Para falar de sentido: um olhar de dentro do hospital jogando luz para a valorização da vida


Neste artigo, a jornalista e escritora Brunna Condini reflete a partir de uma experiência pessoal sobre a humanização do tratamento para quem precisa de cuidados de saúde, exalta o que funciona e provoca: “Inexorável é que um dia todos não estaremos mais por aqui. Então, enquanto estamos, não custa lembrar de fazer valer. O que te faz feliz? Quando e como você fica mais leve? Quando a paz te invade? Você tem sorrido ou sentido mais medo? Sei que o momento que atravessamos é crítico e de alguma fragilidade para todos, mas também não é a oportunidade de mudar pontos de vista? O que temos a perder? Cuidar de si pode ser cura além do que se vê, na saúde e na doença. Você é raro, não se abandone”

*Por Brunna Condini

É difícil falar de doença e morte em tempos de pandemia e mais de 545 mil mortos por Covid no país. É tabu falar de morte e doença em qualquer tempo, pelo menos aqui pelo Ocidente. Mas imagine você, que vamos falar de vida. Imagine que vamos falar de uma vida para enaltecer outras. É fundamental falar de vida e acolhimento em tempos tão duros.

E se permitir enxergar experiências de vários lugares. Gosto de experimentar pontos de vista e este momento tem nos desafiado a isso. Como se não bastasse, alguém que eu amo muito está hospitalizada. Uma amiga, uma cunhada, nossa Ana Paula Peres de Carvalho. Ana atravessa um câncer avassalador no colo do útero. E falar de câncer também é tabu. Mas é preciso falar da doença e exaltar o quanto a vida precisa ser valorizada, e que nesta viagem os significados fazem o caminho menos tortuoso. “A morte é um excelente motivo para buscar um novo olhar para a vida”, diz Ana Claudia Quintana Arantes em seu inspirador livro ‘A Morte é um dia que vale a pena viver’. Como eu, Ana Claudia quer falar de dar sentido ao trajeto, com coragem – que tantas vezes nos falta em nossa humanidade mais profunda – sobre os tabus que cercam o tema. Ana Claudia fala da morte como ponte para a vida.

Me identifico. Como jornalista e escritora, falo das histórias dos outros para falar de vida. Escrevo para dar voz ao que é de interesse geral, caro para a sociedade. E hoje, escrevo para falar daqueles que têm cuidado e acolhido a nossa Ana. Quero pensar no porquê as pessoas fazem o que fazem. Vendo os profissionais de saúde dentro do Hospital Municipal Rodolpho Perissé, em Búzios, região litorânea do Rio de Janeiro, onde Ana está internada há quase dois meses, fico me perguntando que história está por trás das suas chegadas até ali. Quem foi chamado pela vocação e quem o caminho guiou? O que está por trás das mãos que cuidam com tanto zelo de estranhos?

Mas antes, quero compartilhar alguns aprendizados. Aprendi que o câncer são ‘células rebeldes’, porque o que dá origem a ele é a ‘rebeldia’ de uma única célula que passa a se comportar com uma ‘célula de vida livre’ e se torna um câncer, se reproduzindo de forma desordenada sem se preocupar com a saúde do organismo. Uma célula egoísta se torna um câncer, imagine. E o câncer, esse ‘egoísta’, tem me ensinado. Penso nesse comportamento na sociedade. Em como é adoecido quando as pessoas colocam seus interesses em primeiro lugar em detrimento do ambiente e dos demais com que se relacionam. Neste sentido, é o antônimo de altruísmo, que é o que mais tenho visto entre os profissionais do hospital que se tornou – infelizmente, porque gostaríamos dela ao nosso lado – um segundo ‘lar’ no período de internação da Ana.

Dizer que lá o tratamento é humanizado deveria ser óbvio, já que em nós a humanidade deveria ser a essência. Mas sabemos como funciona Brasil afora, sejam pelas razões que forem. Em nosso país falta tudo: desde profissionais, medicamentos, suprimentos até o olhar que se esvazia para o outro. Mas não neste hospital. Ou pelo menos, não com todos com que a Ana cruzou ou passou pelas mãos. E isso precisa ser exaltado. Um paciente é um indivíduo e não busca apenas a solução de um problema de saúde, mas também alívio e conforto pessoal. Busca através dos olhos do profissional que está diante dele, algum alento, a escuta, o sorriso, a cumplicidade e alguma esperança. E vocês, caros leitoras e leitores, não têm ideia de como isso pode ser difícil de conseguir em uma rotina exaustiva dentro de um hospital. Ainda mais em plena pandemia. Mas no ‘Rodolpho’ tem acontecido. A nossa Ana tem sido olhada. E isso, de alguma forma, aquece nossos corações que andam tão apertados dentro do peito. E o apoio vem de todos os profissionais envolvidos: começando pelo atendimento na secretaria de saúde, passando pelas enfermeiras, técnicas de enfermagem, médicos, as assistentes sociais, psicólogas, profissionais da limpeza, segurança, alimentação, os maqueiros. E como costumamos destacar o que não é bom, também é preciso exaltar o que funciona.

São muitas histórias que cada um carrega quando vai trabalhar. Imagino como lidam com o risco de contágio da Covid em casa. Imagino como lidam com o medo de adoecerem, e terem eles, de serem cuidados. Penso em como deve ser difícil para muitos não conseguirem acompanhar tão de perto o crescimento dos filhos, já que as cargas horárias dos profissionais da área costumam ser exaustivas. Me questiono como conseguem lidar com tudo isso e a dor alheia. Mas viver é milagroso e têm luzes que se acendem dentro de nós através da vida dos outros. Vejo profissionais dentro da minha experiência neste hospital que insistem em não ‘acostumar’ o olhar ao que veem diariamente. E isso me faz continuar acreditando que sempre é possível fazer algo para dar algum conforto ao sofrimento alheio. E lhe digo, não aceitem ouvir que ‘nada’ pode ser feito pelos seus, quando estiverem em situação similar, porque sempre há o que ser feito para que o outro se sinta melhor. A sensibilidade não impede o profissional de exercer suas funções com competência. Pelo contrário. Atenção e afeto curam para além de um diagnóstico.

Escrevo também para falar de empatia e comprometimento. É bom perceber que existem lugares em que as pessoas apesar das limitações que as cercam, tentam fazer o que podem de melhor. Dá esperança na humanidade. Sei que a experiência com saúde pública no estado e no país são precárias e com histórico de desamparo para a população. Mas quando uma luz se acende, mesmo que num universo de 40 mil habitantes, como é o caso deste único hospital em Búzios, acredito que isso pode ser transformador. Cada ser humano é único, com sua história e quando está em um hospital, é para curar ou amenizar suas dores, que vão muito além do corpo físico. O sofrimento emocional também deve ter atenção, respeito. E estar tão presente em um hospital e perto dos que atravessam algum sofrimento, me fez pensar irreversivelmente sobre o sentido da vida. Vocês, que me leem agora, sabem para onde estão indo com suas vidas? Refletem se está valendo a pena a viagem por aqui? Pensam no significado que suas escolhas representam?

Inexorável é que um dia todos não estaremos mais por aqui. Então, enquanto estamos, não custa lembrar de fazer valer. O que te faz feliz? Quando e como você fica mais leve? Quando a paz te invade? Você tem sorrido ou sentido mais medo? Sei que o momento que atravessamos é crítico e de alguma fragilidade para todos, mas também não é a oportunidade de mudar pontos de vista? O que temos a perder? Cuidar de si pode ser cura além do que se vê, na saúde e na doença. Você é raro, não se abandone.

P.S. – Mulheres, meninas, mantenham seus exames em dia. Cuidem-se com amor.