*Por Vitor Antunes
Com passagens de sucesso pela TV, incluindo aí “Um só coração“, da Globo, que foi reprisada no Viva, conversamos com Mika Lins, diretora mega premiada, cujo último trabalho como atriz foi nos palcos em “Memórias do subsolo”, de Dostoievski (1821-1881). Tão logo esta montagem saiu de cena, uma de suas melhores amigas, a atriz Bel Kowarick, apresentou o interesse de montar um texto inédito. Mika sugeriu um e propôs dirigi-la. Assim nasceu “Dueto para um”, peça inspirada na história verídica de Jacqueline du Pré (1945-1987), violinista inglesa que é impedida de exercer sua profissão devido à esclerose múltipla. A montagem foi vencedora de diversos prêmios, dentre os quais o APCA e o Shell. Desde então, Mika diz haver encontrado sua vocação: “Não tenho um dia de saudade de atuar, não sinto falta. Não que me negue a trabalhar como atriz, mas só penso em trabalhos como diretora. Eu adoro dirigir, cada hora surge uma ideia diferente”, relata.
Diante de um momento onde culturalmente muitas pessoas se identificam como atores, por mais que não atuem ou que desconheçam a profissão, a diretora os categoriza: “Há atores que são popularmente famosos, ou ainda os que são famosos entre seus pares e por isso são respeitados. Mas, o objetivo profissional das pessoas às vezes é diferente. Tem gente que quer ser ator e gente que quer ser famoso. E, a contrário da crença geral, eu não acho que os atores têm, necessariamente, que fazer teatro, bem como não acho que a televisão seja algo menor. Acredito, inclusive que a TV produz produtos incríveis. Eu não tenho essa questão. Mas, a ignorância com relação aos pares é curiosa. É uma luta! Creio que isso tem a ver com as escolas de teatro, e, em alguns casos, com a falta de curiosidade ou com uma dificuldade de ter acesso à informação”.
Sobre a questão contemporânea de os atores serem selecionados diante da quantidade de seguidores nas redes sociais, Mika é assertiva: “É algo bizarro quando a seleção de elenco perpassa pela quantidade de seguidores na internet. Claro que estar na internet não vai fazer dessa pessoa um bom ou mau ator, mas parece que na vida a gente sempre tem essa régua de mediocridade. Agora é a rede social, antigamente era um perfil étnico que era pautado por essa régua”.
PANDEMIA: O INVESTIR NA VERVE CONFEITEIRA E PEÇAS NA WEB
A pandemia exigiu aos atores doses cavalares de paciência e criatividade. Perto de completar 40 anos de carreira, sem palcos e com as montagens proibidas pelas medidas sanitárias, Mika Lins descobriu um talento do qual nunca havia pensado em investir: o da confeitaria. A verve confeiteira, iniciada em 2017, ganhou fôlego durante a pandemia, mas foi paralisada durante a crise sanitária: “Quis ensinar minha filha a trabalhar. Achava importante ela aprender uma profissão. Na pandemia fizemos muitos bolos por conta de as pessoas não poderem sair de casa e eu não estar trabalhando”, relata.
Entre o impalpável açúcar de confeiteiro e a palpável crise existencial dos personagens do autor de “Esperando Godot“, estreou “Play Backett”, uma peça nascida por acaso, também como reflexo da pandemia: “Eu ministrava um curso sobre como ler em voz alta. Daí, uma das alunas, a atriz Simone de Lucia comentou comigo, em particular, sobre uma peça de Beckett chamada “Improviso de Ohio”, que eu não conhecia e ela queria muito fazer. Eu me encantei com o roteiro, mas percebi que ela renderia apenas 15 minutos de montagem. Daí surgiu a ideia de fazer quatro peças curtas do Beckett em um espetáculo só. Eu as escolhi e a gente fez”.
O processo de ensaios foi iniciado ainda durante a pandemia, em janeiro. E deu-se em meio a leituras pelo Zoom, testagens virológicas e estudos com especialistas em Beckett (1906-1989). Sobre sua equipe, que compõe a Companhia Instável, Mika é elogiosa: “Eu tenho parceiros de trabalho muito bons. Os atores já trabalharam comigo e todos funcionam bem. Parece uma banda de rock”.
Quando os teatros ainda estavam fechados, a diretora encenou o último texto de Fernanda Young (1970-2019), chamado “Pós F“. Inicialmente, a autora, fazia as leituras. Estava em dupla com Maria Ribeiro, que à partida de Young, seguiu sozinha na montagem adaptada ao formato digital. Resultado que foi aprovado por sua encenadora: “Eu achei o teatro online incrível, um exercício de descoberta de linguagem e a gente, enquanto artista, se transforma a partir de estímulos. Em “Pós F” havia cinco câmeras, sob vários ângulos. Mas voltar ao teatro (com Play Beckett), ver a reação da plateia presencial é ótimo. O teatro é feito desta matéria, das pessoas”, analisa, e continua: “Claro que tem os puristas que tentam apontar ‘isso é teatro, aquilo não é teatro’, o que para mim é bobagem. A vida é dinâmica. E, sobretudo, nós vivemos uma tragédia! Tão pior quanto a pandemia é sermos geridos por uma política anticultura”, dispara.
A VILANIZAÇÃO CONTRA AS ARTES
Lins relata que a pandemia era presente, algo inevitável do qual não se podia escapar. Todavia a discussão vilanizada que tomou a praça pública, especialmente sobre a classe artística é, segundo ela, tão ou mais importante que a crise sanitária: “É grave esta vilanização a qualquer manifestação que seja contra a ciência, a imprensa e ao bem estar. É um dos cânceres do autoritarismo condenar qualquer pensamento, qualquer manifestação cultural, intelectual ou científica. Se houvéssemos discutido isso não teríamos artistas que passaram fome, artistas vivendo de cesta básica. Afinal, vivemos tempos difíceis já que fomos os primeiros a parar e os últimos a voltar. Então, quando entra-se na discussão purista do ‘o que é ou não teatro’ isso pra mim está do campo da superficialidade”, alega.
Sobre pessoas, incluindo aí alguns artistas, com discursos duros e preconceituosos contra minorias ou à própria classe, Mika os considera “desconectados com a realidade. (Parecem desconhecer) a própria história e a dos colegas, e isso passa ao largo do espectro político. Isso é ser ignorante. Não dá para conversar com esta gente, assim como não dá para conversar com homofóbico, com racista… Ser racista, além de ser burrice é uma cretinice, uma maldade!”, argumenta.
Forjada nos palcos teatrais, Mika teve experiências muito pontuais em televisão e teve uma carreira muito “ao avesso” no veículo: Fez sucesso na Band, onde estreou em 1988, passou pela Manchete e pelo SBT e estreou na Globo tardiamente, em 2004, em “Um Só Coração”. Sobre a teledramaturgia ela diz que poderia ter aproveitado mais: “Queria ter trabalhado mais na TV para que tivesse uma estabilidade financeira”.
ESTREIA NA BANDEIRANTES E A PREMIAÇÃO COM FRIDA KAHLO
Sobre sua estreia em “O Chapadão do Bugre”, alega que Walter Avancini (1935-2001) era “terrível”: “Hoje em dia seria processado por assédio moral. Porém, ainda assim, foi bacana minha estreia e consegui me lançar na TV sem ser na Globo”. Além deste, a artista destaca outros dois diretores em sua carreira: Nilton Travesso e Jayme Monjardim. O primeiro, por haver reposicionado o seu arquétipo: “Travesso me tirou do papel da cabrocha, da morena-que-parece-a-Sonia-Braga. Quando eu fiz “Floradas na Serra”, na Manchete, eu era uma vilãzinha, por que ele entendeu que eu poderia fazer este gênero. Depois, anos mais tarde, eu havia montado a peça “Frida”, numa época em que poucos falavam sobre Frida Kahlo (1907-1954), eu recebi o patrocínio de um banco, que, no meio do processo, desistiu de investir na montagem. E até consegui outro patrocínio, mas o dinheiro só veio muito depois. Eu estava tão endividada quanto premiada. De modo que procurei por Travesso pedindo um emprego e ele me inseriu em “Os Ossos do Barão”, que o SBT produzira em 1997”.
Quanto ao diretor filho da cantora Maysa (1936-1977), este confiou a ela um papel de mulher urbana, moderna e sexy na série “O Canto das Sereias”, de 1990. “Jayme era muito ousado, fomos para Fernando de Noronha gravar o projeto, sem nem haver um texto ainda. Ele virou-se a mim, pediu que eu confiasse nele, que cortasse o meu cabelo, que era enorme. O autor Paulo César Coutinho (1949-1996) escrevia o texto no avião”, relata. A série afamou-se por, no rastro de “Pantanal“, de 1990, explorar a nudez, especialmente das mulheres, mas não era algo muito diferente do praticado por outras TV’s. As cenas que fiz de nu na TV tinham muita coerência, inclusive nesta série, mas eram sempre os corpos da mulheres expostos. Nunca o masculino. Isso está mudando agora, no Brasil também. Essa exploração do corpo feminino vem do machismo ancestral… Essa questão da nudez está mudando. Tanto que no remake de “Pantanal” explora-se muito mais a sensualidade dos peões”, pondera.
O fato insólito da carreira da então atriz fica por conta de ela viver realidades bem opostas em algumas fases da vida: Enquanto fazia textos profundos no teatro, trabalhava em folhetins adaptados de textos mexicanos. Neste último destaca-se um trabalho que ela aponta ser o que mais gostara de fazer, a vilã Ester de “Os Ricos também choram”, dramalhão mexicano escrito originalmente por Inês Rodena (1905-1985) e adaptado por Marcos Lazarini em 2005: “Eu gostava de fazer a Ester, que era uma personagem muito folhetinesca. Eu acho que fazia bem, sem exageros, já que ela era uma mulher muito má. ‘Os Ricos‘ é uma novela que eu amava. Fora a amizade que fiz entre a Thais Fersoza e a Ludmila Dayer, além da direção do Henrique Martins (1933-2018), que era um grande diretor de atores, então me dava muito prazer em fazer”, relembra.
PROJETO INTERNACIONAL COM BEN KINGSLEY
Embora tenha estreado na Globo apenas em 2004, na série de Maria Adelaide Amaral que tratava sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, “Um Só Coração”, o début poderia ter acontecido muito antes, em 1989. Com um convite em mãos para fazer uma novela, a atriz resolveu fazer um teste para um projeto estrangeiro: “Eu havia feito um teste para um filme francês e deu tudo errado. Daí me indicaram para outro projeto estrangeiro, eu já estava mal-humorada por haver levado tantos ‘nãos’. Era um teste para fazer o filme “O Quinto Macaco”, mandei o portfólio, me mandaram ir ao Rio fazer o teste. Sem escolher muito, peguei o figurino que usara n’O Chapadão do Bugre e fui. Sem falar uma palavra de inglês. O filme era com o Ben Kingsley, que havia recebido o Oscar seis anos antes. Estava certa de que não passaria e fui surpreendida. Eu fui escolhida pelo próprio Ben. (…) Foi maravilhoso fazer o filme, estar durante meses, onde fui tratada com muita generosidade. Como eu não sabia inglês, contrataram-me um professor de prosódia. Kingsley, muito generoso, brigou em meu favor, me ajudou com a questão linguística. Foi incrível criar essa relação de confiança, de afeto uma experiência maravilhosa. O filme foi lançado em vídeo, não saiu em cinema e ainda é exibido na TV a cabo americana. O único problema que tive junto a eles foi que não me creditaram, mesmo sendo eu a protagonista. Tive que entrar com um processo, de modo que, judicialmente, tiveram que adesivar meu nome em todas as cópias da fita”.
Perguntada sobre a alma dos personagens de Beckett, se eles poderiam ser brasileiros, a diretora afirma: “Nas peças de Beckett todas as pessoas são sobreviventes. São um pouco clowns, um pouco tristes. São pessoas que além de serem invisíveis, não deram certo. Não existe arte se não falarmos daquilo que é estranho, diferente, do estragado, do conflito. A beleza está nessa contradição, nesse paradoxo”. Deste modo, não era difícil encontrar este personagem nacional ali. Não era um dos mendigos/clowns da peça. Era um homem que “stanislawskinianamente” estava sentado na porta do teatro. E, tal como outros tantos da noite paulistana, em vez de Godot, esperava Brasil.
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