*por Vítor Antunes
Impossível falar da história do teatro brasileiro contemporâneo sem citar Bárbara Heliodora (1923-2015). A crítica e ensaísta era tida com um misto de temor e respeito pelos atores. Bárbara era dotada de opiniões assertivas, por vezes duras, que geravam respostas de amor e ódio. É o que fala o professor e pesquisador teatral Luís Francisco Wasilewski: “Bárbara era capaz de conseguir despertar a mesma fúria que costuma ser direcionada aos árbitros de futebol. A ela ainda paira uma aura ame-o ou deixe-o por mais que tenha falecido há muitos anos”. Junto com os escritores Liana de Camargo Leão e Walter Lima Torres, Wasilewski está escrevendo um livro que revisita não apenas a obra de Heliodora e suas críticas incisivas, mas também traz depoimentos de amigos próximos como Fernanda Montenegro, Jacqueline Laurence e Flávio Marinho. Luís Francisco também traz ao debate a importância de Bárbara enquanto feminista, já que era a única mulher a ocupar o cargo de crítica num ambiente essencialmente masculino. “Seus detratores chamavam-na de lésbica como forma de diminuí-la, e lançaram mão da orientação sexual para isso. Mulheres em cargo de poder assustam”. A previsão de lançamento do livro sobre Heliodora é 2024.
Outro ponto que Wasilewski traz à baila, especialmente em razão do Mês do Orgulho LGBT, é a revolução através do humor, promovida nos Anos 1980 especialmente com o Teatro Besteirol, manifestação teatral comic–queer daquela década e que revelou Mauro Rasi, Vicente Pereira , Guilherme Karan e Miguel Falabella. “Os autores deste gênero eram, em sua maioria, assumidamente gays, lançavam mão do recurso do travestimento, o que também é um recurso estético gay. Surgiram ali para debochar um pouco tanto da direita estabelecida como da esquerda militante, quando traziam os temas do cotidiano. O Besteirol trouxe para o teatro brasileiro o riso naquela época de grande sisudez”.
PALAVRAS BÁRBARAS
Até 2015, quando faleceu, dentro das coxias, os atores sempre se perguntavam: “A Bárbara tá na plateia?”. Com opiniões que transitavam entre o rigor e a acidez, Heliodora marcou seu espaço na cena teatral brasileira. Há, inclusive, quem aponte que ela é insubstituível em sua função. Uma dessas pessoas é o pesquisador teatral Luís Francisco Wasilewski. Autor de livros, teses e dissertações sobre os comediógrafos Mauro Rasi (1949-2003) e Vicente Pereira (1950-1993). Francisco alia-se às escritoras Liana de Camargo Leão e Walter Lima Torres num novo projeto literário, que objetiva revisitar a vida e carreira de Heliodora. Conta-nos Luís Francisco que “Liana Leão já havia escrito sobre a Bárbara e com ela esteve na publicação de “Reflexões Shakesperianas” e ajudou-a enquanto a crítica estava adoentada, de modo que esse projeto de celebrar os 100 anos de Heliodora é de Liana”. A Luís Francisco, que é um dos autores, coube falar sobre Heliodora no âmbito do Teatro Besteirol, gênero cômico que, ainda que fosse muito popular, não era bem visto pela intelligentsia. E Bárbara o apoiou desde o nascedouro: “Viam-na como se ela houvesse enlouquecido quando criticou positivamente o Besteirol. Mas, para ela, era uma volta à comédia de costumes do Martins Pena (1815-1848). Foi a defensora tanto do Falabella como do Karan, como do Rasi. Tanto era apoiado por eles que coube a ela escrever o prefácio do livro “Eu, minhas tias, meus gatos e meu cachorro“, de Mauro Rasi, publicado em 2003.
A opinião de Bárbara era tão decisiva naqueles idos que dizia-se que ela poderia definir o sucesso ou o fracasso de uma montagem. Uma peça gaúcha chamada “Casadíssimas”, ao chegar ao Rio e ter sida avaliada negativamente por Heliodora, teve uma queda significativa de público. “Se meu ponto G falasse“, de Júlio Conte a contrário, foi bem sucedida. “Alta Sociedade” de Mauro Rasi também foi criticada por Bárbara a despeito de ter amigos seus no elenco, e teve vida curta. “É muito ruim falar mal dos meus amigos”, dizia ela.
Bárbara foi atriz antes de se colocar como avaliadora das montagem teatrais. Encenou Hamlet em 1948, quando precisou sair da montagem pois havia engravidado de uma de suas filhas a também atriz Patrícia Bueno. Por ocasião da licença, foi substituída por Cacilda Becker (1921-1969), algo do qual se orgulhava. “Heliodora não se considerava atriz”, afirma Wasilewski, “cria ter nascido para ser plateia”. Com a partida de Bárbara, Francisco crê não haver ninguém que a alcance. “Não há ninguém à altura dela. Não vejo em ninguém essa função, esse poder. Mesmo na Internet não há alguém com o mesmo lastro e gabarito. Há quem faça release em vez de análise”, dispara.
MADRINHA DO BESTEIROL
Num dos artigos de Wasilewski ele intitula Heliodora como “madrinha do besteirol “, exatamente por ela haver acolhido o gênero quando ele era ignorado ou desprezado por seus pares. Antes de falecer, Bárbara define que Paulo Gustavo (1978-2021), Ingrid Guimarães e Heloisa Perissé, seriam os sucessores do estilo. A crítica positva que fez à Mônica Martelli em “Os Homens São de Marte e é para lá que eu vou“, catapultaram a carreira da atriz, que também se dizia grata à ex-colunista de O Globo. “Creio que Bárbara, com o seu poder, abriu o mercado para o cinema brasileiro já que as peças baseadas em “Os Homens…” e “Minha mãe é uma peça” viraram um sucesso.
Nos Anos 1980 explodiu um gênero de humor tipicamente carioca, o Besteirol. O nome, aliás advém de uma crítica que tentava menosprezar o gênero, por conta do humor ligeiro, calcado em esquetes, e com uma estética gay: “Os autores, em sua maioria, eram assumidamente gays, havia o uso do travestimento e um alto grau de deboche à política – tanto à direita estabelecida como da esquerda militante. Eles trouxeram temas do cotidiano que estavam fora do teatro brasileiro daquela época, muito sisudo”. Luís Francisco escreveu os livros “O Teatro de Vicente Pereira”, pela Imprensa Oficial e organizou “Ifigênia em Sodoma e Outros Textos Curtos“, de Mauro Rasi, pela Giostri.
Ao ver de Wasilewski há personalidades humorísticas que se destacam na cena contemporânea, como Marcelo Médici, Grace Gianoukas, Ilana Kaplan e o jovem Diogo Verardi – da página Malhassaum, do Instagram.Porém lamenta a patrulha do politicamente correto que, a seu ver é excessiva. “Limita muito. Há atrizes que se identificam como a travesti, outras, como Rogéria (1943-2017), diziam ser o travesti. Há questões que margeiam com a Censura. Certa vez eu faria uma leitura de uma carta do Caio Fernando Abreu (1948-1996) e evitei por conta de ele usar a palavra homossexualismo [sic] , que hoje é politicamente incorreta”.
20 anos da morte de Mauro Rasi, 30 de Vicente Pereira. Ambos encontram-se em momentos diferentes na historiografia teatral. Rasi está sendo reencenado em “A Cerimônia do Adeus”, no Teatro Copacabana. Já Vicente Pereira, é algo ofuscado. “Muito se deve à não edição de suas obras, diferentemente de Mauro, que além de tudo terá uma peça adaptada para o cinema, “Pérola”, protagonizada por Drica Moraes“. Diante de tantas historias e tantas vidas vividas no teatro, a vida e o palco continuam. E, como negamo-nos a deixar esquecer Vicente Pereira, como ele próprio dizia, estaremos sempre que possível “Segurando o turbante e seguindo o ritmo”.
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