*por Vítor Antunes
No final dos anos 1970, mais especificamente em 1979, ainda durante a Ditadura Militar, muito se discutia sobre a projeção da mulher no mercado de trabalho, na vida e na sociedade para além dos limites da casa e – especialmente, da cozinha. “Liberdade e libertação são importantes para nós e é por isso que fazemos a série ‘Malu Mulher'”, disse a atriz Regina Duarte – na série símbolo da ascensão feminina daqueles idos e da qual Regina diz hoje que a personagem era muito feminista, “coisa que eu nunca quis ser”. O mesmo princípio que orientou a série norteou “Por Elas“, espetáculo teatral protagonizado, escrito e produzido por mulheres. “A gente poderia ficar dissertando sobre tantos desafios que a gente passa diariamente. Mas eu senti muito isso depois que comecei a produzir as minhas próprias coisas. As pessoas duvidarem de início, enfim. Mas é legal também ver a desconstrução delas que apontam que mesmo com medo a gente fez acontecer. Essa coragem extra que a gente tem de ter por ser mulher e botar nossa voz no mundo”, diz Eline Porto, autora de “Por Elas“.
Botar voz, aliás, é o que Eline mais fez durante a vida. Famosa nos musicais, agora ela se lança não apenas como autora de musical, mas como letrista também. Uma das músicas que compõem o espetáculo é “Medo”, e fala exatamente sobre a questão da mulher. “É uma das músicas que me tocam por falar sobre tantos medos que a gente vivencia sendo mulher, como o de andar sozinha na rua à noite, de estar parada enquanto está todo mundo fazendo alguma coisa, essa cobrança de movimento, de produtividade, de não envelhecer. Eu sempre fico bem emocionada nesse momento da peça, e eu compus essa música para a montagem. E as pessoas falam se reconhecer ali o que abre um diálogo a partir da canção”.
AUTOSSUFICIÊNCIA
“Começar é sempre mais difícil para as mulheres. Começar uma vida começar um amor, começar um trabalho, mas ainda assim ela estão conquistando seu espaço e se impondo. Como a Joanna, de 23 anos“, dizia Regina Duarte sobre a cantora Joanna – hoje com 67. O “Mulher 80“, que se propunha a trazer o protagonismo feminino, é fundamental para entender aquele fim de década. Mas, ainda assim, apresenta o espaço ocupado por elas. O especial continha as grandes cantoras do Brasil: Elis Regina (1945-1982), Gal Costa (1947-2022) , Maria Bethânia, Rita Lee (1947-2023), mas o texto que fundamentava as ações, especialmente de Regina Duarte, eram escritos por Luiz Carlos Maciel e Euclydes Marinho. A direção era de Daniel Filho.Na equipe técnica, nem ao menos uma mulher.
Eline Porto nasceu no ano da Constituição Cidadã, 1988. Símbolo máximo da renovação do Brasil, da ideia de cidadania e dos direitos da mulher. E sua voz fundamenta essa necessidade de protagonismo(s) feminino(s). “A gente está quebrando isso dia após dia. Mas, ainda assim, há cobrança por casamento, por filho, por tudo, especialmente se você, já passou dos 30. É um ciclo: Se tem um namorado, tem que casar. Se casou, tem que ter filho, como se fosse uma cartilha. As pessoas têm muita dificuldade de entender que ela mulher pode ser bem-sucedida, focada na carreira e que a vida pessoal pode vir de uma maneira paralela e não ser o foco da sua vida”.
“Por Elas“, conta-nos Eline, “é um musical que celebra a mulher, a potência feminina e principalmente isso através do canto, a voz da mulher, o que é falado, o que é cantado e como isso muda gerações, como a música tem esse poder também de transformar as mulheres e, enfim, ser realmente o Brasil tem muitas cantoras que são emblemáticas, como Gal Costa, Marisa Monte, Elza Soares (1930-2022), Cássia Eller (1962-2001). E muita gente se levantou depois da ditadura. Acho que também a gente quis fazer esse movimento também, perto, óbvio, do movimento feminista, da mesma que já vinha vindo. Essa efervescência da década de 70, 80, é muito também da mulher querer se mostrar livre, com vontades, com desejos, e que tem o que falar pro mundo e cantar suas dores, suas felicidades. Esse destaque às mulheres no Brasil ajudou muito as gerações futuras”.
Eu sei o que eu quero. Eu não dou ponto sem nó. Quando digo que quero fazer tal coisa, ou quando não quero, eu compro a briga (…) ” – Simone, cantora, 1979.
São muitos os desafios por ser mulher e artista e principalmente por ser uma mulher que realiza coisas, arregaça as mangas e faz acontecer – Eline Porto, atriz e cantora, 2024
Eline Porto encerrou no último fim de semana a montagem de “Por Elas“. A peça, que ambiciona dar protagonismo às mulheres, tem elas não apenas como a maior parte do elenco, mas as moças também na sua equipe técnica. “A nossa ideia é fazer turnê pelo Brasil. Quero levar essa peça para o máximo de pessoas que eu conseguir. Quero muito que outras mulheres assistam e possam se identificar com o texto”.
Além de “Por Elas“, Eline lançou seu álbum, “Coração na Boca“, em setembro de 2023, está escrevendo uma série, coisas mais nesse âmbito. Além de fazer toda a videografia de “O Rei do Rock“, peça protagonizada por seu namorado, Beto Sargentelli. Para Eline “é importante ver mulheres de sucesso e cantando não só suas felicidades e suas dores, mas também sobre suas belezas reais, sobre a necessidade da perfeição que é inalcançável, então também desmistificando”. Exemplo da versatilidade a qual as mulheres têm que enfrentar e das barras que também têm que se flagrar diante, ela diz:
Então, [de nossas capacidades] quando participamos de uma montagem, dizem que não entendemos daquilo, ou se você tem um sócio que é um homem -a quem se direcionam – como se você não tivesse voz o suficiente. Então, são muitas dificuldades além de ser mulher. O machismo está aí, é uma coisa que realmente é estrutural na nossa sociedade, então é muito realmente complexo – Eline Porto
PALAVRAS DE MULHER
Uma das novelas de maior destaque de Eline foi “Sete Vidas“, 2015, escrita por Lícia Manzo. Lícia, em razão de sua sensibilidade e texto apurado, é recorrentemente comparada a um homem e chamada de “Manoel Carlos de saias”. Para a atriz, há diferenças nos roteiros assinados por mulheres e por homens. “Eu vejo muita diferença especialmente quando a temática é feminina, quando é algo que só a gente vivencia. É difícil para o homem traduzir isso em texto e a Lícia faz com maestria, fala do nosso dia a dia, fala da mulher real”. Recentemente, uma nova novela de Lícia foi cortada da pré-produção. Diziam-na excessivamente sofisticada para a TV, que hoje, mais do que nunca avança a passos largos para uma proposta pop. É possível ser popular e sofisticado, ao mesmo tempo? “É super possível. Acho que o pulo do gato está na inteligência do texto, de como abordar assuntos muito importantes de maneira leve, de maneira que a pessoa se abra a ouvir, seja envolvida na história a tal nível que isso fique palatável”.
Muitas das cantoras citadas tanto por ela, como neste reportagem, morreram. Teriam sido elas mais valorizadas depois que morreram? “Existe uma idealização depois que a pessoa parte desse plano, é quase como se fosse mais especial, mais icônico. Eu lamento que as pessoas não sejam homenageadas e celebradas em vida. Tanto as cantoras, como os grandes nomes da literatura, filósofos, pintores… Então, eu lamento, eu fico triste que a gente tenha uma memória tão curta”. Das mulheres que participaram do Mulher 80 citados no início da reportagem, vivas, estão apenas Joanna, Maria Bethânia, Marina e Zezé Motta. Todas as componentes do Quarteto em Cy morreram, sendo uma delas no ano passado. Pouco se fala delas. Mas a premissa da mulheridade está, ainda, em pauta. Joyce, cantora e compositora, pergunta e responde em uma de suas músicas sobre O que é feminina? E diz que isso não está “no cabelo, no dengo ou no olhar, mas em ser menina por todo lugar”. É estar… por elas.
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