Ney Latorraca: ‘Sem vida social, lidei com meus fantasmas e inseguranças, faltas e saudades. Sou novo homem’


Com pensamento positivo, o ator começa o ano de 2021, torcendo para que tudo retorne à normalidade e que a pandemia da Covid-19 seja apenas uma lembrança ruim. Nesses 10 meses, ele não faz mais suas caminhadas matinais na lagoa Rodrigo de Freitas. Só saiu de casa duas vezes para votar. “Rezo sempre de manhã para todo mundo e pelo planeta. Quando tudo passar, o que eu mais desejo é abraçar as pessoas, matar as saudades dos amigos”, explica. Foi longe deles que, em 2020, o artista, um dos mais reverenciados do país, recebeu seu mais recente troféu, em transmissão online, como homenageado do ano no Prêmio APTR de Teatro. “É sempre uma prova de amor, carinho e respeito”, afirma. Ele não vê a hora de poder retornar aos palcos, levando adiante a comédia musical ‘Seu Neyla’, que iria estrear poucos dias depois de ser decretada a quarentena

Ney Latorraca: 'Sem vida social, lidei com meus fantasmas e inseguranças, faltas e saudades. Sou novo homem'

* Por Carlos Lima Costa

Um dos maiores atores do país, Ney Latorraca poderia se debruçar sobre as glórias diante de tantos trabalhos emblemáticos, nas mais variadas vertentes, ao longo de 56 anos de carreira. Na memória coletiva do país estão personagens como Barbosa, do humorístico TV Pirata, o Conde Vlad, da novela Vamp, a dobradinha impagável com Marco Nanini no palco, em O Mistério de Irma Vap. Sucesso de público e crítica, sua vida se refletiu em troféus como o mais recente, quando foi o grande homenageado de 2020, na 14ª edição do Prêmio APTR de Teatro. Mas ele foca no futuro: “Até agora deu tudo tão certo, sou tão abençoado, graças a Deus. Só quero realmente que a gente possa voltar a trabalhar o quanto antes, que a nossa vida retorne ao normal. Estou com muita saudade do palco, lá é a minha casa”.

Muitas pessoas surtaram com a falta de liberdade, mas Ney vem lidando bem com essa situação de permanecer trancado em casa. “Até agora esse lado social não mexeu comigo. Imagina, você tem que viver tua vida, teus fantasmas, inseguranças. Eu e o planeta inteiro lidamos com as faltas, as saudades. Temos que procurar energia nas pequenas e mais delicadas coisas da vida que são as mais importantes. Por exemplo, ligo para os amigos, a Fernanda Montenegro, o Miguel (Falabella), Maria PadilhaMaitê ProençaNatalia do Valle, a gente bate um papo, conta histórias, sonha e vai levando. A vida tem que continuar mesmo com esse novo normal. Também não estou sozinho em casa, tenho companhia”, observa. Ele tem aproveitado ainda para reler os clássicos de William Shakespeare (1564-1616) e Nelson Rodrigues (1912-1980). “Também escrevo, assisto séries para me distrair, day by day, um dia após o outro”, acrescenta.

Ney mostra orgulhoso seu troféu como homenageado do ano no Prêmio APTR de Teatro (Foto: Arquivo Pessoal)

Ney mostra orgulhoso seu troféu como homenageado do ano de 2020 no Prêmio APTR de Teatro (Foto: Arquivo Pessoal)

Quando a quarentena decorrente da pandemia da Covid-19 se iniciou, em meados de março de 2020, Ney vinha ensaiando para estrear a peça Seu Neyla, com previsão de estreia para  3 de abril, ao lado de mais quatro atores. Escrita por Heloisa Périssé, com direção de José Possi Neto, a comédia musical, com mais de dez canções, passeia pela trajetória do ator. “Veio esse vírus que ninguém esperava e 2020 foi uma loucura. Fiquei e continuo em casa”, conta. Desde, então, saiu de seu apartamento apenas duas vezes. Em ambas para votar nas eleições municipais do Rio. Mesmo com a vacinação, que deve começar em breve no Brasil, ele não acredita que os teatros reabram normalmente antes de setembro ou outubro. Isso na melhor das esperanças. “Não tem mais aquela rotina de ir a rua e voltar, decorar, gravar, fazer filme, dar entrevista. Está tudo parado, o planeta está parado. Eu vivo dessa energia, eu preciso disso, mas como não está vindo tenho que procurar outros caminhos”, conta.

E explica como encontra paz em momentos difíceis. “Nas minhas orações. Eu sou católico, então, rezo de manhã para todo mundo, pelo planeta”, conta. Ney está bastante esperançoso até por conta da vacinação que já começou em diversos países. “Minha energia agora está voltada para isso, só penso na vacina que está para sair. Vou tomar assim que estiver disponível, lógico, porque eu sou do lado da ciência”, deixa claro. “Assim, quando tudo isso passar, o que eu mais desejo quando puder é abraçar as pessoas, matar as saudades dos amigos.”

Quando a pandemia passar, Ney vai retomar os ensaios da comédia musical Seu Neyla (Foto: Reprodução Instagram)

Quando a pandemia passar, Ney vai retomar as caminhadas na Lagoa Rodrigo de Freitas e os ensaios da comédia musical Seu Neyla (Foto: Reprodução Instagram)

Mesmo diante do comportamento que viu das pessoas através da televisão, como aglomerações em bares, praias e festas clandestinas, Ney tem fé de que no geral, as pessoas vão sair melhor dessa história. “Eu, por exemplo, não vou me aglomerar. Estou me cuidando, respeitando, afastado das pessoas, por mim e em função das outras também. Cada um tem uma cabeça. Mas claro que você se transforma depois de um ano de uma tragédia mundial. Ninguém volta a ser mesma pessoa. Só se for fria, idiota, porque o que vivemos é uma tragédia, já temos mais de 200 mil pessoas mortas no Brasil. É uma loucura”, pontua. E conta quem é o Ney depois disso tudo. “Acho que sou uma pessoa mais generosa. E não digo que sou menos sonhador. Vou continuar sonhando, mas agora com mais pé no chão”, acrescenta.

Em meio a sua autoavaliação, Ney conta como tem sido seu cotidiano desde março de 2020. Até esta data, era comum esbarrar com o ator caminhando na Lagoa Rodrigo de Freitas. “Não ando mais lá como fazia. Tenho 76 anos, não posso fazer isso, por respeito a mim e aos outros, não vou mesmo, não adianta. Tenho uma área grande aqui em casa, então, fico andando de um lado para outro”, explica. Assim, não deixa de fazer uma atividade física, gozando de saúde plena. Em 2012, ele passou por momentos difíceis, quando permaneceu mais de 40 dias internado, após dar entrada em um hospital com colangite obstrutiva (inflamação das vias biliares).

Miguel Falabella é um dos amigos com quem Ney fala sempre ao telefone na quarentena (Foto: Reprodução Instagram)

Miguel Falabella é um dos amigos com quem Ney fala sempre ao telefone na quarentena (Foto: Reprodução Instagram)

Através de amigos e da televisão soube da demissão de vários colegas de profissão, que ocorreram em 2020, após anos de serviços prestados à Globo, como o casal Tarcísio Meira e Glória Menezes, e Antonio Fagundes. “É uma nova política da casa, acho que isso é normal nas empresas, faz parte. Não receio de que isso aconteça comigo. Já trabalhei muito para poder ficar tranquilo”, pondera. E avalia a difícil situação que os profissionais ligados a arte estão passando. “Eu sou contratado. Quando você tem um contrato com a televisão é diferente, isso segura as tuas pontas, mas para quem vive só de teatro, é complicado. Temos cinco mil pessoas da minha classe em uma situação muito difícil, porque agora ninguém está podendo fazer nada. É uma pandemia. Tenho gravado muitas lives para ajudar a APTR (Associação dos Produtores de Teatro), aos atores que precisam. A gente faz a campanha, pede auxílio, estamos tentando. Vamos ver se a Lei Aldir Blanc realmente sai para ajudar as pessoas que estão desempregadas sem ter o que comer”, comenta.A política é outro tema que desperta interesse em Ney. Incrédulo, assistiu pela TV, na última quarta-feira, dia 6, americanos invadirem o Congresso dos Estados Unidos, incentivados pelo presidente Donald Trump, para evitar que fosse certificada a vitória do presidente eleito Joe Biden. “Foi uma loucura”, diz Ney. No Brasil, vemos o presidente Jair Bolsonaro falar que o voto tem que ser impresso nas eleições de 2022. Acha que a situação que aconteceu nos EUA pode se repetir no Brasil? “A democracia é mais forte do que qualquer coisa, então, nada me mete medo. Nós somos mais importantes do que qualquer ato autoritário. Nós temos o Supremo Tribunal Federal que funciona, as entidades funcionam. A sociedade civil se comporta muito bem. Não vai acontecer nada. Não tem essa chance mesmo, nós estamos bem atentos”, conclui. E a vida de Ney rende um filme.