Premiado diretor Evaldo Mocarzel estreia “A Conquista da Peste”: ‘Instigar a sociedade exacerbada pelas redes sociais”


O espetáculo é inspirado pela obra de Antonin Artaud. Sergio Siviero e Tânia Granussi estrelam a montagem que põe em xeque questões contemporâneas das relações humanas. É ambientado em um futuro distante em que um personagem (Sergio Siviero) oferece o seu corpo em sacrifício para, além de resgatar o pensamento de Artaud, discutir temas que vão dos algoritmos mercantilistas à devastação ambiental, passando pela derrocada do machismo bélico e genocida

Premiado diretor Evaldo Mocarzel estreia "A Conquista da Peste": 'Instigar a sociedade exacerbada pelas redes sociais"

Quando se debruçou sobre a seminal obra do multiartista francês Antonin Artaud (1896-1948) para criar o espetáculo “A Conquista da Peste“, o autor e diretor Evaldo Mocarzel mal poderia imaginar que, findo o processo criativo, seria atropelado por uma pandemia mundial capaz de empoderar ainda mais as questões contemporâneas que coloca em xeque na montagem — cuja estreia acontece no dia 19 de setembro, no Auditório do Sesc Pinheiros, em São Paulo, com os atores Sergio Siviero e Tânia Granussi.

Sergio Siviero e Tânia Granussi vivem personagens a partir do universo artaudiano

“Meu objetivo jamais foi fazer uma peça biográfica sobre Artaud, pois Rubens Corrêa e Ivan Albuquerque já haviam encenado um memorável espetáculo (“Os Inumeráveis Momentos do Ser“) no Teatro Ipanema, no Rio, que vi três vezes. ‘A Conquista da Peste’ foi escrita há anos e já começava com um personagem tirando do rosto uma máscara cirúrgica. Foi talvez o vaticínio do horror que iríamos viver em 2020. Evaldo, depois de trabalhos premiados no cinema – o documentário “Quebradeiras” lhe rendeu o Candango de Melhor Diretor no Festival de Brasília em 2009 —, vem se dedicando cada vez mais ao palco. Ele assinou o texto da peça “Um Pai Puzzle“, encenada por Ana Beatriz Nogueira, sob a direção de Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia, e, ao lado de Ítala Nandi, a dramaturgia de “Paixão Viva“, solo que também dirigiu e que retomará em 2025.

Sempre tive em mente discutir e também fustigar a sociedade contemporânea, exacerbada pelas plataformas digitais e pelas redes sociais, intercalando esta minha inquietação, mesclada a uma certa indignação, com trechos do pensamento e da obra de Antonin Artaud (1896-1948) – Evaldo Mocarzel

O novo espetáculo é ambientado em um futuro distante em que um personagem (Sergio Siviero) oferece o seu corpo em sacrifício para, além de resgatar o pensamento de Artaud, discutir temas que vão dos algoritmos mercantilistas à devastação ambiental, passando pela derrocada do machismo bélico e genocida.

Tratamos de questões emergenciais de gênero e diversidade sexual, tendo uma personagem trans (Tânia Granussi), que comanda e subverte as convenções do próprio espetáculo, que é uma espécie de rito de imolação da figura masculina – Evaldo Mocarzel

A conquista da Peste

A conquista da Peste

Para moldar esses conceitos, Evaldo mergulhou de cabeça em obras como “O Teatro e Seu Duplo” e “Linguagem e Vida” (ambos de Artaud, lançados pela editora Perspectiva); “Antonin Artaud – Works on Paper” (The Museum of Modern Art – New York); “Eis Antonin Artaud”, de Florence de Mèredieu (também lançado pela Perspectiva); “Artaud – Pensamento e Corpo”, de Kuniichi Uno, e “Artaud o Momo”, de Artaud (ambos lançados pela N-1 edições), e ainda “Oeuvres Complètes – Antonin Artaud” (Gallimard).

“Inconformado com a verborragia histriônica das vedetes da cena francesa da época em que viveu, Artaud aproximou o teatro de vários ‘duplos’, como a crueldade, a alquimia e a peste, com o firme propósito de levar a explosão da própria vida aos palcos, deixando o espectador com as vísceras reviradas, como se tivesse passado por uma blitz da polícia. Este era o estado mental que ele desejava para o público ao final de cada apresentação. Embora não tenha conseguido realizar cenicamente a maior parte das suas ideias, Artaud deixou uma obra escrita imensa que contaminou várias gerações de artistas e que continua semeando novos caminhos performativos nos palcos brasileiros e mundiais”, avalia.

Realizador de diversos documentários com o Teatro da Vertigem, Evaldo há tempos nutria o desejo de trabalhar com Sergio Siviero. “Sempre foi um ator  que me fascinou nos arriscados espetáculos do coletivo. Além disso, ele tem uma relação visceral com Artaud. Foi à França conhecer as locações onde o artista havia transitado, incluindo o hospital psiquiátrico onde levou dezenas de choques elétricos e de onde partiu para se imortalizar como um dos nomes mais importantes da cena mundial de todos os tempos.”

É difícil não dar o braço a torcer às sincronicidades da vida, pois quando Sergio Siviero estava em isolamento, na pandemia, em 2021, pensando sobre a obra “O Teatro e a Peste“, de Artaud, seu telefone tocou e era justamente Evaldo do outro lado da linha. “Ele me ligou dizendo que tinha feito uma dramaturgia a partir de textos do Artaud e eu, na mesma hora, entendi que era tempo de falar sobre ‘as forças do destino’ que ele tanto evocara em seu tempo aqui na Terra. Artaud foi sempre uma obsessão para mim, desde que tinha 18 anos. Ele significa uma busca permanente de transmutação do humano e também do sentido do que é o ofício do ator. Neste trabalho, refletimos sobre o fim de um tempo: a natureza grita todos os dias em nossos ouvidos. Vivemos num mundo virtual onde nem conseguimos distinguir o que é real, verdade, ou falso. São os últimos estertores de uma era e esse assunto está contido no espetáculo”, reflete Sergio.

Indicada a Evaldo por Newton Moreno para ser a companheira de cena do ator em “A Conquista da Peste”, Tânia Granussi faz coro com Sergio e prevê muitas catarses para quem for assistir ao espetáculo. Desde que imaginou a concepção do espetáculo, Evaldo desejava que a personagem Phedra de Córdoba fosse encarnada por uma atriz trans. “O texto não traz diretamente a discussão de gênero, mas potencializa o jogo da interpretação com uma presença trans em cena — o verdadeiro corpo desprovido de convenções — ou, como diz Artaud,  ‘vamos dar às coisas a forma da nossa vontade’. E é este ser transicionado que conduz a grande experiência da cena. Trabalhamos o esvaziamento de tudo o que pesa. Abrimos mão de todas as âncoras e nos tornamos corpos sem órgãos. Vamos desatar. Quero que o público acesse esse lugar de reflexão”, torce Tânia.

Como já dizia Artaud, “uma palavra dita em um momento preciso pode enlouquecer uma pessoa”, instiga Sergio.