*Por Alexei Waichenberg
Lugar de mulher é na cozinha! De homem também!
Na cozinha, na sala, na varanda (pra quem tem), no banheiro, no quarto – ah, o quarto. O lugar de qualquer um de nós é trancado dentro de casa.
Parece que não nos restou muita alternativa, nesses tempos, a não ser encarar os trabalhos domésticos, como se eles fossem um hobby ou uma terapia ocupacional. Se é o que temos, melhor que seja feito com prazer e amor, afinal o momento é de descobrir talentos.
Vou lhes sugerir uma receita e acredito que, se nada mais falhar, é provável que lhe confiram uma ou duas estrelas do Guia do Lar em Harmonia, perdão em Pandemia.
Vamos à receita:
Hoje não vou passar nenhuma receita da minha avó materna. D. Elza, que era profissional nos doces e o que vamos preparar tem um sabor, digamos, mais ácido, mais salgadinho. E se quiserem um bolo de chocolate daqueles cheios de calda, melhor encomendar no take away mais próximo.
Toda atenção e cuidado serão necessários.
Obs: Essa receita serve à família tradicional brasileira, kkkk. Se @ leitor@ está solitári@, venceu nas suas relações todos os preconceitos da velha instituição machista do casamento ou vive num lar povoado de afeto e equidade, pode escrever para a redação e solicitar receita para esse tipo de restrição, mas adianto que eu mesmo vou anotar sua receita milagrosa.
Ingredientes, você vai precisar de:
– Todos os elogios (os que puder lembrar), que fizeram aos seus dotes culinários no passado
– Vassoura ou aspirador de pó, o que estiver ao seu alcance
– Um rodo
– Um espanador de pó
– Pano de chão, de prato e flanela
– Todos os produtos de limpeza que tiver na despensa
– Álcool em gel, um frasco inteiro
– Um computador ou todos os que tiver na casa
– Um roteador conectado na internet
– Café, muito café
– Uma garrafa térmica
– Uma ou duas embalagens de lasanha congelada – cada uma serve 4 pessoas pouco famintas
– Uma ou duas embalagens de almôndegas ao sugo
– Uma pitada de perseverança
– Coragem que baste
– Resiliência em extrato
– Uma roupa confortável
Mãos a Obra. Em primeiro lugar bom dia, se é que por aí ninguém te cumprimentou pelo novo amanhecer. Que horas são no seu celular que passou a noite carregando?
Vamos começar. Pega um produto qualquer que se pareça com amoníaco e leva pro banheiro. Mais de um banheiro na sua casa? Eu sinto muito. Respira.
Dá uma geral no chão, nas louças e nos metais e aproveita pra tomar uma boa chuveirada e colocar a tal roupa confortável. Dá um confere no visual e no penteado. Vamos levar em conta que está tudo tranquilo na casa e que as crianças e o nosso marido Oscar ainda estão dormindo. Passa álcool em gel nas mãos. Agora faz um café, bebe numa xícara de chá e coloca o resto na garrafa térmica. Essa história do café fresquinho já não está possível. Tendo em consideração que você tá pela cozinha, lava e bota no escorredor a louça toda que ficou de ontem a noite, afinal ninguém é de ferro.
Nada de estresse a essa hora da manhã. Se estiver muito pesado, dá uma ligada pra sua mãe e solta os bichos. Dá um certo alívio e ela sabe exatamente do que se trata. Enquanto a louça seca, prepara qualquer coisa pro café da manhã da turma. Nada muito sofisticado, afinal isso aí não é hotel. Reserva. Passa álcool em gel nas mãos. Dá uma varrida na cozinha e passa, com o rodo, um pano de chão com desinfetante, pra deixar tudo brilhando. Passa álcool em gel nas mãos.
Já sei, começou a ouvir os barulhos do despertar do núcleo privilegiado da tua novela. Coloca um fone com a Alcione cantando com o Alexandre Pires, que é pra dar um gás na sua estranha loucura. Passa álcool em gel nas mãos. Agora, sem hesitar, corre pra sala, dá um duplo twist carpado e levanta o sofá. A essa altura, você que é esperta, já deixou o aspirador ao alcance da mão. Pega o tapete, enrola, dobra, mas depois some com ele. Se não tiver aspirador ou, se você não conseguiu se livrar do tapete, pega a vassoura e varre tudo pra debaixo. Tapete em tempos de corona só acumula poeira e vírus, mas tem gente que se apega. Passa álcool em gel nas mãos.
Todos de pé e começa a maratona. Na verdade, é uma daquelas corridas com obstáculos, porque o povo fica no meio do caminho. Não tira o fone. Agora você deve estar ouvindo Roberto Carlos e o seu cachorro, com certeza, vai te sorrir latindo. Passa álcool gel nas mãos e bota água fresca e a comida do cãozinho.
Televisão ligada e você precisa saber que o tempo que te resta é exatamente o da duração do desenho animado, que vai entreter as crianças enquanto você termina de arrumar a casa. Oscar, meio sonolento, pode ajudar a servir o café da manhã que você já deixou pronto, afinal, a TV tá ocupada. Espanador na estante de livros, na mesinha de apoio, nos quadros, na cara do Oscar, passa álcool em gel nas mãos, serve mais uma xícara de café e se manda pros quartos.
Resolve o mafuá do quarto de casal e, quando entra no quarto das crianças, uma surpresa. Romeu, o mais novinho fez a própria cama. Esticou como pôde os lençóis e você se revigora. Aí tudo faz sentido. Bora continuar porque o tempo é curto. O desenho na TV acabou e é hora do almoço. Passa álcool em gel nas mãos.
Lembra dos elogios aos seus dotes culinários do passado? Então, descarte-os sem culpa ou apego. Aquilo que diziam era só pra agradar e, agora, você precisa dar conta de um monte de outras tarefas e a lasanha embalsamada, que jaz no congelador, vai servir como se fosse uma maleta de primeiros socorros.
Bom Apetite! Deixa a louça pra mais tarde e vai dar uma relaxada.
Ops, ia esquecendo do home schooling. Se você só tem um computador em casa, então, vai ter que alternar os dias para a molecada estudar. Romeu um dia e Celina no outro. Por falar nisso, eu nem perguntei o que você faz profissionalmente. Segura o pessoal do escritório pro home office no fim do dia. Vícios não são recomendados, mas uma tacinha de vinho tinto escondida com a melhor amiga, nessa hora, é absolutamente saudável.
Passa álcool em gel nas mãos. Traz o cesto de roupa suja e bota tudo na máquina. Aí você pergunta: Será que tenho que separar as roupas brancas? Claro que não, depois da pandemia a última tendência, o último grito da moda são as manchas provocadas pela água sanitária. Corre pra máquina de lavar e coloca no maior ciclo que estiver disponível. Ah você não tem máquina? Então deixa de molho no tanque. Teu marido colocou as cervejas pra gelar no tanque? Jesus, que transtorno. Mas, você precisa levar em consideração que depois de uma gelada ele fica tão mais carinhoso. Deixa lá.
O que que tá tocando aí? Marilia Mendonça ou Maria Bethânia? O playlist é mega importante. Hora de dar uma satisfação pro chefe, que te espera numa live com o resto da equipe do trabalho. Passa álcool em gel nas mãos e entra no hangout. Olha de soslaio e percebe que o folgado do Oscar continua no sofá. Vem um pensamento intruso: Nem jogo tem na TV, o que que esse maluco tanto faz assistindo um documentário do mundo animal? Arrisca um diálogo:
– Amor, será que você pode diminuir um bocadinho o volume? Vou entrar numa live com a galera do trabalho.
– Claro linda, daqui a pouco também tenho uma.
– Bebê, aproveita e dá um banho nas crianças?
– Tá!
Hora do jantar. Achou que eu fosse te dar uma receita incrível daquelas comidinhas de nona, né minha filha? Claro que não. Passa álcool em gel nas mãos. Abre o forno e joga aquela caixa de almondegas ao sugo, que era vizinha da falecida lasanha. Temperatura? Qualquer uma. O importante é não sujar a cozinha que você limpou mais cedo. Ferve uma água e joga um talharim safado. Enquanto cozinha, lava a louça do almoço. Pega uma panelinha, derrete uma colher de margarina, doura o alho, sal a gosto, escorre a massa e voilá. Serve, passa álcool em gel nas mãos e percebe que aí vem um elogio, até porque eles te viram enfrentar um dia e tanto. Tira a mesa. Deixa a louça pra amanhã, passa álcool em gel nas mãos e vai relaxar, finalmente.
Ufa. Aí a leitora me pergunta. Mas, e o amor? Onde está?
Pelo whatsapp:
– Amor, dá pra você levar o lixo lá pra fora?
– Péra aí amor, tô acabando uma live com a galera da banda
15 minutos depois, ainda pelo whatasapp:
– Cadê o lixo amor?
– Já joguei fora bebê, obrigada
– Amor, vem pra cá ver uma série comigo?
– Então passa álcool gel nas mãos
Tá vendo só? Eu disse que a receita era boa. Calma querida, a loucura vai passar!
– Ops, passar não dá. Vai ter que usar tudo amarrotado mesmo
No fone: “É preciso amaaar, as pessoas como se não houvesse amanhã…”
* Alexei Waichenberg, jornalista com pavor de faxina.
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