia personagens femininos vividos por homens, além de homens disfarçados de mulher, todos vividos por Ney Latorraca e Marco Nanini. Bisso interpretava uma personagem feminina. Tamanha ruptura de gêneros, fez com que “Um Sonho a Mais” não fizesse grande sucesso, tenha sido encurtada, além de ter recebido duras críticas dos telespectadores e intervenções da Censura que pedia cortes naquilo que ela enxergava como “exaltação à homossexualidade e à transsexualidade”. Mantida na íntegra, a contrário de tramas como “Chega Mais” e “Estúpido Cupido”, “Um Sonho a Mais” possibilitará ao telespectador mais jovem conhecer, através do Projeto Resgate do Globoplay, o trabalho de Bisso vivido por ele mesmo. Ainda que possa conhecê-lo, no teatro, através do talento de Gustavo Klein

*por Vítor Antunes

Definitivamente, para o público noveleiro, um sonho a mais não faz mal! “Um Sonho a Mais“, problemática novela de 1985, foi mantida na íntegra e será disponibilizada no Globoplay no Projeto Resgate. Segundo a Globo, a data da volta ainda está definida, porém, ante ao retorno da trama de Lauro César Muniz e Daniel Más (1944-1989), será a chance de o público noveleiro – e dos fãs de teatro mais nostálgicos poderem conhecer o trabalho de Patrício Bisso (1957-2019), famoso ator argentino e ícone LGBT dos anos 1980 e 1990.No folhetim oitentista, Patrício viveu sua personagem mais famosa, Olga del Volga, e que esteve, igualmente em várias montagens teatrais. Hoje ela é revisitada pelo ator Gustavo Klein em “Quem Tem Medo de Olga del Volga?“, que  está sendo encenada num espaço alternativo, o da Turma OK – espaço LGBT em atividade mais antigo do mundo. A peça tem direção de Gilberto Gawronski, texto de Tony Góes e figurinos de Claudio Tovar. Gustavo, inclusive, disse não ter tido acesso às cenas de Patrício na novela “Um Sonho a Mais“, ja que há pouco material sobre ela na Internet. A trama, que ano que vem completa 40 anos, nunca foi reprisada.

Um Sonho a Mais” foi cercada de polêmicas que extrapolaram a sua narrativa. Inspirada em “Volpone” , peça de Ben Johnson, a novela encontrou forte resistência tanto da ditadura, que ainda que estivesse em seus extertores mantinha uma Censura ainda vigente, como do público mais reacionário. O Site Heloisa Tolipan teve acesso a cartas que telespectadores enviaram à Censura, à época, pedindo que a trama fosse tirada ao ar. E o tom do público revoltado não era nada ameno. Uma delas está abaixo apresentada, tal como foi escrita:

Essa [novela] desgraçada e devastadora dos bons costumes é um desrespeito aos brasileiros! Prostitutas e homoxessuais [sic], num festival de pornochanchadas, violência, tóxico e falta de educação, violam nossas famílias. Nossas mulheres, dotadas mentalmente igual a crianças, absorvem todas essas imundícies, que são transmitidas aos maridos e aos filhos, causando-os distúrbios psicológicos (…).  Esses desocupados novelistas ficam o ano inteiro preparando mil e uma besteiras, para encher as cabeças dessas pobres mulheres, como em “Um Sonho a Mais”, onde dois ou mais safados homossexuais, beijam-se, apalpam-se e casam-se. Tudo isso à frente das indefesas crianças – Geraldo Francisco Neves – Sub -Tenente Reformado Polícia Militar de Minas Gerais, 1985.

O casamento  ao qual o telespectador se refere é o de Anabela Freire (Ney Latorraca) e Pedro Ernesto (Carlos Kroeber [1934-1999]). Em resposta ao telespectador mineiro, o censor Coriolano Fagundes informa que “oportunamente, providências estão sendo tomadas de forma a erradicar as insinuações de homossexualismo [sic] dos programas da televisão brasileira”. Boni, em resposta às cobranças de Coriolano e da Censura, que prejudicavam à novela, afirmou que a Globo “Independentemente das finalidades pretendidas pela Instrução, cujas intenções compreendemos, tememos que o documento introduza novamente a censura tácita, sem o exame objetivo das propostas dramatúrgicas ou humorísticas dos autores. A Rede Globo trata todos os telespectadores com respeito humano e não faz a apologia ao transsexualismo, ao homossexualismo ou de qualquer outra preferência sexual [sic], evidentemente sem ignorar a existência desses casos”. Mas a réplica do pai de Boninho não foi suficiente. À Globo coube acatar o pedido do censor: “Soluções estarão evidentes nos próximos capítulos de “Um Sonho a Mais” , especialmente a partir de 10/06/85″, disse Boni a Coriolano.

Patrício Bisso era Olga del Volga em “Um Sonho a Mais”, novela que voltará ao Globoplay na íntegra (Foto: Reprodução)

PATRÍCIO A GO-GO

Gabinete do Ministro. Assessoria de assuntos sigilosos. (…) O jornal “O Lampião da Esquina se dedica à promoção do homossexualismo” [sic]. Nos Anos 1980, um grupo de artistas e jornalistas ousou fazer um jornal sobre a pauta LGBT. Assim nasceu o “Lampião da Esquina“, cujo editor chefe era Aguinaldo Silva e tinha charges de Patrício Bisso, que fez a sua fama na década de 1980 através de um humor ácido e ferino – e entrou num ostracismo em 1994 após haver sido detido por fazer sexo em público na Praça Roosevelt, em São Paulo. Sobretudo envergonhado ante ao escândalo, Patrício voltou para Argentina, onde ficou até morrer, em 2019.

Desde o ano passado o ator Gustavo Klein vive Patrício Bisso e sua mais famosa personagem, Olga del Volga. Klein a interpretou no longa “Hebe – A Estrela do Brasil“, de 2017, sob a aprovação de Bisso, porém o ator não teve tempo de ver o filme ser lançado. “Quando fui chamado a fazer a Olga, eu sequer conhecia o trabalho do Patrício, não cheguei a vê-lo em cena e não chegamos a nos conhecer. Só após a pesquisa fui ver o quão profícua foi sua carreira, além dos palcos, inclusive, com seus figurinos em filmes como “O Beijo da Mulher Aranha” (1986) “tive uma ligeira impressão que as pessoas, especialmente aqui no Rio não conheciam mais o Patrício. Fiquei com vontade de resgatar essas histórias mais a fundo e salutar sua importância”. ”

Depois de maltratá-lo, Brasil se esqueceu de Patricio Bisso – Tony Góes, em 2019

Gustavo Klein vive Olga del Volga, personagem de Patrício Bisso (Foto: Mari Marques)

Depois que voltou à Argentina, Patrício Bisso ficou mais recluso. Praticamente não aparecia em vídeos e quando o fazia, era através de um material com baixa qualidade técnica de imagem. De igual maneira, não tinha canal no YouTube nem site. Sua única rede social era o Facebook onde postava fotos de divas pop dos anos 1950 ou retratos esdrúxulos com comentários divertidíssimos, sem contudo falar da profissão que o fez famoso. Sua imagem pública no Brasil acabou, sob algum aspecto, sendo uma fotografia dos 80’s, o que está presente, também, na montagem protagonizada por Klein. A encenação não poupa os atritos dele com a classe artística. Certa vez chamou Bibi Ferreira e Tonia Carrero de “aeromoças da arca de Noé“.

Para Gustavo, a tamanha transgressão proposta por Bisso, hoje “faria dele canceladíssimo. A mim há uma vantagem que vem do fato de eu não ser o Patrício e falar dele conscientemente, colocando-o como o fruto de uma época. Ele faria coisas que não seriam permitidas hoje, já que o mundo se transformou muito. Viaf muito do Patrício no Paulo Gustavo (1978-2021), que também fazia um humor ferino, porém de outra forma.

Não dá para ficar refém do “tio do pavê”. A gente, como sociedade, evoluiu socialmente e intelectualmente e algumas mudanças são desafiadoras para fazer humor, diante de novos paradigmas – Gustavo Klein

Ao ver de Gustavo, a detenção de Patrício “marca a vida dele, que acaba se sentindo envergonhado, achincalhado e ficou mais recluso. Junto a isso há um mercado no qual se você não se faz presente ou está aparecendo, as pessoas vão te deixando de lado. Além disto, houve o show “Bissolândia” que foi muito caro e deu prejuízo e ele ficou desiludido”. Klein ressalta que Patrício não deixou de trabalhar, ainda que tenha ficado fora de cena. Fez o figurino da montagem “Metralha”, de Stella Miranda e que foi aclamado, por exemplo, “mas enquanto personagem, ator e performer, ele acabou optando por não seguir em frente”.

Patrício Bisso vivendo Olga del Volga (Foto: Reprodução)

QUEM TEM MEDO DE PATRÍCIO BISSO?

Patrício Bisso realmente era um nome de expressão nos Anos 1980 e início dos 1990. Despontou na montagem de “Ladies da Madrugada”, em 1979, peça de Mauro Rasi. Era tanto sucesso que cogitou-se um programa para ele na Manchete em 1990, ano em que Patrício chegou a apresentar o Carnaval da extinta TV. Gilberto Gawronski e Tony Góes que assinam a montagem como diretor e roteirista, respectivamente, bem como Lucinha Lins, amiga de Patrício, têm boas memórias dele. “Diziam que ele era tímido e engraçado ainda que ferino e mordaz”, relata Gustavo. “Apesar de politicamente incorreto, prevalecia a sua criatividade. Há quem tenha carinho por Patrício, por mais que ele tenha arrumado confusão com muita gente”. Contemporaneamente, ao ver de Klein, Patrício seria visto como “um transformista que  usa dessas personas femininas artisticamente. A figura mais próxima talvez seja as drags”. “Quem tem medo de Olga del Volga” é o primeiro monólogo de Gustavo Klein, que diz ser o espetáculo “trabalhoso, mas muito cansativo, desafiador, instigante”.

Gustavo Klein: “Patrício Bisso usava de suas personas femininas como formas de expressão” (Foto: Mari Marques)

NOVAS GERAÇÕES

Gustavo Klein é, também, professor de teatro. Para ele “as novas gerações – especialmente as que são voltadas ao teatro musical – são efetivamente ligadas nesse segmento. Creio que a TV e o streaming ainda têm grande influência e a quem é tímido, os primeiros estímulos possíveis são o de emular o que se sente mais seguro. Mas vejo muitos alunos apaixonados, que estudam e conhecem tudo de teatro e querem seguir isso como profissão”. Klein dirigiu, pelo In Cena Escola de Teatro o musical “Annie”. Mais recentemente, ele fez, também, a “Escolinhazinha do Professor Raimundo“, uma versão infantil do clássico de Chico Anysio (1931-2012). “Foi um desafio. Os personagens originais são adultos, eu precisava suavizar isso ainda que a comicidade seja muito ligada à especificidade do ator e aos bordões. Era muita responsabilidade escrever, e ao mesmo tempo, inserir piada nesses personagens que faziam parte da minha infância”. Na “Escolinhazinha” tanto no começo como no final, há uma homenagem ao Chico Anysio. Em “Quem tem medo“, uma referência a Patrício Bisso. Um sinal de generosidade de Gustavo a quem, antes de partir, ensinou-nos a rir.

Gustavo Klein: “Não acho que as novas gerações usam as redes sociais como parâmetro de arte” (Foto: Divulgação)

 

[Alerta de gatilho: Ao reproduzirmos o conteúdo na íntegra das cartas de leitores e da Censura Federal, algumas palavras ou contextos antiquados podem ser mais sensíveis e/ou inadequados no que tange às temáticas LGBT e feminina ]