Lá se vão alguns muitos anos – seis para ser mais exatos – quando fizemos nossa primeira grande reportagem com Rafael Primot, um jovem autor, ator, diretor, e o que mais lhe coubesse no processo artístico, e que a gente logo virou fã. De lá para cá, acompanhamos o amadurecer de sua carreira, seus sucessos, suas palavras e personagens chegando a cada vez mais gente, com direito a prêmios (Shell, inclusive), críticas – sempre – positivas e muito, muito trabalho. Pois bem: agora que ele está em cartaz na cidade com seu “O Livro Dos Monstros Guardados” (leia nossa critica aqui!) , fomos atrás dele para uma conversa e ver o que mudou de lá para cá.
Foi a partir de uma proposta – não exatamente muito recente – de Erom Cordeiro que “O Livro dos Monstros Guardados”, texto escrito por Rafael Primot aos 22 anos, voltou à ribalta. “Nós atuaríamos e seríamos dirigidos por João Fonseca. Alguns anos se passaram e, por questões de produção, não conseguíamos juntar a trupe, mas, felizmente, as agendas se encaixaram agora. Como tínhamos pouco tempo para levantar a peça, optamos por convidar outros cinco atores (que estão maravilhosos!)”. Quem conta é o próprio Rafael, em entrevista exclusiva ao HT, agora que está com a peça em cartaz no Teatro do Centro Cultural Justiça Federal, às quartas e quintas-feiras, às 19h. A montagem carioca é diferente da paulistana (da anterior, encenada em São Paulo, Rafael não participou), acabou não saindo exatamente como o programado. É que Rafael não se conteve apenas atuando. “Dividi a direção com João por conta da agenda apertada dele e foi um aprendizado atuar e dirigir ao mesmo tempo”.
A dupla jornada já havia sido feita por Rafael no audiovisual, mas nada que se compare à empreitada de agora. “No palco é uma experiência nova e esquizofrênica”, qualificou, explicando o modus operandi: “Concentrei-me na direção dos atores, que é onde me divirto, e João trouxe seu olhar de encenador. Juntos optamos pela simplicidade de contadores de histórias e só. Era assim que queríamos montar esta versão, como se o público folheasse um livro e nós atores fôssemos apenas um instrumento para ajudar a criar as imagens mentais”. Em “O Livro dos Monstros Guardados”, o espectador se depara com a confissão de sete pessoas, todas anônimas, dos seus lados mais sombrios e menos aceitos. Enredo que saiu da mesma cabeça responsável por dirigir Regina Duarte no longa “Gata Velha Ainda Mia” (2014) como uma lésbica, gerando toda uma repercussão por colocar um ícone da dramaturgia brasileira em um personagem totalmente fora da curva de sua trajetória.
“Minha função é quebrar os paradigmas através da arte e não consertar a mentalidade de uma sociedade. Se a Regina se interessou em fazer o papel de uma escritora lésbica, feia, decadente, é porque alguma coisa ali despertou o interesse dela. Quero acreditar que tenha sido por isso que ela aceitou como um desafio pessoal da grande artista que é e não para chocar, ou para mudar algo conservador do público mediano”, comentou. Mas Rafael, e como lidar com a turma conservadora que torce o nariz para essas elucidações? “Quem não quiser ver que feche os olhos, tranque as portas e tome sua sertralina, sua fluoxetina todas as noites. Isto é o ser humano: complexo, plural, vivo e real”.
Palavras de um artista que sabe bem o seu combustível: a vontade de falar de gente. “Histórias mais humanas me são mais caras que filmes vazios que brincam com os estereótipos da sociedade ou ficções científicas, mesmo reconhecendo todo o mérito (sim, há mérito) em todas elas. Adoro criar figuras, muitas vezes esbarro no caricato, no desenho, mas tento preencher isso com um pouco das gentes que esbarro todo tempo nas ruas”, tentou explicar. Aprendiz do diretor teatral Antunes Filho e com diploma de cineasta, Rafael Primot é daqueles que, como o começo desse texto deu o tom, que joga nas onze. “Minha ansiedade faz com que eu me jogue nessas vertentes. Atuar em quase tudo que me chamam é uma delícia e sempre um grande desafio, me jogar sem preconceitos seja pra fazer uma transexual, um macho alfa, um protagonista ou um coadjuvante. Eu me entrego, gosto disso. Adoro os riscos. Eles me atraem e me apavoram na mesma proporção”, contou.
E não só. Rafael também é movido pela necessidade de contar suas próprias histórias e ver seus personagens exatamente do jeito que imaginou. É o que acontecerá na sétima arte com “Todo Clichê do Amor” (“fala de amor, desejo e desencontros, das dificuldades de se amar por inteiro”), que tem o plus de ser todo estruturado na pós-produção de forma inclusiva para deficientes visuais e auditivos, e “Nada se Perde” (“um longa-metragem de um milhão que venho tentando captar há algum tempo”) que, para não recorrer às leis de incentivo, busca o financiamento coletivo. Na sequência dessa conversa com HT, Rafael também se autoanalisa, fala das mudanças com o tempo e da linearidade – se é que há uma – em suas produções. Avante.
HT: Conta um pouco do seu novo filme, “Todo Clichê do Amor”…
RP: Nosso filme fala de amor, desejo e desencontros. Fala das dificuldades de se amar por inteiro. Algumas histórias se cruzam: um ator pornô apaixonado e sua mulher passional; uma garçonete à espera da maior declaração de amor da sua vida; uma mulher cega em busca do marido e uma madrasta desesperada para conquistar o afeto da sua enteada durona. São personagens repletos de amor e cheios de inabilidades para lidar com seu lado afetivo. Este é o mote de “Todo Clichê do Amor”. Juntei muitos clichês para tentar fazer um filme novo e divertido a partir deles.
HT: Como é a historia e como surgiu a ideia de transformá-lo em uma obra inclusiva?
RP: O filme foi pensado para também incluir deficientes visuais e auditivos. É um filme cheio de diálogos, o que por sua vez facilita o entendimento dos deficientes visuais. Além disto teremos algumas narrações em off de personagens que ajudam a contar a história ao deficiente, sem entediar o espectador que enxerga. Todas as cópias terão legendas para os deficientes auditivos. É isso o que pretendemos. Vamos juntar, integrar e tentaremos fazer uma intersecção, um filme que fique interessante de se assistir por todos. Qualquer um pode entrar no cinema e se entreter com a história. Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar. O resto a imaginação vai ajudar a construir.
HT: Você não quer usar as leis de incentivo pra rodar o novo filme. Por que? E o que acha da lei de incentivo e da política cultural no país?
RP: Não sou um grande entendedor de leis e tampouco um ganhador de editais, infelizmente. Então prefiro não ser leviano em dar minha opinião sobre o tema. Tudo que posso dizer é que tenho um longa-metragem de R$1 milhão que venho tentando captar há algum tempo que se chama “Nada se Perde” e que é bem lindo. Ele fala sobre perdas na família, o ciclo da vida. Tenho esperanças de conseguir realizá-lo com um orçamento digno em breve, através da lei ou de editais. Mas enquanto aguardo sua aprovação dou um jeito de fazer filmes pequenos, de roteiros enxutos, com poucas locações e muito falatório, com a força de artistas e técnicos que se interessam pelo meu trabalho e pelas minhas histórias. E estou rodeado de pessoas assim! Em qual outra profissão encontramos pessoas capazes de se emprestar de tal maneira? Acho isso emocionante! Quando olho o meu set e vejo todo mundo trabalhando por horas, ganhando bem menos do que o justo e ainda assim rindo nos intervalos. Não julgue minha pieguice, se esforce! (ri). Nestes pequenos instantes me dou conta de que tudo tem valido a pena e que estar rodeado de pessoas assim é o que fecha o círculo e o que dá sentido à essa mistura caótica de arte e vida que tem sido meus dias. Com todos os clichês que tenho direito.
HT: Você consegue enxergar uma linha que une as suas obras?
RP: É muito difícil enxergar isso de dentro. Sou latino e passional demais para me enxergar de fora. Meus personagens e meus roteiros não são todos calculados e talvez por isso minhas escolhas ainda sejam tão caóticas. Se você abrir meu desktop talvez desmaie (ri). Tenho centenas de referências visuais, misturadas com roteiros que quero fazer, com projetos que estou começando, com personagens que um dia hei de fazer, com fotos pessoais e com planilhas de alguma coisa que estou preenchendo todas misturadas e sobrepostas. De tudo ali a única certeza que tenho é: a planilha nunca ficará pronta e eu me detesto em todas as fotos que tenho. O resto eu ainda tenho vontade e esperança de levar adiante em algum momento.
HT: Temas como a solidão e a sensação de estranhamento no mundo são recorrentes nas suas obras. O Rafael pessoa física também se sente assim às vezes? O que tem de você em seus personagens?
RP: São tão recorrentes e aparentes assim? Preciso marcar um analista amanhã! (ri). Há sempre um pouco de mim, às vezes uma pitada e em outros um bocado inteiro, mas não tenho o controle. Preciso disso, mesmo sabendo que de alguma forma estou por trás e segurando o manche, o timão, o volante. Ainda assim tem a maré, tem a brisa, tem a vaca que cruza a pista.
HT: O que mudou no Rafael que entrevistamos pela primeira vez há seis anos para o Rafael de hoje?
RP: Basicamente estou mais cheio de rugas e com alguns fios de cabelo branco, mais gordo e mais bem humorado também. De resto nada mudou. Continuo firme no propósito de trabalhar com o que eu gosto, contando minhas histórias, atuando em coisas que realmente me fazem vibrar e aprender mais sobre as pessoas e com os meus colegas – em cena ou nos bastidores. A graça de inventar vidas, seja atuando ou escrevendo, é justamente descobrir a pluralidade dos seres humanos, conseguir entender e na maioria das vezes amar tantas facetas que temos.
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