*Por Jeff Lessa
No início de 2018, Luísa Thiré começou a pensar em uma maneira de homenagear sua avó, a atriz Tônia Carrero (1922-2018). A ideia era montar uma peça já interpretada por Tônia no ano em que ela completaria 96 anos, uma vez que a grande dama tinha verdadeira paixão pelo teatro. Mas nenhum texto agradava totalmente Luísa.
– Eram todos muito datados, antiquados. Não conquistariam o público de hoje – conta. – Estávamos fazendo a leitura de uma peça inédita do Naum Alves de Souza, mas havia vários empecilhos, a família não liberava os direitos, essas coisas. Enquanto esperávamos, li “Navalha na Carne” e fiquei muito impressionada com a atualidade do texto do Plínio Marcos. Assuntos que são debatidos diariamente hoje, como homofobia, violência contra a mulher, machismo, feminicídio, estão todos lá.
Era a escolha perfeita, pois o drama, ousadíssimo para a época, representou um marco na carreira da avó de Luísa. O papel da prostituta Neusa Sueli fez com que Tônia Carrero fosse reconhecida pela primeira vez como grande atriz – e não apenas como o rosto incrivelmente bonito que acabava, de certa forma, prejudicando a carreira, pois limitava seus papéis a mocinhas ricas e voluntariosas. Quando fez “Navalha…”, Tônia já estava com 45 anos.
Ainda assim, dá para imaginar a dimensão do escândalo quando a diva deslumbrante surgiu no palco como uma prostituta decadente que chega do trabalho e encontra seu cafetão, Vado (Nelson Xavier), irritadíssimo por não ter encontrado o dinheiro arrecadado por ela no lugar de sempre. O casal tira satisfações com o faxineiro do hotel vagabundo onde mora, Veludo (Emiliano Queiroz), acreditando ter sido ele o ladrão. A discussão vai num crescendo de violência que revela frustrações, ódios, dependências, fragilidades, machismo, homofobia, tristeza e total desesperança.
Luísa diz que sua avó conheceu a peça depois de emprestar uma casa que tinha em Santa Teresa para a trupe paulistana fazer a leitura escondida, já que tudo relacionado a “Navalha…” estava terminantemente censurado. Tônia se apaixonou loucamente pela peça. Liderou o movimento contra a censura a Plínio Marcos e decidiu que, no Rio, Neusa Sueli seria ela.
– O diretor disse “Mas já tem atriz para o papel, é a Ruthneia de Moraes” (que, ao lado de Edgard Gurgel Aranha e Paulo Villaça, formava o trio de personagens na montagem paulistana). E minha avó respondeu “A Ruthneia faz em São Paulo. No Rio, o papel é meu – diverte-se Luísa. – Ela quis tanto interpretar a Neusa Sueli que engordou oito quilos e deixou de usar maquiagem para parecer mais acabada.
Quem ouve Luísa falar com tanta propriedade e conhecimento de detalhes sobre a saga de Tônia e “Navalha na Carne” pode acreditar que ela cresceu ouvindo a avó contar histórias sobre a peça. Só que não: a atriz revela que as duas jamais tocaram nesse assunto.
– Quando tive idade para conversar com ela, essa montagem já era histórica, tinha ficado muito para trás. A gente só falava sobre as peças que eu via. O que sei a respeito se deve a pesquisa, não conhecia as histórias – revela. – Lembro de ter visto muita coisa no Maison de France, onde ela trabalhou com frequência. Eu assistia a tudo da coxia e depois a gente conversava.
A montagem atual, dirigida por Gustavo Wabner, com Alex Nader (Vado) e Ranieri Gonzalez (Veludo) no elenco, estreou em São Paulo no dia em que a homenageada completaria 96 anos. Já foi apresentada nos festivais de teatro de Pernambuco e de Curitiba desse ano e no Espaço Sesc, em Copacabana. Emoção máxima no momento em que o ator Emiliano Queiroz, o Veludo da montagem carioca de 1967, foi reconhecido na plateia na noite de abertura:
– Ele é o único que está vivo. Recebeu uma ovação, foi muito emocionante.
Na entrada do teatro Glaucio Gill, há uma pequena exposição, “Eterna Tônia”, com fotos, figurinos e objetos da deusa. A curadoria é de Luísa e a expografia coube ao cenógrafo Sérgio Marimba. Antes de o espetáculo começar, um vídeo de seis minutos conta a trajetória da atriz com depoimentos dela e de Plínio Marcos.
– Meu irmão, Carlos Arthur Thiré, faz a narração. É uma forma de ele também participar da homenagem – observa Luísa que, por enquanto, não está pensando no que fazer com o acervo da avó. – Quero rodar com esse projeto o mais que puder e levá-lo a todos os lugares possíveis.
A concepção é extremamente realista, tanto na estética quanto nas interpretações. O diretor Gustavo Wabner explica que “o realismo propicia um maior entendimento, maior clareza sobre o universo que o dramaturgo retrata. Nosso grande desafio foi tentar descobrir os silêncios, não cair na armadilha do grito”. Luísa Thiré complementa:
– O tempo é real. É o tempo corrido, tudo está acontecendo, não tem saltos. O espectador assiste a 50 minutos nas vidas daqueles três personagens. Eu uso uma peruca loura. Neusa Sueli acha que está se embelezando. Mas ela é decadente, tem 50 anos e diz que tem 30. Ninguém acredita, coitada. Tiro a peruca e, por isso, pintei meu cabelo de preto, para ficar mais realista.
Em função do momento atual, de conservadorismo exacerbado e retrocesso nas conquistas sociais, Luísa acredita que a homenagem ficou maior, ultrapassou seu objetivo e tornou-se um espelho da sociedade brasileira atual:
– Não estamos falando mais de um pequeno grupo de pessoas. Estamos falando de todas as mulheres, de todos os gays, de todos os machões. Os personagens são estereótipos, mas nós buscamos a humanidade deles. Afinal, não existe opressor sem o oprimido.
E sobre a situação da cultura?
– O teatro voltou a ser um espaço de resistência. A gente agora segura na mão um do outro e segue em frente. Cortaram recursos e patrocínios. Eu nasci na coxia, minha vida é isso. Tem muita gente séria que não vai permitir que o teatro acabe, que vai pensar em maneiras de resistir. E, bom, um dia isso vai passar. Não vai?
SERVIÇO
“Navalha na Carne”
Teatro Glaucio Gill: Praça Cardeal Arcoverde s/n, Copacabana – 2332-7904
Sexta a segunda, às 20h
R$ 60 e R$ 30 (meia)
Bilheteria: segunda a domingo, das 16h às 20h
16 anos
75 minutos
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