*por Vítor Antunes
Entrevistar Nany People é um manancial de boas histórias. Não importa a vez, ou as vezes em que ela empresta suas palavras e suas lembranças, tudo é novidade. Para este segundo semestre de 2024, ela estará fazendo a temporada popular de seu monólogo Como Salvar Um Casamento em São Paulo e Rio de Janeiro. Além desta montagem, fará Tsunany, Nany É Pop!, Sob Medida – Nany Canta Fafá, e Deu no Que Deu. E também tem as gravações do Caldeirão do Mion e do Vai Que Cola, bem como um longa em Minas Gerais.
Sobre Como Salvar Um Casamento, novo monólogo da atriz, fica a pergunta: Como é possível salvar um casamento? Existe uma fórmula? “Receitas existem, eu dou várias, mas para cada um, o bolo cresce de um jeito. É possível salvar um casamento, desde que você se analise, esteja pronto, apto para poder mexer em alguns conceitos, receitas e temperos que você não está colocando direito na sua mexida. Como a receita muda para cada um, o bolo cresce de um jeito, que muda o jeito de bater. O ingrediente que eu acho imprescindível, que a gente não pode deixar de respeitar, é respeitar o outro na sua essência”, compara. E prossegue dizendo: “A gente tem a burrice de mudar tanto a essência do outro… Quando se chega lá, desconfigura todo o sistema, inclusive até o que fez você se sentir atraída. Depois, você procura e o sistema não existe mais, porque foi mudado. Um dos segredos é: respeite o outro na sua essência e ame com decência.”
Minha vida muda com um telefonema e muita coisa que dá para mudar ainda — Nany People
PALAVRA DE MULHER
Nany casou algumas vezes e desses casamentos tirou alguns aprendizados, além das mais naturais fases do amor que acompanham os casamentos. “Ao casar, revivi uma coisa que a minha mãe sempre falou, e que eu tive que colocar em prática ao pé da letra: não deixar as pessoas fazerem de mim o que eu não queria, o que eu não acreditava. A coisa que eu mais aprendi nos meus relacionamentos foi isso: a não me perder de mim mesma para agradar outros ou outrem, seja até no relacionamento amoroso ou profissional, é não deixar as pessoas fazerem de mim coisas que eu não gosto, não quero ou não acredito.”
Nany batizou-se em homenagem à modelo e apresentadora Nani Venâncio. Ela conta como foi o encontro entre homenageada e homenageante: “Eu já tive o privilégio de trabalhar com Nani Venâncio no infantil que ela produziu em 1996, A Dama e o Vagabundo. Eu cheguei em São Paulo, cheguei e trabalhei dez anos no Teatro Paiol, teatro do Seu Paulo Goulart e da Dona Nicette Bruno. Eu cheguei e falei assim com ela: ‘Nani, eu trabalho na noite, eu tenho um personagem e me inspirei em você, que se chama Nany People’. Ela falou: ‘Meu Deus, estou esperando um ator, e chegou uma atriz maravilhosa’. Ela é uma mulher maravilhosa, querida, uma pessoa calorosa, uma pessoa que abraça, que me agregou, me empoderou, me respeitou e, de certa forma, me encorajou. Tanto que quando eu consegui a conquista do meu nome, dos meus documentos, do meu CPF, do meu passaporte, da minha certidão de nascimento, Nany People Cunha Santos, para mim foi uma glória muito grande.”
PARA ALÉM DAS LETRAS
Há anos, Nany é referência no que diz respeito à pauta LGBT. Sobre ser trans, mulher, ou “alguma-letra-da-agenda-da-diversidade”. Segundo ela, não há mais perguntas relacionadas ao fato de ela ser mulher. É algo que já foi internalizado e compreendido. “Não me perguntam mais isso. Hoje eu passo por outro tipo de situação. Por exemplo, fui fazer uma mamografia agora recentemente, na mastologista, contei minha história, que eu já fiz a minha transição há mais de vinte e tantos anos, quase trinta anos, porque eu parei de tomar hormônio por um tempo, e aí ela, no meio da entrevista, se empolgou tanto, no meio da consulta, que ela perguntou: ‘A senhora teve filhos?’ Falei: ‘Não, amor, eu sou uma mulher trans!’ Aí ela disse: ‘Ai, desculpa, é que sua mama é tão perfeita…’. Então, esse tipo de pergunta não é mais recorrente não. Não são tão afrontosos comigo, não. É bagunçado, mas tem gerência”, brinca.
Nany foi por anos repórter da Revista G Magazine, uma das primeiras voltadas a atender o público gay e a trazer homens nus, numa contraposição às revistas que traziam mulheres peladas, como a Playboy ou a Sexy. Para Nany, a existência da revista foi um ato importante para a comunidade. “A G não era só uma revista de homem pelado, a G foi um grito de liberdade, de sustentação, acho que muitas gerações de gays que vi no interior do Brasil, e não era ainda uma época de uma democratização tão aberta do movimento LGBTQAPN+. Eu tenho histórias e relatos de pessoas que iam na banca e compravam três, quatro revistas e pegavam a G, colocavam no meio do encarte para ver em casa e saber aquele frescor de respiro, de moda, tinha turismo, tinha saúde, tinha debate, tinha conceito, além dos nus.”
Nany relembra como foi convidada a fazer parte da revista. “Fui convidada pela Ana Fadigas numa matéria que eu fui fazer para o Goulart de Andrade (1933 — 2016) num restaurante da Myrian Abicair. Ela falou: ‘Eu quero você na minha revista’. Não era nem a G Magazine, era a precursora, a Bananaloca. Fui a colunista, a única que ficou dez anos na revista.”
Eu acho que o mundo hoje em dia está meio banalizado no que diz respeito à nudez. As pessoas mandam um nude por nada. Tem uns sites de aplicativos, de relacionamento, a pessoa já coloca lá tudo determinado, o que gosta, o que não gosta, tamanho, metragem, diâmetro, o que faz, quantas vezes faz, porque faz, o que não faz. Acho que se banalizou tudo — Nany People
Nany é superlativa: são quase 60 anos de idade, 50 anos de palco, de teatro, 40 anos de São Paulo e 30 anos de TV, que completo no ano que vem. “Acho os 60 anos uma glória, até porque eu sou uma em um milhão. Sou uma das poucas trans no Brasil que conseguiu ter uma vida feliz, decente e projetada no que eu idealizei para ser. Infelizmente, não é a realidade de vida de muita gente, de muitas trans também. A média de vida no Brasil de uma trans é de 35 anos. Eu tive a sorte, a felicidade de ter tido uma mãe, uma família que me aceitou, me agregou, me empoderou e me blindou, blindou muito bem até para os algozes da vida. Então, 60 anos é uma conquista, é uma glória, é uma celebração.”
Para encerrar, Nany declama o poema que guia a sua vida: “É uma do filme da Cinderela. ‘Um sonho é um desejo d’alma, na alma adormecer. Em sonhos, a vida é calma e é só desejar para ter.’ Eu acho que quando a gente deseja, trabalha, levanta o toba do sofá e vai à luta, uma hora você tanto semeia que a vida vem e fala: toma, é seu. Incendeia tudo isso que você quer, vai lá, vai viver teu sonho, eu acho que é isso. E como dizia a mãe da própria Cinderela para ela: tenha coragem, seja gentil, onde existe gentileza, existe magia. Eu sou a prova disso, eu sou a prova de que o sonho é um desejo d’alma. Eu ousei viver um sonho e esse sonho acontece todos os dias da minha vida, todos os dias.”
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