*Por Brunna Condini
Você tem consciência do seu grau de transfobia? É essa clareza que a atriz Renata Carvalho, diretora e ativista dos direitos humanos e LGBTQIAPN+, deseja despertar na plateia que vai assisti-la em seu ‘Manifesto Transpofágico‘, em cartaz no Rio. A atriz descreve-se também como transpóloga, uma combinação dos termos trans e antropóloga devido ao seu amplo trabalho de pesquisa e experiências sobre corpos travestis e trans. Com um trabalho de pesquisa e cênico elogiado pela crítica e reconhecido por artistas como Renata Sorrah, Camila Pitanga, Thalita Carauta, Camila Morgado, Karine Teles, Carmo Dalla Vecchia, Renata colheu os louros durante turnê internacional. Ela tem 27 anos de carreira nas artes, e poderá ser vista em breve atuando na terceira temporada de ‘As Five‘, e na série ‘Fim‘, no Globoplay.
Fundadora do MONART (Movimento Nacional de ArtistasTrans), ela também fundou o Coletivo T – primeiro coletivo artístico formado integralmente por artistas trans. E acrescenta sobre a importância da transcestralidade: “Ela foi fundamental para nossas existências e conquistas de hoje. Eu saúdo, reverencio, homenageio e sou muito grata as/os que vieram antes de mim trilhando nosso caminho. E sei da minha responsabilidade de continuar pavimentando esse caminho para as gerações futuras”.
Muita gente famosa e reconhecida artisticamente foi conferir a montagem ‘Manifesto Transpofágico‘ e exaltou seu trabalho. O que mais a marcou nesta troca? Renata pontua: “São tantos atravessamentos que chegam aos nossos ouvidos após cada apresentação. Mas, quando o Ney Matogrosso saiu da sua casa para ir nos assistir foi bem especial. O que mais me emociona são familiares de pessoas trans/travestis presentes na plateia em diferentes estágios da vida dessas pessoas. Me conforta saber que algumas famílias não foram destruídas com o auxílio do espetáculo, isso é a minha força motriz para continuar com esse trabalho”, observa.
Sou artista, porque quero mudar o mundo. Meu percurso pelo teatro foi cheio de obstáculos e censuras ao meu corpo e a minha vivência. O meu maior desafio foi continuar insistindo mesmo com todas as adversidades – Renata Carvalho
Partindo de produções que estão no ar, como ‘Terra e Paixão‘, que tem Valéria Barcellos, uma atriz trans em seu elenco, e a próxima novela das sete também na Globo, ‘Elas por Elas‘, que terá Maria Clara Spinelli como uma das protagonistas, Renata comenta sobre transfobia e diversidade no audiovisual brasileiro. “Primeiro acho que todes concordamos que vivemos em um mundo, em uma sociedade que não acolhe corpos trans e travestis, e a arte faz parte dessa sociedade. Nós artistas, também fomos ‘borrados’ pela construção social desse imagético do senso comum do que é ser uma travesti, com isso, potencialmente nossas produções artísticas terão conteúdos transfóbicos, inclusive os produzidos por artistas trans e travestis. Ter a presença de pessoas trans e travestis em grandes meios de comunicação, no cinema, no teatro, nas artes, foi, e é uma luta política, iniciada pelo MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans) pela inclusão, permanência, profissionalização e representatividade coletiva nos espaços de atuação e criação, pedindo uma pausa na prática do transfake, que é quando artistas cisgêneros interpretam personagens trans”, esclarece.
“Quando vejo artistas trans e travestis ocupando os espaços e instituições de arte, é de uma felicidade imensa. Foi por isso que fundei esse movimento, sei que ainda precisamos avançar muito e continuar vigiando. A mudança já está acontecendo de forma lenta e gradual, mas constante”, completa Renata, que também estará nos filmes ‘Dinho‘, de Leo Tabosa, no longa-metragem ‘Salomé”, de André Antônio, e destaca a satisfação de interpretar personagens mais versáteis recentemente no audiovisual: “Em ‘As Five‘ eu vivo uma esotérica do AA; já em ‘Fim‘ faço uma travesti mais espalhafatosa; em ‘Dinho‘ dou vida à tia travesti que cuida do seu sobrinho no interior do Ceará, e em ‘Salomé‘ vivo uma mãe cisgênera de uma travesti”.
Nunca trabalhei em TV aberta, tenho vontade. Sonho com bons personagens seja no teatro, no audiovisual ou na TV. Com tempo de tela, nome, cenário, conflito e com relevância para a história – Renata Carvalho
O espetáculo
Graduanda em Ciências Sociais e estudando os corpos trans desde 2007, em cena Renata convida o público a olhar incansavelmente para o seu corpo travesti, e lhes apresenta a historicidade dele. “Sou artista, porque quero mudar o mundo. Meu percurso pelo teatro foi cheio de obstáculos e censuras ao meu corpo e à minha vivência. O meu maior desafio foi continuar insistindo mesmo com todas as adversidades”, diz.
“Esse espetáculo muda junto comigo, porque minha pesquisa é viva, então meu trabalho também precisa ser e acompanhar o desenvolvimento dela. A segunda parte da peça foi a que mais se transformou, mesmo que eu aborde os mesmos temas, vou descobrindo outras formas de acolhimento da plateia, de como tratar um tema de forma diferente, escolhendo as palavras, desenvolvendo a escuta e o não julgamento, mas também aprendendo a saber dar e impor limites controlando melhor minha raiva. As palavras são bem escolhidas, não podem ser impositivas ou acusatórias. Estudei comunicação não-violenta para conseguir me comunicar melhor, valorizando assim as minhas ideias, texto, palavras e arte”.
Aos 42 anos, a atriz, performer, dramaturga, diretora e produtora, idealizou o espetáculo/manifesto como um convite ao diálogo entre os diferentes, à escuta. “A peça inicialmente teria o nome de ‘Eu travesti’, mas quando a escrevi estava sendo muito atacada por representar Jesus em ‘O evangelho segundo Jesus, Rainha do céu’ e também pelo lançamento do MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans) e do ‘Manifesto Representatividade Trans’, com a luta pela pausa na prática do transfake. Além disso, ainda existe uma dificuldade das pessoas em pronunciarem a palavra ‘travesti’, e acreditei que a peça teria dificuldade para entrar em cartaz e ser noticiada. Então resolvi dar um nome mais teatral, mais digestivo, que soasse confortável aos ouvidos”, ironiza Renata.
A artista também aproveita para revelar um desejo. “Nunca trabalhei em TV aberta, tenho vontade. Sonho com bons personagens seja no teatro, no audiovisual ou na TV. Com tempo de tela, nome, cenário, conflito e com relevância para a história”, finaliza.
Vivemos em um mundo, em uma sociedade que não acolhe corpos trans e travestis, e a arte faz parte dessa sociedade – Renata Carvalho
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