O que uma chave, um lenço e um CPF tem em comum? Para muitas pessoas tais itens podem não ter conexão nenhuma, mas Fabricio Moser e o ator, artista visual e contador de histórias Cadu Cinelli podem listar diversos adjetivos que tornam os três muito semelhantes a começar pela palavra abandono. Para início de conversa, são objetos pessoais que contam histórias sobre uma apresentação, um lugar e um espectador. Ao todo, a dupla carrega consigo mais de vinte e cinco quilos destes pertences deixados pelo público que assistiu a peça ‘Duo Sobre Desvios’ há dois anos. O projeto é totalmente experimental e conta com a participação da plateia que se torna um coautor do espetáculo. Cenas diferentes que falam sobre abandono são apresentadas através de pequenos fragmentos de inspiração nas obras do artista visual cearense Leonilson, do poeta mineiro Bartolomeu Campos de Queiroz, da música da islandesa Björk e da literatura do dramaturgo russo Anton Tchekhov. “Fazia dois anos que não fazia esta peça e essa temporada no Rio (eles ficaram em cartaz em agosto na sala Baden Powell) foi muito instigante e diferente, pois são tantas histórias deixadas que já esquecemos uma parte, não tem como lembrar todas. Muita coisa mudou, por tanto tivemos novos abandonos. Desde essa época, eu perdi os meus pais, por exemplo, e queria coloca-los de alguma forma na peça. Espero estar mais maduro. Muita gente fala que este espetáculo vai perdurar porque abandonar faz parte da vida das pessoas e é algo que sempre se recicla, porque sempre lidamos com tais situações. A nossa proposta é um pouco contemporânea no mercado e foi um dos motivos que nos estimulou a começar. Queríamos que o público fosse coautor da peça de forma orgânica e experimental a cada apresentação”, explicou o ator, diretor e professor Fabricio.
O projeto experimental desta peça nasceu de uma forma completamente inusitada. Inicialmente, o espetáculo tinha tudo para ser uma performance normal de um dos textos do mineiro Bartolomeu Campos de Queiroz, próximo à estreia, a dupla descobriu que não tinha conseguido os direitos autorais para a apresentação o que veio por derrubar tudo o que ambos já haviam feito até o momento. “Tivemos que pedir autorização dos advogados do Bartolomeu, que morreu no ano passado. Estávamos a um mês e meio da estreia quando recebemos a mensagem. Não sabíamos o que fazer, estávamos frustrados. Precisamos abandonar o texto e toda a preparação que tivemos para criar algo novo e, com isso, resolvemos nos aproveitar deste processo que passamos para incrementar o espetáculo. Fomos levados por esta situação a desviar da dramaturgia que queríamos para aceitar o abandono. Perguntamos a várias pessoas como elas lidavam com isso e montamos a peça. As coisas já estavam encaminhadas, só procurei uma nova possibilidade”, considerou Fabricio.
Apesar de ter um enredo completamente diferente, a vontade de haver uma interação maior com o público já existia. A mesma coisa aconteceu com a forma de compor as cenas. Cadu e Fabricio queriam um espetáculo que unisse a dança, a música, o teatro e linguagens narrativas, poéticas e videográficas. “Nós queríamos desde o início trabalhar entre as fronteiras de linguagens. Existem várias cenas diferentes, algumas com dança, outras mais teatrais, outra de interação com o público e outra com projeções. Queremos trazer um frescor as práticas teatrais atuais com um modelo mais experimental”, elencou. Ao contrário do que possa parecer a peça não perdeu a sua essência em momento algum e teve um conteúdo diferente e inusitado conforme a dupla almejava desde o início.
Com o objetivo final claro na cabeça, foi preciso que Cadu e Fabricio tivessem alguma base para sustentar seu discurso feito às pressas por estar perto da estreia. Apesar do curto espaço de tempo, ambos se jogaram de corpo e alma neste desafio embarcando em uma pesquisa interminável sobre tipos de abandonos diferentes. No meio desta busca, a dupla recorreu a amigos e conhecidos para entender o que significava ser deixado para eles. Era importante que o texto do Bartolomeu Campos de Queiroz não fosse a única fonte de inspiração para a criação deste espetáculo. “Começamos a buscar referências em outros trabalhos. Nesse processo surgiu A Gaivota, do Tchekhov, que achamos ser importante para a composição do trabalho. Nosso objetivo era encontrar outros processos que nos levassem para além do texto do Bartolomeu, que foi a nossa inspiração. Fizemos cenas curtas de cada texto e cortamos no meio”, contou. Dessa forma, era possível utilizar várias obras diferentes sem necessitar dos direitos autorais visto que ambos atuavam por apenas alguns segundos o texto dos outros atores. “No entanto, as maiores influências da peça vieram de dentro de nós dois e das outras pessoas que escutamos. Recebemos, por exemplo, poemas e músicas de vários convidados”, completou.
O enredo é alterado dia após dia ao longo da temporada, afinal, a cada nova apresentação uma emoção diferente é despertada pelo abandono dos espectadores o que motiva ainda mais as inspirações destes dois atores. Ao tentar englobar todas as formas de desapego, ambos convidam o respeitável público a se libertar de uma história que o tocou por tanto tempo e deixá-la no palco para emocionar outras pessoas. Coisas boas ou ruins, não importa qual seja o abandono o que a dupla prega é a libertação de atitudes e situações que o predem ao passado. Esteja esta história em um objeto ou nas palavras de cada um. O que acontece, no final, é praticamente uma grande terapia em cena. “Em Curitiba, um americano disse que veio dos Estados Unidos para se casar com uma brasileira que, no final, acabou se mudando de estado e o trocou ele por uma oportunidade de emprego. Um outro rapaz contou que foi abandonado pelos pais, mas festeja isto porque se encontrou na família que tem atualmente. Eu, por exemplo, relembro que me casei mas tive que me separar da pessoa depois de um mês por não ter dado certo. Além destes depoimentos, as pessoas já deixaram bolsas, sapatos, título de eleitor, carteira de motorista, CPF, alianças e chaves de outras casas que não usavam mais. Ao todo, temos vinte e cinco quilos de objetos que, a cada noite, retiramos das caixas algumas peças e recontamos o que lembramos”, relembrou o ator que se libertou de cinco itens pessoais.
Convencer uma pessoa a deixar uma carteira de motorista, um documento necessário para o dia a dia, no palco não é uma tarefa fácil. Existe loucura para tudo, mas nesse caso o abandono é muito mais simbólico que isto. Para iniciar o diálogo e mostrar como é bom este processo, a dupla tenta encorajar os outros expondo suas dores mais profundas. “Existem fragmentos que foram criados por nós, além das partes que buscamos na literatura, teatro e na música. Ao encorajar as pessoas a abandonarem algo, dou o exemplo de cinco coisas que estou deixando ali e são da minha vida pessoal. Foi um desafio que nos lançamos durante o nosso processo criativo. O Cadu deixa um lenço de sua avó, uma mochila de seus relacionamentos passados, uns cabelos usados ocasionalmente e eu libertei-me de roupas que não usava mais, de um travesseiro presenteado por um ex-namorado e bichos de pelúcias que colecionei. Começamos o processo de abandono nos expondo para depois convidar o público a fazer o mesmo. Acabamos precisando controlar o tempo da peça, porque as pessoas se empolgam”, brincou Fabricio.
Contar memórias pessoais para mais de quatrocentas pessoas na Sala Baden Powell com certeza não foi algo fácil para o público. No entanto, a grande maioria das pessoas embarca na narrativa da peça sem saber que, no fim, haverá um convite como este para deixar história e objetos nos palcos. No caso material, os convidados podem deixar algo que vá fazer falta, de alguma forma, em suas vidas, como é o caso dos documentos. “Acaba sendo mais fácil para as pessoas abandonar histórias do que objetos, elas parecem ter medo de deixá-los. No entanto, não existe muita divergência entre estas duas formas, porque a galera abraça a causa. Já recebi muitas mensagens com pedidos de obrigada de amigos e colegas dizendo que quando chegaram em casa colocaram muitas roupas para doar. Queremos experimentar as diferentes formas de abandono de uma maneira que não seja traumática, para que o público possa enxergar novas oportunidades e libertação de novos espaços”, explicou.
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