* Por Carlos Lima Costa
Um das mais respeitadas atrizes do Brasil, Léa Garcia, aos 89 anos, está celebrando sete décadas de carreira. “É uma trajetória de conquistas diante de todas as dificuldades e mazelas existentes. Então, tenho um sentimento de resistência e força. Me sinto feliz pela possibilidade de ainda estar trabalhando”, ressalta ela, que será trisavó este mês. A intensa presença no teatro, cinema e televisão não poderia ser comemorada de forma mais poética: atuando na peça A Vida Não É Justa. Mulher de fibra, Léa é movida pelo amor à profissão. Quem a vê em cena ou mesmo nos projetos de audiovisual, não imagina que ela enfrenta as sequelas da picada do mosquito Aedes Aegypti.
“Tenho energia, mas também uma neuropatia (doença que afeta os movimentos) nas pernas. Devido a chikungunya, eu estou com a minha coluna e as minhas juntas comprometidas e caminhando muito mal. Acho que a cura está sendo mais difícil devido à artrose. É desesperador. Logo no início, fiquei de cama, fui hospitalizada, depois, fiz dois filmes. Ia para São Paulo na cadeira de rodas, mas, em cena ficava em pé, tinha que trabalhar. É muita força de vontade, mas, depois de três anos sentindo dor nas articulações, nas pontas dos dedos, perdendo a sensibilidade deles, estou começando a cansar das dores que sinto”, enfatiza ela, que pode ser vista na reprise de O Clone.
Mas com ponta de esperança: “Meu caminhar não está bom, não está perfeito. Eu não posso dominar a cena em termos de caminhada, de ocupar o palco. Tenho até recusado alguns trabalhos. Mas, agora, estou acreditando que vou melhorar bastante com a indicação que o (Eduardo) Barata me deu, de uma pessoa maravilhosa, que faz acupuntura, medicina chinesa. Tenho certeza, vai dar certo”, torce ela, referindo-se ao produtor de seu espetáculo e presidente da Associação de Produtores Teatrais do Rio.
Léa considera “lamentável” o etarismo, a falta de bons personagens para os artistas mais velhos, que costumam roubar a cena quando estão em alguma produção. Na primeira fase, por exemplo, da novela Além da Ilusão, esse foi o caso de Lima Duarte e Emiliano Queiroz, que também festeja 70 anos de carreira e que, pela primeira vez, está atuando com Léa no teatro. “Fico cheia de dedos de falar da genialidade desses atores que conseguem, não digo nem ofuscar, mas um destaque entre os mais jovens que estão produzindo bem mais em termos de trabalho”, ressalta.
Em relação à sua carreira, ela explica o movimento que tem percebido: “Estão me condicionando muito de um certo tempo para cá a fazer somente mãe preta ou mãe de santo e isso me incomoda bastante. Acho que posso fazer uma outra personagem. Não é porque estou com 89 anos, que eu só possa fazer esses tipos. Estão me limitando”, frisa. Por isso mesmo, está adorando participar do espetáculo A Vida Não É Justa, baseado no livro da juíza Andréa Pachá, dirigido por Tonico Pereira, com dramaturgia de Delson Antunes. Nela, suas personagens são plurais.
No palco, são retratadas várias histórias que a juíza vivenciou durante sua vida profissional. “É interessante, tem desde um caso de quase feminicídio até os mais populares, engraçados, muitas vezes bem rodrigueanos, bem Nelson Rodrigues (1912-1980). Então, estou adorando fazer”, frisa.
A primeira das quatro personagens que Léa interpreta no palco é a Molhadinha 25, que comete adultério virtual. “Ela é engraçada, porque é uma mulher de idade, madura, que, no computador, tem um encontro sexual virtual com um cara. Fizemos um encontro bem engraçado, fazendo uma paródia até com relação às radionovelas. Ficou bem interessante”, assegura ela, que não se adapta a essas modernidades tecnológicas.
“Tenho muita dificuldade pra lidar com todas essas aparelhagens, computador, celular moderníssimo. Eu lido, mas não gosto. Em termos de relação, eu gostava mais da época que você colocava a perna embaixo da mesa e fazia um roçadinho na perna da outra pessoa (risos), tinha olho no olho. Esse negócio virtual pra mim soa de uma forma muito estranha. Eu não gosto, não acho nada interessante, mas essa personagem se contentava, tanto que, quando está sendo julgada, ela não admite que traiu por ter sido virtual”, diverte-se a atriz, que na vida real não mexe nem com redes sociais. “Minha nora que põe tudo no Instagram pra mim. Explico o que desejo publicar e ela coloca lá. Eu não abro Facebook, Instagram, Twitter, nada disso, só falo pelo WhatsApp”, confessa.
E se mostra radiante por finalmente dividir o palco com o amigo Emiliano Queiroz. Na TV, estiveram juntos nas novelas O Homem Que Deve Morrer, Selva de Pedra e Maria Maria. “O Emiliano é uma aula de interpretação. Estar fazendo um trabalho junto com ele é um presente dos deuses. Sempre tive um carinho grande por ele e pela (Maria) Letícia, mulher dele”, festeja.
Foi também no palco, que Léa fez sua estreia profissional, aos 19 anos, no espetáculo Rapsódia Negra, em 1952, integrando a companhia Teatro Experimental do Negro, fundada por Abdias Nascimento (1914-2011), que viria a se tornar seu marido e pai dos seus dois primeiros filhos. A partir daí, ela construiu uma trajetória linda e se tornou uma das maiores referências das gerações mais jovens de artistas negros. Assim, traça um paralelo da participação dos negros entre a época que começou e a atual: “Eu acho que ganhamos um pouco mais de espaço, mas ainda não estamos na situação desejada. Para ficarmos nivelados aos outros atores não negros nós precisamos de ter textos, diretores, produtores… Precisamos ser não só sujeitos, mas também realizadores. Nesse caminho aberto por nós, acho realmente que os jovens atores negros atuais conquistaram um pouco mais de espaço artístico, mas como disse, ainda não está como desejamos”, aponta.
Apesar de sempre exaltada ao lado de nomes como Abdias, Ruth de Souza (1921-2019), Chica Xavier (1932-2020) e Zezé Motta, ela conta que “No Teatro Experimental do Negro, o Abdias foi quem me deu consciência da questão do negro dentro da sociedade brasileira. Ali passei a ter um olhar mais político, porque eu não tinha. Então, agradeço a ele e ao tempo a oportunidade que me foi concedida de ser mais politizada e de ter um olhar mais voltado para essa questão de forma política e social também”.
O sucesso e a fama não foram suficientes para evitar que ela enfrentasse o preconceito. “Eu sofro aquele preconceito do dia a dia. Você entra em um local, um restaurante, um prédio, um lugar mais elitizado, você vai sentir, é cotidiano. Mas você não vai ficar o dia todo falando que está sentindo, senão vão achar que é mentira, que não é possível, mas eu sinto. Existe coisa mais preconceituosa do que você não poder denunciar um olhar? Você está em uma fila de banco, de repente esbarra em outra pessoa e não pode denunciar que a bolsa de alguém foi fechada contra o peito, porque ela está com medo de você. Esse preconceito do dia a dia que não nos possibilita uma denúncia, é subjetivo. Como provar?”, indaga ela, que, entre os tantos trabalhos marcantes, interpretou a vilã Rosa, da novela Escrava Isaura, exibida entre 1976 e 1977.
Virou antológica a cena final de sua personagem, no último capítulo, quando ela tenta envenenar Isaura, a mocinha interpretada por Lucélia Santos, mas acaba sendo vítima do próprio veneno. “A Rosa é o meu cartão de visitas. Até hoje falam nela, que utilizava as armas que tinha para não ir para o tronco. Ela não podia entender o motivo pelo qual Isaura era a preferida e as outras escravas não. Então, ela cobrava e utilizava as armas que tinha: a maldade, a perseguição e ter relações sexuais com todos os homens que apareciam ali, desde o feitor ao dono do engenho. Era engenhosa, aparentemente perversa. Se fosse uma mulher da atualidade, ela seria uma ativista, porque saberia dizer o motivo de a Isaura ter os privilégios e as outras escravas não. A Rosa percebia que algo estava errado e não sabia dizer o que era”, explica ela, que devido ao sucesso da novela esteve em alguns países.
Em Cuba, participou de um almoço com Raúl Castro, irmão do então presidente cubano, Fidel Castro (1926-2016), que, na ocasião, estava fora do país. “Fiquei em Havana, interessante, um povo muito heróico, destemido, com um sentimento forte de patriotismo. Foi o que eu senti”, observa Léa, cuja aparição mais recente na TV foi na série Arcanjo Renegado. Ela, inclusive, já gravou a segunda temporada.
Outro momento marcante, foi o filme Orfeu Negro, dirigido pelo cineasta francês Marcel Camus (1912-1982), que venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1959, ganhou a Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cinema de Cannes, em 1960, e com o qual ela concorreu como Melhor Atriz, em Cannes. “Fiquei surpresa com a indicação, porque eu me julgava uma atriz dramática. Não podia conceber que fazendo comicidade eu pudesse ganhar ou concorrer a um prêmio. E fiquei indignada também da Anna Magnani (1908-1973), que era a minha atriz italiana predileta, não ter ganho”, recorda. A vencedora foi a estrela francesa Simone Signoret (1921-1985) pelo filme Almas Em Leilão, que lhe rendeu também o prêmio de Melhor Atriz no Oscar.
O roteiro foi adaptado da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes (1913-1980), da qual ela já havia participado, na transposição do mito grego de Orfeu para o morro carioca. “No teatro, eu fiz a Mira. No cinema, interpretei Serafina, personagem criada pelo Camus, prima da Eurídice”, lembra. Durante a cerimônia, Léa estava no Rio, mas após a premiação, foi a Paris, por insistência do diretor. “Lá, vestimos roupas Dior, meio gatas borralheiras, aconteceram homenagens, foi muito bom”, conta Léa, que ao longo da carreira conquistou prêmios como o Kikito de Melhor Atriz, no Festival de Gramado, por sua atuação em Filhas do Vento. Outro momento, que Léa guarda com muito carinho é a peça Romanceiro da Inconfidência, baseada no livro homônimo de Cecília Meireles (1901-1964). “Aquele texto maravilhoso da Cecilia Meireles, considerado as nossas Lusíadas, foi um trabalho belíssimo. Ficamos um ano fazendo”, recorda.
Além da vitoriosa carreira, Léa construiu uma grande família. Com Abdias, ela teve, o primogênito, Henrique, agrônomo, que mora nos Estados Unidos, e Bida, que é baixista. Já o caçula, Marcelo, cinegrafista, é fruto do casamento com Armando Aguiar, de quem ela é divorciada. Tem três netos e dois bisnetos e, este mês, vai se tornar trisavó. “Minha bisneta Luisa vai ter uma filha”, festeja Léa, que mora com o bisneto, Nathan, de 22 anos. E, atualmente, vem acalentando o desejo de se mudar do Rio de Janeiro. “A Tijuca, onde moro, está muito violenta. A cidade também. Tenho vontade de ir viver na Região Serrana”, revela. Mas, sempre trabalhando!
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