Milhem Cortaz aborda em monólogo como a vida é cruel e revela que superou crises de pânico que duraram 21 anos


Em ‘Diário de Um Louco’, seu primeiro solo teatral, o ator retorna aos palcos após uma década afastado. Super presente no audiovisual, ele também brilha em sua performance visceral na série ‘Os Outros’, no Globoplay. Aliás, visceral é um adjetivo que vai combinar sempre com ele, que também vem descobrindo o lado bom e divertido de deixar o trabalho fluir, mesmo na potência habitual. E nesta entrevista, Milhem continua abrindo um assunto conversado recentemente: as crises de pânico que teve durante 21 anos. ““É a pior coisa que pode acontecer para um ser humano em vida. É estar meio morto-vivo. Voltar ao eixo é um dos grandes privilégios que o ser humano pode ter. Só existir, ser você por completo, é o maior barato. Sem a visão periférica estar tomando conta de alguma coisa. Minha vida já era boa, mas agora melhorou em todos os âmbitos”

*Por Brunna Condini

Criei minha carreira em cima dos excluídos, dos que estão à margem. O espetáculo também fala disso, então mexe bem comigo…de como precisamos buscar o amor primeiro em nós, e de como a vida é cruel com a gente e temos que aprender a lidar com ela…mas escolhemos falar sobre o amor, o amor próprio, sobre aceitar quem você é…

É com essa introdução que Milhem Cortaz, destaque absoluto na série do Globoplay ‘Os Outros‘, tenta traduzir seu espetáculo solo ‘Diário de Um Louco. O conto do escritor russo Nikolai Gogol (1809-1852), se tornou um monólogo com direção de Bruce Gomlevsky, e justamente lança um olhar sobre as pessoas à margem da sociedade. O solo marca o retorno do ator aos palcos após 10 anos. “É um texto ainda muito atual. Me vejo um pouco na loucura deste personagem, que é a de aceitar sua essência. Aos 50 anos, me amo, não me levo tão a sério. É importante parar de jogar tudo que deu ou não deu certo na vida em um lugar de culpa”, observa.

Recentemente, o ator revelou que precisou lidar com crises de pânico durante 21 anos da sua vida. “É a pior coisa que pode acontecer para um ser humano em vida. É estar meio morto-vivo. Tive a primeira crise em 1998, a gente nem sabia o que era exatamente. Essa crise veio muito forte, junto com uma psoríase, que me tomou o corpo inteiro. Foi muito louco. E em 2001, veio violenta novamente, durante o ano inteiro. Fazia a peça ‘O jardim das cerejeiras’ com a Tônia Carreiro (1922-2018) e tive uma crise em cena. Procurei terapia, caminhos alternativos, não tomava remédio porque não acreditava nele. Achava que eu precisava entender tudo que acontecia comigo, e que se eu tomasse alguma medicação antes de entender o que se passava e quais são os gatilhos disso, seria covarde da minha parte. Porque não resolveria a raiz do problema. Hoje já são quatro anos sem crises”.

Milhem Cortaz está em cartaz com seu primeiro espetáculo solo,. Nesta entrevista, fala de amadurecimento e sobre a superação das crises de pânico (Foto: Divulgação/Priscila Prade)

Milhem Cortaz está em cartaz com seu primeiro espetáculo solo,. Nesta entrevista, fala de amadurecimento e sobre a superação das crises de pânico (Foto: Divulgação/Priscila Prade)

O solo

Em formato de diário, a peça ‘, que fica em cartaz até 3 de setembro no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, conta a história de um funcionário público e a súbita paixão pela filha do seu chefe, que desencadeia uma série de conflitos com seus mundos exterior e interior. “A escolha deste texto surgiu do desejo de falar sobre o ser humano e também da sua busca de identidade. Queria fazer um solo há muito tempo, estava à procura de um texto que fosse político, mas também falasse da gente. É um espetáculo que tem humor, mas fala de um lugar bem dolorido. Me sinto pronto para estar em cena falando disso tudo”. E pontua: “Vivemos em uma sociedade em que parecer ser, muitas vezes, é mais importante que ser. Quando pensamos na proposta deste espetáculo, que é voltar para quem somos, chamamos a atenção para o fato de que é na ‘casa da gente’, ou seja, dentro de nós, que sempre vai haver conforto. Visitar esses lugares, falar de tudo isso no meu retorno ao teatro, aos 50 anos, está me fazendo um homem e um artista muito melhor. E cada vez mais potente”.

Fluindo

Sobre as crises de pânico com que conviveu mais da metade da sua vida, o ator acrescenta: “Um pouco antes da pandemia, eu já estava cansado de ter o controle. No sentido de que eu sentia que a crise vinha, me esforçava para controlá-la, e isso é muito cansativo. Eu sofria menos, mas ficava exausto desse mecanismo. E, neste período, por acaso caí em outro médico, porque já consultei alguns, mas esse me convenceu e comecei a tomar um remédio. Uma dose bem baixa. E foi das melhores coisas que fiz na vida, nunca mais tive uma crise. Já são quatro anos sem. Nesse momento nem terapia faço mais. Dei um basta em tudo, queria experimentar ter uma vida normal. Queria entender o que é não estar se tratando, não ter uma doença psicológica. Tirar o foco deste lugar, como se eu não existisse desta forma na minha vida, e venho conseguindo”.

 

Aos 50 anos, me amo, não me levo tão a sério. É importante parar de jogar tudo que deu ou não deu certo na vida em um lugar de culpa – Milhem Cortaz

Milhem foi aclamado por sua atuação na série 'Os Outros': "Foi meu melhor trabalho até hoje" (Foto: Divulgação/Globo)

Milhem foi aclamado por sua atuação na série ‘Os Outros’: “Foi meu melhor trabalho até hoje” (Foto: Divulgação/Globo)

Estou super são e no eixo para falar da loucura, sabe? – Milhem Cortaz

Milhem conclui sobre o assunto: “Passei 28 anos me observando muito. Sempre com o pânico, mas aprendi a ter algum controle. Porque dos 90 sintomas que envolvem uma crise de pânico, me sobraram oito. E desses, cinco. Então minha cabeça e meu corpo já estavam acostumados com o estado de pânico. Estar no eixo é um dos grandes privilégios que o ser humano pode ter. Só existir, ser você por completo, é o maior barato. Sem a visão periférica estar tomando conta de alguma coisa. Minha vida já era boa, mas agora melhorou em todos os âmbitos. Parei de fazer um esforço danado para tentar interferir o mínimo possível na vida das pessoas ao meu redor, como na vida da minha mulher (a artista circense Ziza Brisola, com quem é casado há 23 anos), da minha filha (Helena, 15 anos). Acabo tendo mais tempo para o amor. Deixando tudo fluir melhor”.

Vivendo e aprendendo a jogar

Ativo no audiovisual, Milhem volta aos palcos após uma década e comenta a experiência. “Neste espetáculo experimento uma espécie de catarse das vivências dos últimos anos. Em ‘Os Outros’ também experimentei isso e posso dizer que essa série é meu melhor trabalho. Quando digo que foi uma espécie de cura, as pessoas levam para um lugar muito sério, mas foi algo do tipo, porque deixei tudo lá, não trouxe nada para mim. Não me levo tão a sério mais. E isso foi uma preparação para essa peça que faço agora. Estou super são e no eixo para falar da loucura, sabe? Pela primeira vez estou tendo um distanciamento do meu trabalho, é como se eu pudesse observar o que faço, e quando falo de observar, é que estou um pouco mais racional nesta loucura toda. Não perdi a intensidade, mas estou me divertindo” ,diz.

Sobre o solo: "Estou um pouco mais racional nesta loucura toda. Não perdi a intensidade, mas estou me divertindo" (Foto: Divulgação/Priscila Prade):

Sobre o solo: “Estou um pouco mais racional nesta loucura toda. Não perdi a intensidade, mas estou me divertindo” (Foto: Divulgação/Priscila Prade):

“É o seguinte: você precisa ser uma pessoa muito organizada para enlouquecer. O que estou tentando fazer agora, é levar menos a sério essa disciplina. Deixar a coisa mais livre…isso ainda é muito novo para mim, mas tem sido ótimo, porque estou ali, vendo tudo, e termino inteiro o espetáculo. Tem mais clareza no que está sendo dito, é mais fluido. Olha a fluidez aparecendo em tudo. Busco muito depois dos meus 50 anos me levar menos a sério. E isso inclui como encaro o trabalho hoje. Tem a importância do momento. É para ser gostoso. To play. É o que fazemos no nosso ofício”.

"Estou há quatro anos sem crise de pânico. Queria entender o que é não estar se tratando, não ter uma doença psicológica" (Foto: divulgação/ Priscila Prade)

“Estou há quatro anos sem crise de pânico. Queria entender o que é não estar se tratando, não ter uma doença psicológica” (Foto: divulgação/ Priscila Prade)

Depois de quase uma hora de entrevista por telefone, Milhem conclui sobre sua jornada de autoconhecimento que culmina no momento de maturidade atual: “Estou dando mais tempo para minha experiência, do que para as minhas vontades no palco, por exemplo. Isso traz menos sofrimento, torna tudo mais prazeroso. Um dia o Paulo Autran (1922-2007) me falou uma coisa que ficou ecoando em mim: “Nem quando você for velho vai fazer as coisas como eu faço, cada um tem seu caminho, e a sua verdade está dentro dessa radicalidade, desse lugar”. Estou tentando ser um pouco mal educado e não acreditar no que o Autran me falou (risos). Neste momento estou realmente querendo me levar menos a sério e ser mais leve. E acho que isso já está me trazendo benefícios. Estou me desgastando menos. Até consegui vir a praia hoje, estou dando essa entrevista daqui. Mais tarde tem espetáculo, mas agora estou presente, aqui. É muito boa essa sensação”.