Em O Homem de la Mancha, o diretor Miguel Falabella conseguiu encontrar o elo perfeito entre o passado e o futuro. Na adaptação da obra literária de Miguel de Cervantes, o artista brasileiro deu um caráter ainda mais atual ao texto ao transformar o pano de fundo do porão da Santa Inquisição para um hospital psiquiátrico dos dias atuais. Quando as cortinas se abrem, o público não consegue ter nenhuma pista do que vem por aí, afinal, o cenário consegue passear tranquilamente entre um hospício em situação de calamidade e uma prisão da Idade Média. Mesmo com esta diferença clara, todos os momentos primordiais do espetáculo estão bem claros em cena, ou seja, ele foi capaz de trazer um caráter contemporâneo sem deixar de lado este lado obscuro do tribunal que condenou o espanhol na vida real. “Achei que a opressão do porão da Inquisição Espanhola já tinha sido feito à exaustão. Queria uma leitura nova do Dom Quixote. Escolhi o hospício por também ser um lugar muito opressivo”, comentou Falabella. Assim como acontece no espetáculo original, o público consegue identificar as pessoas que eram marginalizadas pela Igreja Católica como prostitutas, pensadores, criminosos e ‘hereges’ neste ambiente hospitalar.
O espetáculo é totalmente autobiográfico e por isso vemos o próprio Cervantes em cena. Na trama, um doente mental que acredita ser o autor tenta fugir do julgamento que, no caso, é feito pelos internos ao apresentar uma singela peça de teatro que relata as aventuras de Dom Quixote. Dessa forma, Cleto Baccic, que interpreta o protagonista, tem o dever de atuar três papéis ao mesmo tempo: o escritor, o anti-herói e o louco. “Fazer esta montagem é estar na corda bamba. Parece clichê falar isso, porque esta é a rotina do ator, porém esta obra tem uma cobrança literária a mais e várias outras exigências que pesam no trabalho. Quando o Miguel Falabella trouxe este texto para o Brasil ele piorou o meu trabalho, no bom sentido, pois precisei compor estes três nuances dentro de uma pessoa só. Sendo assim, o meu personagem acredita ser esta personalidade histórica. Quando soube disso, voltei para casa super preocupado depois de horas de ensaio, e fiquei tentado pensar como faria. Foi um processo muito instintivo aonde acabei imprimindo um movimento repetitivo, principalmente na mão esquerda, para assemelhar a esta loucura”, explicou Baccic. O mais sensacional é que durante uma recente pesquisa, o ator descobriu que Cervantes realmente tinha ido à guerra e tinha sido ferido exatamente no braço esquerdo.
Outro caráter novo deste espetáculo é a inspiração que Miguel Falabella teve na história de Bispo do Rosário. “Achei que esta união combinava pelo trabalho dele ser tão barroco quanto Cervantes”, explicou o diretor. Esta intersecção pode ser vista tanto em alguns elementos de determinados figurinos, como o padre da peça, ou no próprio cenário já que o nome de cada pessoa do elenco está escrito da mesma forma como Bispo bordava nas janelas e painel. “Ele era um cara que dominava as pessoas através das linhas, pois escrevia o nome de quem simpatizava para mostrar a Deus no juízo final e a montagem fala deste tribunal que vai julgar as pessoas. Esta é uma personalidade que pouca gente conhece e por isso é importante contar esta história”, comentou Baccic. Apesar de ser inspirado em uma história espanhola, Miguel Falabella conseguiu imprimir brasilidade a partir desta união com a narrativa do sergipano. “O que acho muito legal do Miguel é que se a pessoa não souber, vai achar que foi ele que escreveu aquela história, porque ele realmente consegue ter autoridade nas palavras e trazer para a nossa realidade brasileira. Os momentos pontuais da peça estão ali”, completou o protagonista.
O espetáculo mostra um ambiente marginalizado, degradado e totalmente abandonado pelos médicos que deveriam tratar aqueles pacientes mentais. Apesar de ser tudo fruto de uma literatura antiga, a realidade atual do nosso país não se limita somente à inspiração de Bispo do Rosário. É possível ver brasilidade em cada personagem. “A peça é política, não precisei colocar nenhum elemento nela neste sentido porque já tem. Este texto fala sobre as mazelas e a necessidade de melhoria do povo e nós sempre teremos algum ponto para evoluir”, garantiu Falabella. A obra de Dom Quixote se sustenta exatamente até hoje por mostrar outro lado da realidade, afinal, que vai contra o sistema pode ser considerado louco ou ficando às margens da sociedade.
“Consigo enxergar o nosso cenário político e a nossa realidade brasileira de luta, além desta ideia quixotesca de que podemos nos reerguer como uma nação”, comentou Sara Sarraes, a atriz que interpreta Aldonza, ou, sob os olhos de Dom Quixote, Dulcinéia, que já foi vivida nos palcos por Bibi Ferreira há 40 anos. Na trama, esta personagem cresceu sem os pais e por isso acabou se tornando uma prostituta. “Ela é uma mulher totalmente desiludida com a vida e violentada, mas Dom Quixote vê nela delicadeza, doçura e acaba se apaixonando. A partir deste olhar, ela se redescobre e percebe que é uma mulher digna de amor e respeito”, explicou. Sendo assim, através da desconstrução desta princesa, a atriz conseguiu enxergar elementos do movimento feminista, já que ela consegue se reerguer e ver o seu valor a partir de uma sociedade machista e opressiva. “Acho que a Aldonza é extremamente empoderada, porque precisa se fortalecer para viver naquele ambiente de agressão aonde é tratada como um objeto. Mesmo sendo um elo fraco, consegue se impor”, sugeriu.
Confira a galeria de fotos com alguns famosos que foram prestigiar o espetáculo:
O Homem de la Mancha fala sobre temas atuais e retrata a realidade social brasileira. O espetáculo é ácido e induz a reflexão do público ao mesmo tempo que arranca risadas e impressiona com os números musicais. “A obra de Cervantes sempre será importante, porque estaremos sempre tentando evoluir. Porém, hoje em dia, ainda existe muita dor, crueldade e maldade. Em um momento da peça, ele fala que já viveu angustias, fome e violência e isto é o que eu vivo no meu dia a dia. Vejo crianças tendo fome porque um sujeito tirou dinheiro da merenda escolar, filhos morrendo por uma bala perdida na escola, policiais sendo mortos em confrontos, mulheres sendo violentadas e várias outras questões que aparecem na peça. Convivemos com a violência social e política e estas notícias diárias também ficam em mim. Acredito que Dom Quixote, este anti-herói, tenha sido um mundo ideal criado pelo autor para aliviar destas dores que via no mundo real”, comentou Baccic.
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