*Por Rafael Moura
Um drama russo de 1923 é o mote da peça ‘Por que não vivemos?‘, que estreou ontem (dia 3), no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, com um elenco poderoso composto por Camila Pitanga, Cris Larin, Edson Rocha, Josi Lopes, Kauê Persona, Rodrigo Bolzan, Rodrigo Ferrarini e Rodrigo dos Santos e direção de Marcio Abreu. A obra inédita no país provoca uma reflexão sobre os dias atuais permeada pela obra do dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904). “A peça é um exercício de adaptação e criatividade. Eu estou debruçado sobre o texto desde 2009. Ele foi traduzido do russo para o francês, para o espanhol e, por fim, o português pelas minhas parceiras Nadja Naira e Giovana Soar. A ideia era preservar o máximo de características possíveis. Por ser um clássico, ele se renova constantemente e é bastante atual. Quero proporcionaar ao público uma montagem refinada e articulada com a linguagem atual do teatro e até rompendo os limites do palco”, explica o diretor Marcio Abreu.
Camila Pitanga conta que a montagem ocupa todo o espaço do teatro rompendo o limite do palco e plateia. “A ideia é que as pessoas se sintam próximas umas das outras. Uma das grandes dificuldades atuais das peças, em geral, é o diálogo. Muitos dos espetáculos não dialogam com o público. O Marcio foi enfático na direção em fazer com que o público tenha interação com a história. Não é um texto apenas para a nossa bolha! Queremos furar essa bolha e abraçar as pessoas”, enfatiza a atriz.
A história do professor Platonov foi descoberta nos arquivos do seu irmão após a sua morte, e publicada em 1923. Inédita no Brasil, a obra recebeu, nesta adaptação da Companhia Brasileira de Teatro o caráter de inovação. Embora não tenha um título oficial, a peça foi encenada em diversos países como ‘Platonov’, em homenagem a um dos personagens, o professor Mikhail Platonov. Foi somente no final da década de 1990 que a obra ganhou traduções e montagens em diversos teatros da Europa. Em 2017, os atores Cate Blanchett e Richard Roxburgh estrearam uma versão do texto na Broadway, em Nova York, chamada de “The Present”.
Por ser uma obra sem título oficial, o grupo batizou a peça com uma pergunta chave que está inserida no texto: por que não vivemos como poderíamos ter vivido?. “Essa questão, que se abre para tantas outras, é um pouco a alma dessa peça”, diz Marcio. “Quando esse texto foi resgatado, não havia capa nem título. Como outras peças em que o personagem principal dá nome ao texto, como Ivanov, se deu esse nome Platonov”, conta Giovana Soar, que ressalta que o título escolhido pela companhia traduz o drama que permeia o espetáculo. “São pessoas que gostariam de estar em outro lugar, mas não fizeram nada para isso. Mostra como a trama da vida vai se desenrolando e as pessoas vão caindo na armadilha de ficar onde estão”.
Camila completa: “O texto fala sobre a pré-revolução russa (1917), da mobilização e da falta de perspectiva da sociedade ao assistir esse estado de letargia e utopia. Queremos que o espectador se ponha nesse lugar. Tem uma grande provocação com a inércia da vida. A ideia é que cada um se pergunte ‘Por que eu não me movo?”.
A peça trata de temas recorrentes na obra de Tchekhov, como o conflito entre gerações, as transformações sociais através das mudanças internas do indivíduo, as questões do homem comum e do pequeno que existem em cada um de nós, o legado para as gerações futuras – tudo isso na fronteira entre o drama e a comédia, com múltiplas linhas narrativas. “É o primeiro texto de Tchekhov, um texto muito jovem, mas muito revisitado em diversos países porque tem nele o que depois vem a ser o cerne do Tchekhov”, diz o diretor. E rende elogios à atriz: “A Camila é uma grande artista, uma mulher de grandes talentos, engajada e que atua em diferentes campos. Uma profissional vigorosa e intensa que conhece muito bem o seu ofício e consegue dar vida a qualquer personagem”.
Na adaptação da Companhia Brasileira de Teatro, a história não se desenrola num lugar definido, tampouco na época em que foi escrita. Ambientada numa propriedade rural de uma jovem viúva, a história se passa durante uma grande festa, na qual está presente Platonov, um aristocrata falido. Ele se tornou professor, por despeito e para camuflar sua revolta contra seu falecido pai e a sociedade. Bem articulado, brilhante e sedutor, ele é admirado e invejado. Seu reencontro com Sofia, um amor de juventude, reaviva seu desespero. “Os tempos de hoje exigem muito de nós. Ser passivo é assinar e concordar com tudo o que acontece. É necessário reagir e ocupar os espaços. Estamos numa instituição em que o teatro tem uma força, um público fiel e com preços bem acessíveis, o que proporciona a ida de um público jovem, adulto e idoso, de diferentes regiões da cidade”, conta Camila.
O diretor faz um panorama sobre a representatividade do teatro “eu percebo que ao longo da história, o teatro sempre foi um espaço de cultivo dos nossos valores como o humanismo, o olhar crítico… É uma arte que pretende propor um melhor olhar da vida em sociedade e para o outro. O espaço por excelência é um ponto de encontro. É uma ágora de troca, uma espaço para se pensar o mundo”. E completa “fala-se muito na morte do teatro, mas ele está mais vivo do que nunca. E nós artistas iremos resistir sempre! Porque arte é resistência. Estamos aqui para celebrar a vida e não a morte. O teatro está cada vez mais potente. Esses espaços de arte são importantes para não entrarmos numa sociedade terminal”. Depois da temporada carioca, o espetáculo segue para as unidades do CCBB em Brasília (setembro/2019), Belo Horizonte (outubro e novembro/2019) e São Paulo (2020).
(Ao longo das entrevistas com o diretor e com a atriz, esse repórter teve na cabeça nitidamente o filme ‘Fahrenheit 451’, de 1966, com direção de François Truffaut. A adaptação do livro de Ray Bradbury fala sobre uma sociedade do futuro que baniu todos os materiais de leitura e o trabalho dos bombeiros de manter as fogueiras a 451 graus: a temperatura que o papel queima. Um bombeiro começa a repensar sua função ao conhecer uma jovem encantadora que adora livros).
Serviço:
Espetáculo: “Por que não vivemos?”
Temporada: até 18 de agosto de 2019.
Dias e horários: de quarta a domingo, às 20h.
Local: CCBB Rio – Teatro I (Rua Primeiro de Março, 66 – Centro).
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