No Brasil despedaçado, a importância de Marília Mendonça


A sua visibilidade ajudou-nos a compreender por meio da música a força da mulher e de uma juventude que luta sistematicamente contra a nossa sociedade misógina e jamais meritocrática. Ela venceu trabalhando. É um exemplo

*Por Vagner Fernandes

O Brasil está despedaçado, entristecido, exaurido. Parece estarmos condenados como Sísifo a carregar uma pedra nas costas para o alto da montanha, da qual consecutivamente rola, impondo-nos um ciclo interminável de esforço repetitivo. Está pesado. Está sofrido. Está difícil sobreviver ao caos político e econômico, à crise sanitária, às mortes que perpetuam o nosso drama existencial. A gente vai à missa, busca fechar o corpo no terreiro, corre para o centro kardecista, lança mão dos mantras budistas. E nada. Parece inútil virmos rogando por alguns dias de paz. Parece que Deus trocou de mal com os brasileiros. Logo ele que sempre acreditamos ser nosso compatriota.

Não há um único intervalo em 24h que não falemos de morte, de dor. A tragédia com a cantora Marília Mendonça amplificou a nossa sensação de impotência diante dos horrores que vivemos. Não por ser artista. Mas por traduzir, quer gostem ou não do gênero a que estava associada, um país solar, feliz e generoso com o qual sonhamos resgatar. E não conseguimos. Não é por acaso que a imprensa está se dedicando a cobrir intensamente o velório e o sepultamento da cantora e compositora. A sua visibilidade ajudou-nos a compreender por meio da música a força da mulher e de uma juventude que luta sistematicamente contra a nossa sociedade misógina e jamais meritocrática. Ela venceu trabalhando. É um exemplo.

Marília Mendonça (Foto: Instagram)

A morte repentina da goiana fez até mesmo com que o presidente Jair Bolsonaro rompesse o silêncio para externar solidariedade aos familiares daquela que declarou publicamente aversão a seu governo. Marília era antibolsonarista convicta. Uma das poucas exceções no universo sertanejo. O Brasil precisa de mais Marílias. Não as de Dirceu, objeto de contemplação, que não fala, não se expressa. Mas de muitas outras Mendonças, personificação da emancipação feminina, da luta por liberdade e igualdade. Não é qualquer pessoa que reúne três milhões de espetadores numa live, a maior do mundo. Não é qualquer artista que em tão pouco tempo registra 324 canções no ECAD. Um fenômeno.

O destaque midiático da tragédia não menoriza as vítimas da pandemia, não silencia os gritos contra Bolsonaro em Glasgow onde acontece a COP26, não omite os desdobramentos da CPI da Covid. Mas falar veementemente de Marília Mendonça neste momento também é uma forma de trazer luz para audiências incomensuráveis sobre questões para as quais as emissoras não dedicam programação e nem tempo suficientes. Sem dúvidas, é muito menos complexo tornar compreensível para as mulheres brasileiras a importância da batalha por protagonismo com os versos “De mulher pra mulher: supera!” do que propor uma discussão em torno de “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir. Uma coisa não exclui a outra. São somente processos diferentes para a construção de um feminino autônomo e libertário. Marília fica.